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Clínica Psicanalítica

Clínica Psicanalítica : um ponto secreto entre a anedota da vida e o aforismo do pensamento

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao Comitê Organizador dos Estados Gerais o convite para participar desta mesa; a René Major, em particular, pelo entusiasmo e generosidade com que atendeu ao nosso chamado em 1998 para divulgar a convocação deste evento. A quantidade e a qualidade dos trabalhos enviados por brasileiros para a discussão dos temas propostos são evidência disso. Ser-me-ia impossível deixar de mencionar também a dedicação de Helena Besserman Vianna e Maria Cristina Rios Magalhães na organização e preparo deste encontro entre nós do Brasil.

Clínica Psicanalítica : um ponto secreto entre a anedota da vida e o aforismo do pensamento

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao Comitê Organizador dos Estados Gerais o convite para participar desta mesa; a René Major, em particular, pelo entusiasmo e generosidade com que atendeu ao nosso chamado em 1998 para divulgar a convocação deste evento. A quantidade e a qualidade dos trabalhos enviados por brasileiros para a discussão dos temas propostos são evidência disso. Ser-me-ia impossível deixar de mencionar também a dedicação de Helena Besserman Vianna e Maria Cristina Rios Magalhães na organização e preparo deste encontro entre nós do Brasil.

“Si vous voulez, pour un classique, toujours en très gros, jugement analytique a priori, ça voulait dire quelque chose; jugement synthétique a posteriori, ça voulait dire quelque chose; mais jugement synthétique a priori, c’est véritablement un monstre!”2 3

E aproveito os agradecimentos
para introduzir o primeiro elemento da minha reflexão: a
convocação dos Estados Gerais trouxe de volta muitos amigos
que eu tinha perdido ao longo da vida. O grupo que Fernando
Coutinho e eu temos a satisfação de coordenar no Rio de
Janeiro, surgiu da necessidade de viabilizar e promover a
visita de René Major a nossa cidade. Pessoas queridas que a
vida institucional afastou, instituições de orientações
diferentes da nossa, e quem mais se dispusesse a ajudar
individualmente foram contatadas por nós, e, no prazo de
dois dias já tínhamos um grupo considerável empenhado no
evento. Devo dizer que nos espantamos com a aceitação do
convite por muitos deles, pois até então não sabíamos que
havia uma urgência semelhante por um lugar descomprometido
das instituições, onde cada um pudesse falar em nome
próprio e discutir livremente suas questões mais
cotidianas. Tal era a proposição que Major nos levava sob o
nome de “Estados Gerais da Psicanálise”. Terminado
o encontro, e ainda como resultado da surpresa que nossas
afinidades nos trouxe, manifestou-se no grupo o desejo de
manter aquele espaço aberto. Estabelecemos apenas local e
hora e nossas presenças para receber todos os que quisessem
discutir sobre psicanálise. A rigor, nós não somos um
grupo; somos uma reunião. Não nos reunimos para estudar um
autor ou um novo livro (por mais que estas discussões
aconteçam entre nós). Reunímo-nos para falar daquilo que
enfrentamos de mais infame em nossa clínica, para falar do
que frequentemente está ausente dos trabalhos que levamos
para os congressos. Eu concordo com Jean Pontalis, olhando a
questão por sua “Fenêtres” 4, que as palavras
congresso e análise se contradizem. Ele escreve:

“A análise: a
experiência a mais íntima, a mais insólita, a mais
difícil de transmitir e mesmo de dizer, (…), a mais
reticente a todo saber, a todo o discurso conhecido. Uma
experiência que permanece frequentemente opaca àqueles
mesmos que a ela se submetem , analista e paciente.”

“Um congresso: na melhor
das hipóteses, uma reunião de especialistas que vêm
comunicar informações que devem ser objetivas ,
controladas, submetidas à comprovação; na pior das
hipóteses, uma feira onde cada um exalta seus
produtos.”

A leitura dos trabalhos
encaminhados para os Estados Gerais, assim como a
experiência ao longo dos anos com meus colegas, levam-me a
pensar que muitas das maneiras de lidar com as questões que
nos deparamos incessantemente em nossa clínica permanecem
longe de nossas reuniões oficiais, condenadas à bastardia.
A criatividade e ousadia dos analistas é significativamente
maior na “hora do cafezinho” e nos intervalos das
reuniões científicas e dos congressos. E por aqui encontro
o segundo efeito da convocação dos Estados Gerais sobre mim
: dignificar a “hora do cafezinho”. Elevá-la à
condição de reunião científica, ainda que faltem outros
ingredientes para tanto. A possibilidade do testemunho de
cada um de nós sobre sua experiência e a oportunidade de
nos deixar estranhar pela escuta dos outros colegas, criam as
condições mínimas para compartir nossa perplexidade e não
nos deixar aprisionar pela observância à rigidez dos
modelos pré-estabelecidos. Uma anedota: a sociedade a que
pertenço estava sob intervenção da IPA e recebe um comitê
de visita. Durante as discussões em uma das assembléias, um
dos interventores, no esforço de valorizar os standards
mínimos de formação analítica, diz que um analista da IPA
tem que ser reconhecido em qualquer lugar do mundo assim como
o é a Coca-Cola. Certamente que a IPA não se reduz a esta
anedota, mas esta anedota tem a ver com a IPA e seus modos de
transmissão.

Tomarei o caminho da feira
para fazer um elogio da infâmia, isto é, do que se põe à
margem do que se espera de um psicanalista, pois, se, por um
lado este é o pior caminho , por outro creio que seja o
único que nos caiba para discutir a clínica psicanalítica.
Desde o começo, dois aspectos me fascinaram na proposta dos
Estados Gerais: ser uma feira onde cada qual exponha seu
produto. Expor e não exaltar seu produto. Será possível?
Conseguiremos? Expor meu produto significa falar a partir de
um certo lugar que confira visibilidade a minha fala. E o
segundo aspecto, a curiosidade pelo dia seguinte à
conclusão da nossa reunião. Será que os Estados Gerais se
dissolvem no dia seguinte a seu término? Teremos que
esperá-lo.

Em A lógica do sentido5,
Gilles Deleuze descreve o método inventado por Nietzsche
para o problema da orientação do pensamento: “não
devemos nos contentar nem com biografia nem com bibliografia,
é preciso atingir um ponto secreto em que a mesma
coisa é anedota da vida e aforismo do pensamento.

Creio que qualquer forma dos
analistas se encontrarem toca a anedota. Lembremos que a
palavra anedota tem um duplo sentido: tanto designa
uma “particularidade histórica, pequeno fato curioso
cujo relato pode esclarecer o que está sob as coisas, a
psicologia dos homens” ou “relato de um fato
curioso ou pitoresco, historieta”, assim como
“detalhe ou aspecto secundário, sem generalização e
sem alcance”6. Imbrica, portanto, acontecimento e
personagem e banalidade, e nos deixa sempre perto da
possibilidade de rir de nós mesmos. Nem biografia nem
bibliografia, mas um ponto secreto que corta estes dois
eixos. Esta me parece uma boa aproximação para a questão
da clínica psicanalítica, uma vez que ela não se esgota na
singularidade do acontecimento de cada sessão e nem se reduz
ao conjunto articulado de conceitos que pretende dar
inteligibilidade ao psiquismo humano. O ponto definido por
este entrecruzamento, apesar de vazio, é capaz de
prodígios, na medida em que desloca o sujeito do
determinismo da empiria ou da razão e o convoca para a
indeterminação do campo criado pela pulsão7, fazendo-o
trabalhar. Parafraseando a aula que me serve de epígrafe: a
clínica psicanalítica é verdadeiramente um monstro! Um
monstro capaz de prodígios na medida da exigência de novos
conceitos. Luiz Augusto Celes em seu trabalho Da
psicanálise à metapsicologia: uma reflexão metodológica,
nos
diz que: “O convite que Freud faz ao leitor da Interpretação
dos sonhos
, não é o de que revelem os aspectos
particulares de sua vida, mas, ao contrário, que mergulhem
nas particularidades de sua vida pessoal para que a
interpretação de seus sonhos tenha alguma significância.
Coincide novamente o trabalho de busca do desejo realizado no
sonho com o trabalho que faz teoria, isto é, o trabalho
investigativo. Abra-se mão do desejo particular do
sonhador e não será possível a construção
metapsicológica.
O fundamento da metapsicologia é
subjetivo, ainda que ela mesma não o seja. Numa psicanálise
que se passa entre analista e analisando, a subjetividade
implicada se revela no termo transferência. Ao mesmo tempo,
a transferência distancia a psicanálise do
subjetivismo.” 8

A psicanálise nos conduz ao
problema do paradoxo, isto é, ao acontecimento no qual não
se pode estabelecer que as coisas tenham um só caminho. As
coisas têm um duplo e simultâneo caminho. Por isso a
clínica psicanalítica nos defronta com o que não há
saída, com o que não há solução e onde a questão do
verdadeiro e do falso perde sua importância. Nem a saída da
ascese platônica, estabelecendo o ideal a partir do qual as
cópias serão avaliadas; nem a busca da essência, da
origem, a partir de onde tudo se explica por meio das
relações de causa e efeito, justificando assim os
intervencionismos e estratégias de abreviação do processo
psicanalítico.

Em Análise terminável e
interminável,
Freud critica a postulação da teoria do
trauma do nascimento de Otto Rank como lugar de origem do
adoecer psíquico, utilizando a metáfora do bombeiro que se
satisfaria em retirar da casa em chamas a lamparina que
originou o incêndio. Qualquer tentativa de livrar a
psicanálise desta condição paradoxal condena-a à
violação de sua especificidade, seja por meio do
cientificismo seja pela submissão à religião.

Mas a história do movimento
psicanalítico nos mostra que, ao mesmo tempo, não nos
cansamos de querer espantar de nós e da psicanálise os
paradoxos. Estamos frequentemente assediados pela questão da
origem e seu desdobramento explicativo imediato, recuando
cada vez mais na escala do tempo; pela questão da
localização psíquica; pela questão da substancialização
do inconsciente. Por mais que tenhamos discutido o estatuto
da psicanálise, algo das práticas médicas permanece
aderido aos nossos consultórios através das idéias de
sofrimento e dor como desvio da normalidade, e,
consequentemente, de cura e de possibilidade de nexos
explicativos que meçam a eficácia do fármaco
(interpretação) sobre o sintoma. Quantas vezes não nos
deparamos com interpretações da máxima freudiana (“Wo
Es war soll Ich werden”) apontadas para a idéia de
melhoramento, para a idéia de progresso, de que caminhamos
do menos perfeito para o mais perfeito, oferecendo, deste
modo, suporte para fantasia de perfeição ao término de uma
análise?

Tomar a psicanálise como
“a experiência a mais íntima, a mais insólita, a mais
difícil de transmitir e mesmo dizer(…), a mais reticente a
todo saber…”, significa dizer que nela não há nada
de natural. Este é corte radical implícito no conceito de
pulsão, entendida como limite entre o psíquico e o
somático, nem psíquica nem somática, fonte de exigência
contínua de trabalho. Não há uma coisa a partir do que se
fazem as representações. O que a coisa fornece são os
elementos sensíveis da experiência, imagens visuais,
acústicas, que articuladas às representações-palavra,
formarão o objeto, isto é, somente adquirirão unidade de
objeto a partir da linguagem9. Não há identidade com o real
e apenas relações de força podem recortar dentro da
história de um sujeito outros sentidos, novas possibilidades
de ligações.

Assim, se produzir sentido
implica poder e poder implica em dar nomes10, podemos nos
perguntar de que sujeito estamos tratando em nossos
consultórios, uma vez que ele se determina historicamente.
Creio que todos os autores que encaminharam seus trabalhos
para os Estados Gerais concordam que não tratamos dos mesmos
pacientes que Freud tratou no início de nosso século.
Fala-se de fim dos tempos, fim de milênio, fim da história,
fim do paradigma das ciências, fim das ideologias, fim das
utopias, e fim da psicanálise. Robert Musil, em O homem
sem qualidades,
nos enreda na busca da Ação Paralela
enquanto se engendra, na cena ao lado, sem que se perceba, o
horror da Guerra Mundial. Estaremos, nós aqui nos Estados
Gerais, excitados na procura de uma tal ação que afirme a
psicanálise e desestimule seus opositores? Que outra cena se
trama a nosso lado sem que possamos saber? Mas, seja lá como
for, já não somos os mesmos e nem a psicanálise o é.

Destaco algumas questões para
nossa discussão.

O modelo de subjetividade que
Freud tomou para estabelecer sua metapsicologia foi retirado
da histeria e, consequentemente, operado pelos conceitos de
castração e recalque. Este modelo de aparelho psíquico
não tem dado conta das patologias narcísicas, cada vez mais
frequentes em nossos consultórios. Esta insuficiência tem
produzido várias tentativas de ordenar novas maneiras de
teorização metapsicológica a partir das referências do
narcisismo, privilegiando o que da palavra é corpo, isto é,
seu gosto, seu cheiro, sua cor, seu tamanho , seus ritmos e
intensidades. O mundo das representações pouco nos serve
nestas ocasiões. Trata-se de recolher as pegadas do sujeito
deixadas pelo caminho, reconhecê-las, nomeá-las e , desta
forma, atestar-lhe sua existência. Interpretar , nestes
casos , é correr o risco de rasgar o fino tecido que protege
a intimidade destes pacientes, deixando-lhes o vazio do ser
à mostra. A luta que se dá aqui não é por significados,
mas por sobrevivência psíquica. Isto implica uma mudança
na posição do analista frente a este sujeito para que
possibilite as condições necessárias para a estruturação
do mundo das representações e das trocas simbólicas.

Esta é a proposição de
Teresa Pinheiro em A castração: do interdito ao
desamparo,
onde afirma que: “Sob o caldo da histeria
Freud construiu um arcabouço teórico que articula conceitos
que dão conta de qualquer forma de ordenação do aparelho,
seja ele neurótico, psicótico ou perverso.” Um
aparelho psíquico construído sobre a base da histeria e a
partir do qual todos os conceitos fundamentais da
psicanálise foram elaborados não seria suficiente para dar
conta das questões que estas novas formas de subjetivação
nos propõe.

Enaide Bezerra Barros, em Melancolia
e verdade,
se serve da freqüência com que a melancolia
tem visitado nossos consultórios para nos propor uma
reflexão instigante: “A melancolia é a
identificação com o
objeto real porque esse
objeto como pura exterioridade sempre está à disposição
de um super-investimento narcísico, um investimento que
funciona como uma “hemorragia libidinal” que
converte toda a libido em libido do Eu, reforçando a
onipotência do único modo sempre resistente: a do dejeto,
do resto.” O sujeito é nada e leva ao limite o alcance
da palavra. Supor um modelo de clínica centrado nas
interpretações de conteúdo, é deixar escapar o problema
que nos afeta ao escutarmos estes pacientes.

Maria Helena Fernandes, em seu
trabalho A hipocondria do sonho e o silêncio dos órgãos:
uma leitura metapsicológica afirma que: “Esses
pacientes (somatizantes), entre alguns outros, colocam em
evidência a limitação da escuta do analista se esta tenta
se guiar pelo modelo clássico, em que o trabalho analítico
visa desvendar os sentidos ocultos do sintoma. Esses
pacientes parecem necessitar que o analista os acompanhe na
busca das palavras capazes de acolher os detalhes os mais
fortuitos da sua fala e colocá-los em relação com o que se
passa no seu corpo, permitindo, desta forma, que um sistema
simbólico possa ir lentamente se estabelecendo em torno do
evento somático”.

A escolha por estas questões
está marcada e marcando o problema da constituição de
novas formas de subjetivação e de sua relação com a
contemporaneidade. Os pacientes “sem queixas” que
parecem não fazer representação de seu sofrimento, os
estados-limites, a melancolia e os pacientes somatizantes
encarnam alguns destes desafios da clínica psicanalítica.

Tendo exposto meu produto na
feira , vamos agora discutir. Quarta feira, minha outra
curiosidade começará a ser satisfeita: o que será o dia
seguinte aos Estados Gerais da Psicanálise? Apenas uma
reunião onde se colhem testemunhos para reflexão? a Ação
Paralela? a Revolução Francesa? ou mais uma instituição?

Rio de Janeiro , 25 de maio de
2000

Miguel CALMON du Pin e Almeida

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