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Implosão de cultura

Temos oscilado, nós, seres humanos, entre o canibalismo violento e a aproximação erótica do outro diferente de nós

Temos oscilado, nós, seres humanos, entre o canibalismo violento e a aproximação erótica do outro diferente de nós

NO ÚLTIMO dia 11, não foi o World Trade Center o alvo. Nem o Pentágono. Nem tampouco os EUA ou Nova York. Nem o sistema nem o Ocidente. Aquilo que as imagens televisivas e as fotografias exaustivamente mostraram pode nos levar a pensar que havia um. Da mesma forma que os responsáveis pelo inqualificável ato o fizeram. Aí, o grande problema: todo alvo bélico não passa de miragem.
Pois aquilo que está visível, manifesto, tem sempre o poder de sombrear aquilo que está latente. Mais ainda, quando as imagens carregam a força da explosão e do fogo. Ainda que seja o de uma lareira, não devemos subestimar a potência hipnótica do fogo, dificultando a percepção daquilo que há por trás dele. Ou por trás da fumaça e da fuligem, como tão bem nos mostrou Sebastião Salgado, em artigo publicado logo após a terrível tragédia, enfatizando como os nova-iorquinos, de lá, se assemelhavam aos mineiros de Serra Pelada, daqui. Uma lente bem focada é capaz de denunciar ou de criar ilusões de ótica.
No último dia 11, ficou apenas evidente, pelas imagens terrivelmente insólitas dos aviões se chocando com as torres gêmeas, com seu consequente desabamento, o paradoxo básico humano. O paradoxo que está sempre aí, em nosso cotidiano, em qualquer lugar do mundo, seja ele primeiro ou terceiro, seja ele ocidental ou oriental. Desde sempre, temos oscilado, nós, seres humanos, entre o canibalismo violento _a selvageria da guerra_ e a aproximação erótica do outro diferente de nós mesmos. Toda a nossa cultura está calcada em nossa paradoxal miséria. O impacto e a comoção mundiais advindos daquelas imagens devem-se apenas ao seu alto poder representacional desse paradoxo básico.
É certo que a ficção, através do cinema, já havia muitas vezes tentado essa mesma representação. Sem sucesso, é claro. Pois sempre houve de nossa parte, espectadores, um distanciamento que, ao criar um espaço de alienação, tornava palatável tão terrível visão.
No último dia 11, nossa imaginação não foi mais capaz de recobrir o desamparo de nossa nudez com o véu de nossa onipotência. Ou de nossa arrogância. Torres gêmeas ou Babel, século 21 ou tempos bíblicos, realidade ou mito, o que ficou evidente foi que nossas construções, por mais portentosas que sejam, contêm sempre, potencialmente, um alto poder destrutivo. Tanto as torres quanto os aviões visam, manifestamente, aos céus. Mas ninguém há mais de negar que também visam aos infernos. Pois tanto os céus quanto os infernos, justamente por nos arrastarem para longe da Terra, são de muito mais fácil figurabilidade que o nosso miserável cotidiano terrestre. E é ele, nosso miserável cotidiano, que a tragédia dos últimos dias veio mostrar. Daí seu potencial demarcatório. Daí sua força simbólica. Pois a única possibilidade humana para a hierofania não passa de uma louca caricatura de Marte, o deus da guerra.
A Terra não é um lugar seguro ou não há nenhum lugar seguro na Terra, essa a verdade há muito tempo sabida, mas ao mesmo tempo sempre negada por nós mesmos, com a utilização de nosso bem maior, a cultura, mais como ferramenta ilusória para nossos escapismos megalômanos e paranóicos do que como ferramenta básica para o convívio com o outro e com as diferenças. Justamente por não ser um lugar seguro para nós, a Terra nos apresenta desafios de tal complexidade que, na maior parte das vezes, nossa incipiente capacidade para o pensamento tenta resolver de maneira simplista. O bem contra o mal.
Quando o homem denuncia em um gesto, à luz do dia, que ele mesmo é a mais eficaz das armas de guerra, é imperioso que todos os outros homens se detenham para refletir a esse respeito. O único arsenal antibélico a ser utilizado só pode ser o seu próprio antídoto natural: ele mesmo. Ou ele mesmo e o seu pensamento. Nenhuma amputação de sua humanidade vai resolver o problema. Nenhuma reação no mesmo registro, o da violência, vai sanar o problema.
Impõe-se que repensemos a cultura. Impõe-se que os governantes possam se abrir para refletir a respeito de violências políticas, canibalismos, miséria humana, megalomanias paranóicas, “aprimoramentos de raças” e desenvolvimentismos culturais antes que respostas inerciais e automáticas apertem o gatilho. Pois o poder explosivo da reação sem reflexão é imenso.
Se as torres gêmeas representavam de alguma forma o Ocidente e o Oriente, lado a lado, o erro básico em sua concepção foi que eles se espelhavam em sua igualdade. E com isso, as torres, de forma arrogante e prepotente, camuflaram e negaram as diferenças. Se olharmos um pouco melhor a natureza, vamos facilmente perceber que não apenas nem todos os gêmeos são idênticos como não há de fato gêmeos idênticos. Apenas aparentemente.
Democracia é a possibilidade do convívio na diferença. Seja ela de cor, credo, raça ou cultura. É fundamental que os governantes se unam não para, de forma maniqueísta, decidir onde está o bem e onde está o mal e tentar, ilusória e rapidamente, resolver com mais fogo e fuligem a questão, mas para reconstruir, marcando as devidas diferenças e em outras bases, alguma coisa que seja tudo aquilo que as torres gêmeas não conseguiram ser. E que, por isso mesmo, tiveram tão curta vida.
No último dia 11, nossas culturas implodiram, de alguma forma, lado a lado.

Marcio de Freitas Giovannetti é psicanalista, presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e diretor da Comissão de Psicoterapias e Profissões Afins da IPA (Associação Psicanalítica Internacional).

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