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Regulamentação ou reserva de mercado?

O debate sobre as atribuições específicas dos médicos retoma a questão dos limites e das competências dos psicólogos
O debate sobre as atribuições específicas dos médicos retoma a questão dos limites e das competências dos psicólogos
Se em algumas situações pairam dúvidas sobre os limites de competência dos vários profissionais dedicados ao cuidado com a saúde, não parece ser por força de lei que essas fronteiras vão se tornar claras. Está tramitando no Senado o Projeto de Lei no 25/2002, de autoria do ex-senador Geraldo Althoff (PFL-SC), que define o ato médico, isto é, quais as competências e os limites do exercício da medicina. Até agora, a iniciativa gerou mais protestos do que certezas acerca do tema. O problema são as diversas outras categorias ligadas à saúde, inclusive a dos psicólogos, entenderem que o projeto de lei poderá limitar suas próprias atividades e subordiná-las a uma supervisão médica. “Em caso de aprovação (da lei), o médico passaria a ser sempre o chefe do serviço prestado, pois, segundo o projeto, doença é de competência do médico. Ele deveria ser procurado para qualquer procedimento, para então encaminhar o paciente a tratamento com outro profissional”, argumenta Ana Bock, presidente do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP).
Para o médico psiquiatra Luiz Salvador de Miranda Sá Júnior, primeiro secretário do Conselho Federal de Medicina (CFM) e autor da Resolução no 1627/2001, a qual originou o projeto de lei, “estão fazendo um cavalo de batalha. Nós reconhecemos os direitos das outras profissões, mesmo porque isso é previsto em lei. Só queremos regulamentar os atos da nossa profissão, que, apesar de ser muito antiga, não tem os seus atos regulamentados. As demais profissões da área de saúde já têm os seus”.
Uma das polêmicas suscitadas pelo projeto refere-se à própria definição de ato médico. Segundo o texto em discussão, ato médico é todo procedimento técnico-profissional praticado por médico habilitado e dirigido para a promoção da saúde, prevenção, diagnóstico, terapia e reabilitação.
“A promoção da saúde é muito mais do que só o atendimento médico”, rebate Ana Bock. Embora estejam em lados opostos e defendendo posições contrárias, o médico reumatologista Antonio Pereira Filho, membro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), concorda com a psicóloga nesse aspecto: “A assistência à saúde hoje é inimaginável sem uma equipe multidisciplinar. Sozinho, o médico não consegue prestar um serviço de qualidade”, ele afirma. Mas o reumatologista também defende o princípio de que, numa equipe composta de profissionais de várias categorias, quem deve coordenar é o médico. Isso porque, segundo ele, o médico é o profissional com formação mais abrangente e visão global das questões ligadas à saúde. Tal preparo adviria de, durante os anos de formação, ser dada ao estudante de Medicina uma noção geral de todas as áreas ligadas à saúde. “Isso não quer dizer que o médico vá mandar nos outros profissionais. Ele é apenas a pessoa mais adequada para coordenar equipes de saúde”, diz Pereira Filho.

Quem é que manda

Esse ponto do projeto gerou muito desacordo e chegou a ser revisto pelos senadores. Ficou estabelecido que apenas os serviços envolvendo procedimentos de competência exclusivamente médica devem ser obrigatoriamente chefiados por eles.
Outro ponto discutível: em sua justificativa, o projeto de lei cita a medicina como uma profissão que remonta à Antiguidade, e as novas profissões de saúde, criadas no século XX, estariam realizando procedimentos antes exclusivos da medicina. Por isso a necessidade da regulamentação. Odair Furtado, presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), refuta essa justificativa. Para ele, o argumento histórico não se fundamenta. A seu ver, as outras profissões foram criadas porque a ciência avança, a complexidade das doenças muda e são necessárias novas especialidades para atender a essas demandas. “Essa medida significa claramente uma reserva de mercado por parte dos médicos. Se for aprovada, vamos argüir a sua inconstitucionalidade no Supremo”, assegura Furtado.
Ana Bock entende, além disso, que a lei constitui uma decisão retrógrada, seguindo o caminho inverso da tendência atual de atenção multidisciplinar à saúde. Para ela, o projeto de lei parte de uma visão puramente corporativa da profissão.
Do lado dos médicos, a crítica é rebatida com mais um argumento: em tese, a medida protegeria a sociedade, pois, estando mais bem definidas as atribuições médicas, seria possível exigir mais da capacidade desse profissional. Do outro lado, a polêmica continua e suscita o temor de uma restrição do acesso da população ao atendimento da saúde.
Toda a polêmica, entretanto, parece ter gerado ao menos um primeiro resultado positivo: o Conselho Nacional de Saúde (CNS), ligado ao Ministério da Saúde, solicitou a realização de audiências públicas, com a presença de representantes das diversas categorias, para debater mais amplamente a questão. É a primeira vez que profissionais da saúde estão discutindo em conjunto suas responsabilidades.
O projeto, aprovado com algumas ressalvas pela Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça do Senado, encontra-se agora em análise na Comissão de Assuntos Sociais (CAS). E, pelo jeito, ainda vai dar muito pano para a manga. Que o impasse sirva de oportunidade para um debate democrático, ético e maduro a respeito da responsabilidade de cuidar da saúde.

Adriana Macedo

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