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Revista PSYU Nº8 – Coluna ABERTA – Junho/2001

Sobre a arte de interpretar

Sobre a arte de interpretar

A origem do teatro é objeto de inúmeras especulações. Os povos do Oriente antigo têm suas culturas marcadas por rituais primitivos que se tornaram ao longo do tempo cerimônias teatralizadas. O teatro tal como o conhecemos hoje vem da Grécia antiga, dos cultos a Dionísio, deus do vinho e da fertilidade, celebrando as fontes da vida e o sexo. Ao longo do tempo, as máscaras animais dessas festas foram substituídas por máscaras humanas. Surgem a comédia e a tragédia.

No teatro de arena, o público assistia às tragédias encenadas de manhã e às comédias à tarde, numa celebração que ocorre ao longo do dia. O cidadão grego se identificava com as personagens e os mitos representados, o que lhe possibilitava atingir a catarse de suas emoções. Havia uma ligação com o religioso nas reproduções feitas dos episódios da vida dos deuses e das estórias dos mitos conhecidos pelo povo. A tragédia grega nasceu num período de expansão e esplendor da cultura e estava afinada com um sentimento coletivo de patriotismo e defesa do ideal grego. O espetáculo que se desenrolava no palco tinha um sentido reconhecido subjetivamente e culturalmente. O que têm tais celebrações a ver com a Psicologia? Segundo a definição de teatro de Fernando Peixoto: “um espaço, um homem que ocupa este espaço, outro homem que o observa, e a consciência de uma cumplicidade entre os dois”. Assim como na relação terapeuta-paciente. Quando um paciente entra no consultório o que se desenrola diante de nós, terapeutas, é um ser humano falando de suas impressões, emoções, idéias e sentimentos, percepções do mundo no qual vive, e como tudo isso repercute nele. O papel da terapia é buscar uma abertura desse ser humano para a compreensão de si mesmo. O terapeuta, então, coloca-se numa disposição essencial de receptividade ao outro, para que ele possa ser e se expressar como é naquele momento. Tal cumplicidade é necessária para que se dê uma perspectiva terapêutica.

Do mesmo modo que há uma cumplicidade entre ator e público, há entre terapeuta e paciente. Ambos caminham numa busca de sentido daquilo que é vivido. A psicologia surgiu num momento histórico em que o ser humano estava carente de significado para sua existência e para os males de que sofria (e ainda sofre…). Como dizia Nietzsche, “Deus está morto” e não há mais uma tradição culturale popular onde se possa reafirmar a própria humanidade e celebrá-la. Segundo Artaud,

“Para o teatro assim como para a cultura, a questão continua a ser a de nomear e dirigir as sombras: e o teatro, que não se fixa na lingüagem e nas formas, com isso destrói as falsas sombras mas prepara o caminho para um outro nascimento de sombras à cuja volta agrega-se o verdadeiro espetáculo da vida.

Romper a lingüagem para tocar na vida é fazer ou refazer o teatro: e o importante é não acreditar que esse ato deva ser algo sagrado, isto é, reservado. O importante é crer que todos podem fazê-lo e que para isso é preciso uma preparação.

Isto leva à rejeição das limitações habituais do homem e dos poderes do homem e a tornar infinitas as fronteiras do que chamamos de realidade.

É preciso acreditar num sentido da vida renovado pelo teatro onde o homem impavidamente torna-se o senhor daquilo que ainda não existe, e o faz nascer. E tudo que ainda não nasceu pode vir a nascer contanto que não nos contentemos em ser simples órgãos de registro.”.

Há alguns anos, tive o prazer de assistir a uma entrevista do ator Juca de Oliveira, em que ele dizia que a profissão de ator vem de um sentimento profundo de amor pelo outro e da vontade que temos de aproximar e compreendê-lo. Isto também é psicologia, pensei imediatamente. Para mim, a profissão de psicólogo também aparece como uma busca de compreensão, de entendimento, de relação com o outro, de encanto e reconhecimento de nós mesmos naquele que é diferente de nós, mas também igual, porque é humano.

Para essa busca existem vários caminhos, seja a psicologia, o teatro, a arte, ou outras profissões ou modos de atuarmos no mundo em que vivemos…

Assim como no poema Traduzir-se, de Ferreira Gullar:

“Uma parte de mim
é todo mundo
Outra parte é ninguém
fundo sem fundo
Uma parte de mim
Pesa, pondera
Outra parte delira

Uma parte de mim
Almoça e janta
Outra parte se espanta
Uma parte de mim é permanente
Outra parte
se sabe de repente

Uma parte de mim
é só vertigem
outra parte linguagem
traduzir uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?”

MARIA CLARA CARVALHO, ATRIZ E ESTUDANTE DO NÚCLEO DE PSICODRAMA DA PSICOLOGIA DA PUC-SP

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