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Lacan e a linguagem

O falante humano, acoplado à linguagem, nunca pode advir por inteiro na fala, dado que está submetido a partir de então a um imperativo categórico, porém não mais de cunho filosófico e kantiano. O imperativo que opera sobre o sujeito é o da plataforma do desejo, sendo o desejo uma falta do ser. Como parlêtre, o falante humano é um fala-ser, uma falta-para-ser, ele é finito, e infinitamente fala. Na linguagem, na fala, ele mostra sua falta, sua finitude. Daí que o humano fica capturado nas malhas de uma báscula eterna entre linguagem e desejo.
Assim como há em Heidegger a predicação de uma diferença transcendental entre Ser e ente, o que permite a constituição do terreno propício à construção de uma originalíssima ontologia fundamental, há também em Lacan a predicação de uma diferença transcendental que opera e se institui na origem da formatação de seu sistema de pensamento; a distinção entre o sujeito do conhecimento e o sujeito do significante. O sujeito do conhecimento, bastião da legalidade e da legitimidade da empreitada do saber filosófico, é o sujeito cartesiano por excelência, é o sujeito do cogito, o sujeito que pensa e articula o sentido e o significado da realidade em categorias ou conceitos.

De outro lado, o sujeito do significante é o sujeito instalado ab initio na ordem do simbólico e regido pela combinatória do significante.

Há, no lacanismo, também a correção da noção de sujeito, pois a descoberta lacaniana implica na produção de um novo estatuto de caracterização e uma nova compreensão da condição humana, na medida em que não é somente o homem que fala, mas, no homem e através do homem, isso fala. (ça parle). O isso, devendo ser aqui compreendido como a estrutura da linguagem.

Trata-se, portanto, da noção de signo em Lacan como tridimensional topológica, a partir do estabelecimento da prioridade: lógica, ontológica, topológica e semiótica do significante no processo de fundação do sentido, para um sujeito.

Com a indicação destas afinidades eletivas, fica mais próxima de nós a compreensão do estatuto do estranho e provocativo nome, no território da psicanálise, da categoria de inconsciente. O inconsciente é simplesmente um outro nome para o conhecimento simbólico na medida em que ele é um conhecimento que não se sabe, um conhecimento que o sujeito não sabe que sabe. Ele não reside em nenhum sujeito particular, nem no Outro (que não é um sujeito, mas um lugar), mas é intersubjetivo. Contudo, isto não nos previne de supor que em algum lugar existe um sujeito que possua este conhecimento simbólico.

Lacan pretende justificar a ocupação de sua posição de executor testamentário holográfico do significante por ter o significante um estatuto tridimensional, isto é, para além do sujeito e do outro, há a priori uma instância terceira, o Outro, a ordem simbólica, na qual o falante, aquele que golpeia a linguagem, através da fala, já está inserido, e que está presente na articulação lingüística do sujeito.

A noção de inconsciente epistemológico, como conjunto de premissas de argumentação que são estabelecidas por prova elênquica, indireta ou contra-fática, pode ser estabelecida a partir da diferença transcendental instituída no início da articulação do sistema de pensamento de Lacan entre, de um lado, o ego, instância da captação imaginária, fruto de alienações sucessivas, cuja matriz primeva encontra-se no estádio do espelho e, de outro lado, o sujeito, habitante do simbólico, ali inscrito e registrado, a partir de sua inevitável imersão na linguagem, cuja enzima catalizadora ou elemento possibilitador é proporcionada pelas etapas normativizadoras cumpridas no desfiladeiro do complexo de Édipo, enquanto funciona como condição de possibilidade ou plataforma a priori que institui a conexão entre o infans e a linguagem.

Trata-se, em Lacan, de compreender, relativamente à noção de função simbólica, o princípio inconsciente único em torno do qual era possível organizar a multiplicidade das situações particulares a cada sujeito.
Este outro espaço epistemológico, solidário à compreensão da eficácia da operatividade da lógica do significante é uma ontologia transcendental, ou, antes, aquilo que vem no lugar de tal ontologia.

Trata-se, por conseguinte, não da produção de uma nova ontologia mas da determinação de uma condição epistêmica. Temos em Lacan uma ontologia, porém, não no sentido estrito do saber da filosofia, mas de uma ontologia da hiância.

A utilização do termo ontologia não remete a poder compreender o campo descrito pelo saber da psicanálise como construindo ou indicando alguma ontologia ou remetendo a alguma ontologia, enquanto campo de positivação de um saber.

A referência ao termo informa antes uma negatividade, uma produção ao revés, uma efetiva impossibilidade de pensar-se em qualquer ontologia em função do sujeito encontrar-se despossuído de conteúdo positivo e de uma mola gnosiológica cartesiana que lhe permitiria produzir um saber que pudesse constituir um espaço ontológico.

No espaço lacaniano, a dobra de que é constituído o humano é uma dobra hetero produzida. A reduplicação do sujeito e de sua performance cogitativa não pode ser operada aqui a partir de um pensar autônomo.

No lacanismo, o sujeito, ao iniciar sua trajetória de pensamento, já se encontra inserido no interior do espaço de uma dobra, de uma clivagem, posto que ele já aparece como resultado de uma clivagem que é efetivada em seu ser, no momento mesmo de sua parturiação como sujeito humano.

Em Kant, se o humano tem a sua disposição a possibilidade de movimentar-se no mundo do simbolismo, a partir da utilização do símbolo, nem por isso está autorizado a objetivar o pensamento, de apresentá-lo enquanto objeto. Os símbolos existem para tornar discernível o que é cogitável e o que é conhecível. A existência do símbolo representa a possibilidade humana de responder à existência de um mundo numenal. O símbolo atesta ao mesmo tempo a existência de limites estritos à faculdade e à capacidade do homem de falar de si-mesmo, de sua alma, sua consciência, sua psicologia e seu mundo interior.

Em Lacan, trata-se de compreender que seu pensamento se lança em direção a uma interpretação lingüística do simbolismo enquanto condição da possibilidade de conhecer. Desta forma, Kant e Lacan constituem-se em elos da mesma corrente cognitiva.
Compreendemos, desta forma, a hipótese básica lacaniana, que percorre toda a sua obra, da anterioridade e autonomia do simbólico, em relação à fala individual do sujeito. Podemos pensar, assim, na necessidade a priori da linguagem e do simbólico como momentos do contratualismo transcendental necessário à produção e à constituição do humano, no sentido de que o simbólico funciona como o a priori do homem.

Isto implica dizer que o ser humano é instado a viver numa outra ordem de realidade instituída pela regulação a priori do simbólico. O simbólico operando como condição de possibilidade da própria gênese do humano que, a partir disto, não pode ser considerado um dado natural, mas uma descontinuidade no real.

A atividade de amálgama a que Lacan submete os diversos conceitos que incorpora, parece indicar uma necessidade de atuar como hológrafo do significante, o que lhe permitiria restituir o caráter tridimensional do significante. Ou seja, para além da singela compreensão da obsessão filosófica de visada cartesiana, que torna simétricos sujeito (produtor de conhecimento) e objeto tematizado (Telos do conhecimento), Lacan sinaliza a existência, ou mais propriamente a insistência, de um terceiro elemento do jogo lingüístico, que é a própria ordem simbólica, que atua como condição de possibilidade da própria existência do jogo.

Assim, Lacan atuaria como executor testamentário holográfico do significante, na medida em que sua teoria opera uma exumação do caráter fundador da ordem simbólica enquanto condição de ancoragem do humano-¬ser. Lacan parece pretender ocupar esta posição de reedição laica do gênesis, no sentido em que procura recriar o próprio momento de instauração do humano, que dar-se-ía, para ele, a partir do comércio inevitável com o significante.

Daí que, no caso de Lacan, a auto-imolação como testamentário holográfico do significante, produziu-lhe o efeito de co-pertencer ao estilo barroco, em sua empreitada de tentar fazer o significante falar. A tarefa a que se propôs o dândi parisiense da psicanálise seria a de produzir a extração para fora da linguagem de algo que lá está preso.

A partir da compreensão de que o ser humano, situa-se para além do real que lhe é biologicamente natural, no sentido de que o humano para constituir-se como tal, deve ocupar um topos subversivo para além da plataforma do ancoradouro biológico, e passar a habitar o mundo da linguagem, sendo que esta metamorfose, esta transmutação do natural ao cultural, do biológico ao simbólico, podemos compreender que a psicanálise é teoria do desejo na sua relação ao Outro.

Compreende-se, desta forma, a necessidade da produção de um espaço epistemológico específico e adequado à extração do significado da coletânea de conceitos produzidos no campo de saber da psicanálise, na medida em que a radical heteronomia do sujeito humano, lhe ocasiona a ek-sistência de um hiato, de uma clivagem em si-mesmo, de uma clivagem na natureza humana.

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