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Psicossíntese Analítico-Compreensiva XI – Fábula do "cuidado" original

Introdução

A expressão "cuidado", ou "preocupação", aqui usada, refere-se à, latina "cura" citada na obra heideggeriana. Termo esse, expresso em língua alemã por Sorge e em inglês por care; cura em espanhol, e português, nas respectivas versões dessa obra. A questão etimológica enquanto tal escapa ao propósito deste artigo, daí que para ulterior discussão faz-se necessário a consulta à própria obra.

A descrição e interpretação apresentadas inserem-se numa preocupação axiológica a respeito do projeto humano. Tenta-se fidelidade à proposta analítico-compreensiva, enquanto válida à tarefa de estudo e reflexão sobre o fenômeno humano.
Fábula: sua descrição(1)

Certo dia quando Cuidado atravessava um rio, viu argila; pensativo, apanhou um pedaço e começou a dar-lhe forma. Enquanto pensava no que tinha feito chegou Júpiter. Cuidado pediu-lhe que desse espírito à forma, no que ele concordou com prazer.

Mas quando Cuidado quis colocar-lhe seu próprio nome, Júpiter proibiu e, ao invés disso, exigiu que fosse colocado seu nome . Enquanto Cuidado e Júpiter disputavam, apareceu Terra querendo que seu nome fosse dado à criatura já que ela a tinha provido com parte de seu corpo.

Eles pediram a Saturno para ser o Juiz, e ele proferiu a seguinte sentença, que pareceu ser justa:

"Visto que tu, Júpiter, lhe deste espírito, receberá esse espírito em sua morte; e uma vez que tu, Terra, lhe deste seu corpo, tu receberás seu corpo".

"Mas, já que Cuidado formou primeiro esta criatura, a possuirá enquanto viva; e por causa da disputa que neste momento existe entre vocês quanto ao nome, seja chamada de "Homo" devido a que é feita de humus (terra)".

Interpretação

Cuidado original

Chama de inicio a atenção a imagem da beleza do lugar. Cuidado estava atravessando um rio onde água pura, terra fértil, ar, luz e outros elementos naturais essenciais à vida encontram-se reunidos. O próprio fluir das águas teria em si a significação de constante mudança ou renovação.

A imagem do rio também representaria o espaço aberto tanto de união quanto de separação entre duas regiões ou territórios. Essa duplicidade de sentido sugere de per si uma natural imprecisão. Exatamente esse lugar iria se transformar em fórum de singular disputa entre os deuses.

Como por coincidência, nesse preciso lugar o pensativo Cuidado colhe um pedaço de argila do chão. Após esforço inicial desprende o material com suas mãos, o aproxima com zelo até perto de si e então se dedica à tarefa de moldá-lo.

Nessa modelagem na proximidade de si, Cuidado certamente imprimiu características significativas suas à forma sendo modelada. No dizer de Heidegger2, a expressão cuidado apresenta dupla significação: (1) "tentativa angustiosa"; (2) "dedicação". Ambas seriam constitutivas da natureza do projeto humano.

No dizer de Sêneca3 a perfeição de Deus é realizada pelo bem e a perfeição do homem pelo cuidado. Em outras palavras, se Cuidado, da fábula, não tivesse imprimido características significativas suas à forma modelada, esta teria ficado imperfeita mesmo que dotada de espírito por Júpiter, o mais poderoso dos deuses.

Certamente na perfeição da natureza humana pensava Cuidado da fábula, no dia em que atravessava o rio. Manifestamente, tinha em vista a realização do seu projeto.

Cuidado e projeto existencial

Um projeto de existência naturalmente exige fundamento4, isto é, precisa ser instituído a partir da tentativa de explorar possibilidades de si próprio. Explorar possibilidades pode, por sua vez, implicar esforço, dificuldade, risco de aventurar-se, tentativa angustiosa.

Quando Cuidado, cogitativa, atravessava o rio, quiçá aflita, certamente explorava possibilidades no espaço aberto e na beleza do lugar, onde elementos naturais essenciais à vida se encontravam reunidos. Obviamente riscos, dificuldades, imprecisões naturais também estavam presentes.

Conforme visto, a expressão cuidado apresenta duas significações: (1) "tentativa angustiosa"; (2) "dedicação". Instituir um projeto exemplifica a primeira significação.

Mas, junto com instituir um projeto faz-se também necessário prover-lhe uma base de sustentação, enraizá-lo. Cuidado, pensativo, viu argila no chão, após um esforço inicial desprende o material com as mãos, o aproxima até perto de si, se entrega à tarefa da modelagem e preocupa-se ainda de prover espírito à forma junto a Júpiter.

"Dedicação" é a segunda significação de cuidado. Enraizar um projeto exemplifica essa significação.

Nessa mesma ordem de prioridade, ao prover-lhe uma base de sustentação é preciso, também, legitimar ou justificar a razão de ser desse projeto assumido de existência. Cuidado da fábula, para legitimar seu projeto, quis atribuir-lhe seu próprio nome. Conseguiu do juiz Saturno o direito de posse da criatura em vida.

Júpiter e Terra, também participantes do projeto, quiseram legitimá-Io cada um no seu nome. Conseguiram, respectivamente, do juiz Saturno o direito de posse do espírito e do corpo da criatura após sua morte.

Nessa legitimação, na sentença de Saturno, deus do Tempo, destaca a parte a favor de Cuidado: "Mas, já que Cuidado formou primeiro esta criatura, a possuirá enquanto viva". O tempo-vida da criatura adquire especial interesse, significativamente não houve apelação da decisão.

Preocupação e cotidianidade

A vida cotidiana está essencialmente entregue aos afazeres, ao mundo da ocupação, à dedicação aos negócios, à incumbência nas tarefas, ao zelar pelos interesses, em suma à ocupação de cuidar da vida. Preocupação seria basicamente ocupação.

A significação de "tentativa angustiosa" de cuidado no cotidiano tende a desaparecer. A angústia latente fica encoberta pela tendência à fuga face a estranheza.

O estranho, o inexplicável, o assustador, o fatídico, são evitados no mundo da ocupação. Elementos negativos esses que poderiam levar à ruptura ou desestruturação do projeto existencial. Nessa desestruturação, a angústia latente ao ficar descoberta torna-se crise existencial. Experiência esta que, por sua vez, apresenta dupla significação, uma negativa e outra positiva.

Na sua negatividade, a totalidade das coisas perde importância, e o mundo enquanto tal fica vazio de sentido. Na sua positividade ou superação ter-se-ia a revisão e/ou reformulação total do projeto de vida.

Mas, a vida cotidiana está essencialmente entregue ao mundo da ocupação. Isto é, a significação de "cuidado" e "dedicação" predomina sobre a significação de "tentativa angustiosa" de preocupação.

Daí a raridade factual do fenômeno crise existencial ou angústia. Assim a sentença de Saturno estaria sendo efetivamente cumprida. A vida cotidiana seria um claro exemplo.

Conclusão

Conclui-se pela riqueza significativa da fábula apresentada, valores ético-estéticos, ideal de perfeição, noção de possibilidades e limites e de justiça, entre outros, são elementos necessários ao projeto humano.

A modelagem, revisão ou reformulação de um projeto de vida, precisa desses elementos. Isto faz pleno sentido, por exemplo, no trabalho terapêutico que por excelência também envolve o sentido de preocupação, tentativa angustiosa, cuidado e dedicação. A dimensão filosófico-existencial, axiológica e educativa fazem dessa fábula uma fonte de inspiração necessária às várias ciências preocupadas e/ou sensibilizadas com o humano.

Referências

1. Citado por HEIDEGGER, MARTIN – Being and Time, p. 242.

2. Cf. Heidegger, M. Being and Time. p. 243.

3. Citado por Heidegger, M. Being and Time. p. 243.

4. Heidegger M. Sobre a essência do fundamento. p. 63.

Bibliografia

HEIDEGGER, MARTIN Being and time. Nova Iorque: Harper & Row, 1962.

____. Sobre a essência do fundamento. São Paulo: Duas Cidades, 1971.

Acesso à Plataforma

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