Gestos Maternais Atendendo gestantes adolescentes em situação de abrigo.
Cena 1:
Ana, Cláudia, Jussara, Maria e Evanilde estão participando de uma sessão de grupo para adolescentes grávidas. Diante da proposta de que poderiam fazer qualquer pergunta e expressar seus sentimentos e dúvidas, faz-se silêncio absoluto e nenhuma delas se manifesta durante toda a sessão.
O Grupo de Gestantes, moradoras do Abrigo, precisava de um método facilitador de sua expressão, criamos então um jogo projetivo de palavras com o qual pudessem jogar e assim se expressar. Falar e ser ouvida tornou-se importante para cada uma delas!
Cena 2:
Janete está deitada em sua cama , sem forças para falar ou sequer levantar os braços para receber sua terapeuta que veio visitá-la. Ela está grávida de 5 meses, mora em uma casa abrigo e está com hiperemese desde que soube que seu bebê era uma menina. "Tenho medo que ela cresça e fique grávida aos 13 anos, como eu"
A terapeuta de Janete realiza as sessões em sua casa, leva-lhe frutas e procura falar com ela ao telefone todos os dias em que não há sessão. Janete já saiu da cama, está se alimentando e não apresenta mais o quadro de hiperemese. Ela precisava de alguém que se preocupasse realmente com ela, que saísse do lugar de especialista, pois em sua pequena trajetória de vida já havia sido abandonada aos três anos pela mãe biológica e aos onze pela adotiva. Esta é a melhor terapia para que Janete possa passar por esta experiência tão difícil e continuar vivendo, sonhando e adolescendo!
Janete, Ana, Cláudia, Jussara, Maria e Evanilde são adolescentes grávidas moradoras de casas abrigo, foram abandonadas muito cedo por seus pais e vivem a difícil história da intersecção entre a maternidade , a adolescência e o abandono. Os nomes são fictícios, as histórias não. Adolescer quer dizer transformar, florecer, amadurecer, e conjugar este verbo juntamente com o gestar, faz desta parceria uma conjugação de difícil declinação. Gestar adolescendo ou adolescer gestando, é o que podemos chamar de uma situação com dose dupla de crise, que se torna intensificada pela situação de abandono.
Todos os anos um milhão de adolescentes dão à luz no Brasil, o que significa que 20% dos bebês que nascem são filhos de adolescentes, e uma boa parte delas, com história de abandono. E foi à partir do contato com algumas destas meninas, que pude redimensionar o atendimento à gestantes, para melhor atender suas necessidades, algumas semelhantes a de todas as mulheres grávidas, outras muito diferentes, o que exigia novos dispositivos. Ao invés de abordarmos a gestante adolescente a partir de modelos de atendimento e técnicas pré estabelecidas, o método e as técnicas são "criados", recriados ou transformados a partir das impressões com as quais nos deparamos.
O Grupo de Gestantes tem como objetivo criar um espaço acolhedor para a expressão das ansiedades, medos e trocas entre as participantes, assim como propor trabalhos corporais que respondam às necessidades que o grupo expõe, preparar para o parto e para o exercício da maternidade. O Grupo de gestantes adolescentes do Abrigo assume características especiais na medida em que elas estão vivenciando a não aceitação do estado grávido e a impossibilidade de chorar, pedir e expressar, que lhes foi imposta desde cedo. Novos dispositivos são criados em função da escuta, que se dá através das entrevistas individuais, das falas "ou do silêncio"que o grupo assume no princípio das sessões.
O Grupo de Gestantes adolescentes, em situação de abrigo, foi criado para responder às necessidades específicas destas meninas, para que elas pudessem trocar experiências comuns, maternar umas às outras e para que pudessemos materná-las com dispositivos especiais, possibilitando a "fala" para quem nunca pôde falar!
A gestação coloca a mulher em um estado regredido, num estado de dupla identificação, da grávida com o feto, e com sua própria mãe. Todas as gestantes revivem o vínculo primitivo com sua mãe, têm que lidar com a imagem materna internalizada, sentimentos infantis, representações culturais acerca do papel de mãe e de mulher.
Atendimentos individuais, oferecidos paralelamente ao Grupo, são essenciais para que cada menina possa ter seu "terapeuta-mãe" disponível, possibilitando a reedição do vínculo primitivo, onde a maternagem permeia todos os gestos.
O terapeuta se transforma, ao longo do processo, em depositário da transferência materna em recortes positivos e negativos. A intenção não é fomentar o vínculo mãe-bebê, mas fornecer o setting necessário para que aconteça o que é possível, no sentido do bem estar e da vida. Pode ser que aquela menina de 13 anos, não tenha possibilidades de aceitar a gravidez e formar um vínculo com seu filho; mas que ela possa superar a ameaça de morte que está revivendo, ao "dialogar"com a mãe má internalizada.
Em sua maioria, as adolescentes, com história de abandono, desenvolvem uma desconfiança absoluta diante de qualquer pessoa que expresse o desejo de ajudar, pois a capacidade de criar vínculos foi prejudicada e se encontram diante de um conflito enlouquecedor, onde as forças biológicas a colocam frente à relação mais íntima que existe: um dentro do outro. A possibilidade de estabelecer um vínculo de confiança com o terapeuta é o que pode permitir que ela reedite sua história com seu filho e para isto o terapeuta deve fazer o que é necessário no momento, redimensionando o setting terapeutico.
Para cada história da qual fiz parte, como terapeuta ou supervisora, manter o olhar curioso e a postura de estranhamento, tornou-se imprescindível para que pudesse perceber a necessidade destas adolescentes e prescindir dos modelos, adaptá-los ou transformá-los.
por Eliana L. Pommé psicoterapeuta, coordenadora do Serviço de Atendimento a Gestantes e Puérperas da Clínica do Instituto Sedes Sapientiae, docente convidada para os cursos de Graduação e Especialização da Escola de Enfermagem -USP