Mateus, réu criminoso ou vítima social? Tomou Droga E Foi Matar Gente No Cinema por Mário Quilici "Essa é a pior coisa que poderia ter acontecido na minha vida. Matheus sempre foi um filho problemático", declaração do pai do jovem Mateus que disparou uma metralhadora dentro do cinema, matando e ferindo pessoas. Nesta semana uma tragédia caiu como uma bomba, na cabeça dos paulistanos: um jovem, formando em medicina e de boa aparência, entra num cinema e, com uma metralhadora, começa a atirar. Mata três pessoas e fere outras tantas. O número de mortos é pequeno porque, felizmente, ele havia acabado de adquirir a arma e não sabia manuseá-la. Os shoppings, redutos de segurança da classe média, estão começando a dar sinais de que não são tão seguros assim, justamente porque a população está cada vez mais doente. Os símbolos de status que nos serviam de referência (profissão, formação cultural, condição social), para liberar nossa confiança em relação ao próximo, começam a demonstrar que não são tão confiáveis assim. O que acontece nesses casos? Não posso discutir a patologia do rapaz porque nem mesmo o psiquiatra dele teve tempo para se situar nesse sentido. Dessa forma, seria leviandade sair levantando hipóteses a torto e a direito, como já fizeram alguns diante das câmeras de televisão. Fechar diagnóstico de um processo patológico nem sempre é uma tarefa fácil. As patologias raramente se apresentam de forma rasgada a ponto de poderem ser identificadas com uma simples olhadela. O assunto é sério demais e eu não tenho a menor intenção de entrar numa roubada dessas. Quando faço a pergunta, meu objetivo é discutir alguns valores de nossa cultura que por estarem fortemente arraigados na população, podem fazer muitas vitimas como é o caso desse rapaz e daqueles que foram por ele atingidos na sala de projeção. Não é só ele. Há alguns anos, um estudante de macatrônica da Politécnica da USP, matou dentro da própria sala de aula, a ex-namorada e seu atual namorado. Mas eles são vitimas? São. Em certo sentido são vitimas de um sistema de valores hipócritas e tacanhos. Minha opção nesse artigo é discutir um outro lado da questão: as famílias que não querem enxergar os filhos problemáticos que têm. No caso de Matheus seus pais perceberam, em algum momento da adolescência, que o rapaz era diferente. Que havia algo de errado com ele? Perceberam e dizem que Matheus foi tratado (não dizem como) da infância até a adolescência. Será que os pais tiveram participação ativa nesse tratamento? É de estranhar que hoje, com tantos recursos, tanto nas áreas de psicoterapia como na farmacologia, Matheus não tenha tido alguma melhora ou pelo menos algum controle sobre sua patologia. Existem patologias que são incuráveis. Mas pelos dados que surgem depois da tragédia, não me parece o caso. Os pais acreditaram que em SP, Matheus ficaria melhor, amadureceria. Mas mesmo aqui em São Paulo, o jovem vinha dando problemas. Foi expulso de cinco repúblicas onde morou. Não tinha amigos. Os pais tiveram que alugar um apartamento para que ele morasse só. Tinha carro, apartamento e mesada. Alguma coisa errada aí? Os pais alegaram que ficaram tranqüilos porque em São Paulo, Matheus estava sob tratamento psiquiátrico. Até onde pude saber, o tratamento psiquiátrico só teve inicio há um mês. Não sabemos muito sobre Matheus. Seus pais devem estar constrangidos com tudo o que se passou. Pessoas foram mortas, feridas e sofreram perdas irreparáveis. Nada vai mudar o rumo dessas situação: a morte é irreversível e Matheus sabia disso melhor que ninguém. Mas poderíamos usar sua história e comportamento para refletir sobre a nossa relação com a doença mental principalmente quando ela acontece dentro de nossa própria casa. Há bem pouco tempo, um amigo de infância, que eu não via há muitos anos, procurou-me bastante assustado. Seu filho, um jovem de 21 anos, estudante de engenharia e muito inteligente, havia tido um desentendimento com a namorada. O motivo do desentendimento fora a suspeita infundada do rapaz de que a jovem poderia estar flertando com outro rapaz da vizinhança. Ele deu tamanha surra na moça, que ela acabou internada num hospital com um braço quebrado e muitos hematomas pelo corpo. – Não sei o que deu nele, me dizia o pai desconsolado. – Ele nunca viu isso em casa. Eu nunca levantei a mão para a mãe dele. Como é que ele fez isso com a moça? Eu não consigo compreender, é um rapaz inteligente, não é louco! Enquanto ele falava, lembrei que nós nos afastamos justamente por causa de Marco Antônio. Numa ocasião, fui convidado para um churrasco na casa dele. Era uma reunião dos antigos colegas de infância. Conheci seus três filhos. Marco Antonio é o mais velho. Pareceu-me uma criança estranha, agressiva, competitiva e intolerante. Divertia-se maltratando o cão da família e tinha um limiar muito baixo para frustrações. Na primeira oportunidade que tive, depois do churrasco, chamei José Antônio (que é o meu amigo) e disse o que tinha percebido. Ele ouviu sem dizer uma única palavra. Depois disse que eu devia ser um péssimo profissional porque seu filho era uma criança encantadora: um menino corajoso, viril e inteligentíssimo. Afastou-se de mim. Voltando ao encontro atual, perguntei a ele se acreditava mesmo que havia uma relação de exclusão entre a doença mental e a inteligência. Ele ficou me olhando um tanto surpreso e disse que os loucos não podiam ser inteligentes. Então lhe perguntei sobre Hitler, um louco famoso que fora, de alguma forma, inteligente a ponto de levar um país inteiro a cometer atrocidades. Havia outros tantos loucos na história que, apesar da inteligência, não se livraram de desenvolver uma séria patologia mental. Ou quem sabe, alguns tipos de inteligência podem estar estreitamente ligados à doença mental? Depois de conversarmos por algum tempo e ele então, ficar um pouco mais desarmado, começou a lembrar que haviam algumas coisas no comportamento do filho que eram de fato muito estranhas. Lembrou-se de inúmeras queixas de sua mulher e de seus outros dois filhos. Lembrou-se de queixas das professoras e dos colegas de escola. Quando foi embora, dei-lhe o telefone de um psiquiatra amigo meu. O rapaz está em tratamento e é portador de uma grave patologia mental. Assim como meu amigo, os pais desses jovens sabem que há algo de errado com seus filhos. Eles são diferentes, apresentam comportamentos estranhos. Atitudes que não são características para os jovens de sua idade. Mas por que não fazem nada? A resposta é simples. Primeiro porque nossos filhos, sempre acabam por se transformar numa extensão nossa e assim, é complicado assumir que um pedaço nosso possa apresentar algum "defeito". Depositamos neles todas as expectativas e os encarregamos de realizar tudo aquilo que não conseguimos. Faz-se vistas grossas, justifica-se comportamentos que, em outras pessoas, despertariam nossa indignação. Se o filho é inteligente, é o que basta. Todos se alegram com isso, inflam o peito e gritam aos quatro ventos a proeza das notas escolares, dos troféus e medalhas nos esportes, dos triunfos nos cursos de língua etc. Os inteligentes têm mesmo a fama de serem diferentes. Não sei de onde nasce esse mito, mas ele existe. Os inteligentes são quietos, temperamentais e inibidos. Muitos dizem que pessoas inteligentes têm a testa larga. Pura lenda. Uma pessoa inteligente tem uma personalidade com características que podem ir da completa extroversão à total introversão. Pode ser rica ou pobre, hetero ou homossexual, branco, preto, amarelo ou vermelho. Pode ser culto ou não. O inteligente pode ter um bom caráter ou um mau caráter. Enfim, as pessoas inteligentes podem ter diversas características de personalidade e não, necessariamente, estar inserido num estereótipo. Existem inúmeros indivíduos de rara inteligência, nas áreas mais diversas de nossa sociedade, inclusive entre os delinqüentes das prisões. A ciência hoje está com todos os canais abertos para fornecer orientações e serviços a todos aqueles que deles necessitam. Mas levar o filho ao psicólogo ou psiquiatra, é um fim de mundo. É o que me dizia uma senhora outro dia: – O Senhor está querendo dizer que minha filha é louca? Não, ela só tem um problema de comportamento por causa das más amizades. As más amizades são o bode expiatório mais usado depois do capeta, Jesus Cristo e Deus. Os filhos são sempre desencaminhados pelos demais e assim, como idiotas que são, precisam da eterna tutela dos pais. Esse tipo de julgamento já mostra de cara, o tipo de relacionamento que esses pais têm com seus filhos e o motivo pelo qual eles apresentam esses quadros de delinqüência e desajuste. A ninguém ocorre examinar o fato de que se, o filho toma drogas, ele deve ter motivos próprios e que, não foi, necessariamente, induzido. Creio que, se o indivíduo é induzido, é porque há terreno fértil para isso. A semente nunca brota em solo estéril. FBI têm uma vasta literatura resultante das investigações, sobre os serial killers , que abundam em terras do Tio Sam. Eles começam a surgir por aqui. É comum ouvir que o cara era quieto, afável, freqüentava a igreja e trabalhava como todos os demais cidadãos. Teve um surto? Não. É conversando com os pais e irmãos dessas pessoas, que logo se ouve alguns comentários que demonstram que eles, não eram assim tão normais. Em comum, todos tinham um comportamento retraído e baixa capacidade para tolerar frustrações. Os hábitos e os comportamentos eram sempre diferentes do comum para os indivíduos daquele grupo etário e social. Seu grupo de amigos, quando os tinha, resumia-se a uns dois ou três indivíduos com características semelhantes.
A psicologia e a psiquiatria têm hoje um corpo de teorias empiricamente determinadas que podem ajudar os pais a encontrar caminhos que tornem menos duro o destino de seus filhos problemáticos. A biologia tem medicamentos cada vez mais sofisticados que permitem às pessoas, seriamente comprometidas pelas doenças mentais, levarem uma vida integrada. Mas temos um sério problema cultural. Atualizamos nossos computadores, para garantir um desempenho cada vez mais eficiente em nossas tarefas do dia-a-dia. Trocamos nossos carros por modelos cada vez mais bonitos e eficientes com sofisticações nunca dantes imaginadas. Nossos eletrodomésticos seguem o mesmo rumo dos automóveis. Mas nós não atualizamos nossas informações e conceitos sobre os problemas emocionais. Não percebemos que os problemas mentais modificam-se com o progresso, tornam-se piores, mais difíceis de lidar. Nessa área, as pessoas continuam a pensar como seus avôs, mesmo que sentados diante de um Pentium IV, navegando pela Internet, deixando que um mundo de informações atualizadas sobre a vida seja despejada sala adentro. Não é vergonha procurar um profissional para orientar-se em situações difíceis. Muitos casamentos ganharam colorido depois de algumas sessões de análise. Muitos problemas de disfunções sexuais em jovens, foram resolvidos, com uma terapia breve. Dificuldades nos relacionamentos sociais, no trabalho e na família puderam ser sanados com psicoterapia. Crianças com sérios problemas de desajuste no relacionamento social, escolar e familiar, são tratadas com sucesso. Não é vergonha admitir que chegou um momento em que não sabemos lidar com determinadas situações. Não é vergonha reconhecer a humanidade e a falibilidade de nossos métodos de educação. Vergonha é fazer de conta que nada acontece e um dia, chegar em casa e receber a notícia que nossos filhos, tão bem criados, estão atrás das grades, com uma ou mais mortes em sua conta. Nossa infelicidade pode fazer desabar outros lares inocentes. O pai de Matheus pede às vitimas que perdoem seu filho por que ele é doente. Nós sabemos disso e compreendemos. Mas será que o pai de Matheus tem a exata noção do que significa a vida daquelas pessoas que seu filho matou? Será que pode avaliar o significado dessas perdas para familiares e amigos? Talvez o pai de Matheus e alguns outros pais, possam pensar nisso com cuidado. Talvez uma boa avaliação psicológica/psiquiátrica evite que seus filhos venham mais tarde a gastar o dinheiro e a vida com drogas ou então, evitem que outras vidas se percam e então, tenham que gastar seu dinheiro com aquele "cara" que está em todas as capas de revista das crônicas policiais: seu filho. |