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Estratificação dos Sentimentos

Os sentimentos podem ser divididos de acordo com um critério estratificado, do ponto de vista fenomenológico, que apresenta um interesse extraordinário em patopsicologia clínica.
Scheler estabeleceu a seguinte estratificação:

(1) Sentimentos sensoriais

(2) Sentimentos vitais (ou cenestesia)

(3) Sentimentos anímicos (ou sentimentos do ego)

(4) Sentimentos espirituais (ou da personalidade)

Os sentimentos são estados do ego; para compreender bem essa definição basta contrapor o exemplo de um sentimento puro, seja com a sensação, que é apenas o fenômeno neurofisiológico, por exemplo, nos reflexos, automatismos e demais vias inconscientes, seja com o de uma percepção, que é o registro desta sensação em nível cortical: por exemplo, uma percepção visual. No indivíduo se reproduz o que tem diante de si, a paisagem ou a casa, e isto acontece tendo-se em conta que está experimentando algo que corresponde a uma reação de algo exterior e objetivo. Ao contrário, quando alguém diz que está alegre, ou triste, ou colérico, realmente descreve não uma paisagem externa, mas interna, isto é, está designando uma maneira de estar consigo mesmo, é a isto que se chama estados do ego. Em contraposição às percepções e ao pensamento, que estão sempre dirigidos à captação do mundo exterior, os sentimentos vêm sempre revelar-nos estados do ego.


(1) Sentimentos sensoriais

Na vida psíquica nos encontramos com fenômenos que se consideram mais próximos à corporeidade que outros. Esta idéia se acha implícita nos conceitos de pessoa profunda e de somatopsique. Mas nestes conceitos é necessário introduzir algumas distinções. Todos os atos psíquicos que se dão no homem se acham ligados à sua corporeidade. O pensar com intensidade traduz-se em uma contração mínima da face, reveladora da atenção empregada, e é considerado mais distante da corporeidade que o estar cansado, por exemplo. Os processos psíquicos próximos à corporeidade servem ao instinto de conservação.

O principal exemplo de sentimentos sensoriais é a dor. Em primeiro lugar, apresenta-se como localizado em uma parte do corpo. Em segundo lugar, tem certo caráter de sinal, para indicar-nos que algo está ocorrendo ali. A fome e a sede, que também podem incluir-se aqui, têm o mesmo caráter como sensação localizada na boca do estômago ou na cavidade oral, e nos advertem de que algo nos falta. Em terceiro lugar têm um caráter atual, vale dizer, existem em um momento determinado; depois de satisfeitos, passam; podemos ter deles uma lembrança, mas não se prolongam em nossa vida; eles duram o quanto durar a percepção mesma.

Há um trânsito entre os sentimentos e as sensopercepções, às vezes, de difícil identificação. Nós distinguimos bem o que é uma sensopercepção pura de tato, por exemplo, do que é um sentimento de prazer. A análise destas duas experiências psíquicas nos mostra que são qualitativamente distintas, compreendendo muito bem que devem descrever-se em duas epígrafes diferentes, como são sentimentos, por um lado, e sensopercepções, por outro. Mas há outros fenômenos nos quais esta distinção não aparece tão clara, de modo que parece que participam das qualidades da sensopercepção, por um lado, e das qualidades do sentimento, por outro. A mesma experiência dolorosa, todas as experiências cenestésicas, nos podem servir de exemplo. Na dor, umas vezes nos parece que é uma sensopercepção, mas ao mesmo tempo é um sentimento; a mesma linguagem nos diz: produz dor a ausência de um amigo, isto é, este uso da palavra dor, na vida dos sentimentos, nos demonstra como há uma zona de transição entre ambos, a qual foi chamada de sentimentos sensoriais.


(2) Sentimentos vitais (ou cenestesia)

Os sentimentos vitais se distinguem dos anteriores, em primeiro lugar, porque não estão localizados. Como tipos fundamentais de sentimentos vitais, temos, por exemplo, o frescor vital, a depressão vital, as sensações de angústia, de repugnância, de fadiga etc. Do ponto de vista médico têm uma importância extraordinária, porque a anamnese da maioria das enfermidades está estruturada sobre a presença de sentimentos sensoriais e de sentimentos vitais.

Para saber o que um enfermo apresenta, temos dois caminhos: um que é o da exploração objetiva, os dados que nos dão nossos meios habituais de exploração; outro, que é o relato que faz o enfermo de seu mal. Em muitos casos, tem mais importância o relato que faz o enfermo sobre sua enfermidade que os próprios achados de exploração objetiva. Assim, a grande maioria dos dados que integram uma anamnese clínica está baseada sobre a descrição dos próprios sentimentos sensoriais e dos sentimentos vitais.

Caso se trate de uma doença infecciosa banal, encontra-se sempre o fato de que ela começa com uma sensação de mal estar. Em outras doenças, o indivíduo relata que tem uma dor localizada ou que se irradia, uma sensação de náusea, ou vertiginosa, ou de angústia. A interpretação correta de toda esta melodia nos conduz ao diagnóstico, muitas vezes com uma segurança surpreendente, e nos leva à compreensão do que é a enfermidade naquele indivíduo com grande precisão. Os sentimentos sensoriais nos dizem de processos via de regra locais; em troca, os sentimentos vitais nos dão conta de como está a totalidade do ser.

O começo de quase todas as doenças somáticas traz sempre uma perturbação dos sentimentos vitais, a genérica "sensação de mal estar", isto é, não "estar" bem. É um desvio do estar, portanto, um sentimento, posto que os sentimentos são estados do ego. Da mesma maneira que aparece a sensação de mal estar, pode aparecer a sensação de frescor vital no indivíduo sadio e perceber certa euforia. Em troca, quem está doente sente algo que lhe põe abaixo, que lhe deprime, que lhe pesa. Do mesmo modo, em determinados momentos da doença podem aparecer crises angustiosas. Essas variações sentimentais podem existir, não somente como começo das doenças, senão como reações sentimentais ao fato de estar enfermo.

Os sentimentos vitais estão intimamente enlaçados com os sentimentos sensoriais, até o ponto que assim como estabelecemos um grupo intermediário entre o que são puras percepções, e o que começa a entrar na descrição dos sentimentos, também poderíamos estabelecer um grupo intermediário entre os sentimentos sensoriais e os sentimentos vitais; por exemplo, na fome e na sede. Ao falarmos em fome e sede como instintos, do plano vivencial, se podem distinguir dois componentes: um local e outro geral. O componente geral faz referência à presença de um sentimento vital.

Para Leibniz, em nosso espírito se opera uma soma de todas as percepções individuais que emanam de nossa corporeidade, isto é, de como funcionam nossos vasos, de como se move nossos músculos etc; cada setor enviaria uma percepção, e esta se integraria em um conjunto sobre o qual chama a atenção. A este conjunto se chama de cenestesia, e o problema fundamental consiste em saber se essa sensibilidade geral interna, realmente corresponde a uma agregação de uma série de percepções isoladas e elementares emanando de todos os distritos de nossa corporeidade ou se é uma percepção primária, uma espécie de sensação global.

Essa concepção é paralela àquela que estabelece que o pensamento cursa por associações e que toda a vida psíquica brota de um conglomerado ou de uma associação de elementos, e inclusive na própria psicologia escolástica se fala do sentido comum como de um lugar na vida psíquica no qual aparecessem somadas e conglomeradas todas as experiências sensoriais: a experiência visual, a olfativa etc. Um objeto, uma coisa, está diante de nós; por exemplo, um cão; nós recebemos o odor que dele emana, vemos seus movimentos, ouvimos seus latidos etc.; temos, portanto, percepções visuais, auditivas e formamos a imagem do cão por uma somatória dessas percepções, a que se chama de sensório comum.

Contudo, Scheler pensa que não é assim, haveria uma espécie de percepção imediata de como as encontramos; vale dizer, saber o estado de nosso corpo não deriva da soma de todas as percepções, mas é uma percepção global e imediata independente das outras. Realmente, assim deve ser, posto que cabe a nós termos sensações vitais de um sinal diferente dos sentimentos sensoriais correspondentes; por exemplo, cabe a um indivíduo que se encontre em um estado de frescor vital, apesar de ter uma dor. Se realmente o sentimento vital fosse uma soma dos outros, enquanto tivéssemos sentimentos sensoriais de sinal negativo, como, a dor, a fome ou a sede, não poderíamos ter um sentimento vital positivo resultante da soma de todos estes sentimentos sensoriais negativos. Em um grau patológico isso nos demonstra de uma maneira muito clara os estados maníacos, do transtorno afetivo bipolar. No maníaco há uma exaltação de sua vitalidade, e nesta exaltação pode ter qualquer sofrimento corporal, e, contudo, não é afetada a sua exaltação vital. Assim, isso que vemos em relação caricaturesca, exagerada em estado patológico pode ocorrer também em estado normal, o que demonstra a independência que existe entre os sentimentos sensoriais. São sempre sentimentos circunscritos, sinais de estados orgânicos, no sentido de órgão como parte limitada do corpo, e os sentimentos vitais, que nos dão uma informação imediata e unitária de nosso estado como totalidade.

Os sentimentos vitais nos dão além de informações de nossa corporeidade, de nosso estado corporal como tal, senão, até certo ponto, de nossa relação vital com o mundo. Por existirem os sentimentos vitais é que podemos perceber uma paisagem como alegre ou triste; podemos perceber o frescor da manhã, podemos perceber a sensação especial que produz o som do bosque; podemos perceber um espaço como especialmente agradável ou desagradável, cômodo ou incômodo; isto é, os sentimentos vitais se acham em correlação com o que é espaço vital, no sentido psicológico; vale dizer, como uma maneira especial de perceber o que nos rodeia, que não é a percepção gnóstica, a percepção puramente intelectual, senão que é uma espécie de simpatia com o mundo entorno.

A presença dos sentimentos vitais é também o que nos permite criar as relações de simpatia ou hostilidade com os outros. Assim se constitui essa camada de vitalidade que tem um interesse primordial do ponto de vista psicoclínico. Os sentimentos vitais podem alterar-se de uma maneira autônoma aparecendo estados de tristeza, de angústia etc., que não dependem em nada do que ocorre ao nosso redor, senão de uma alteração anômala desta vitalidade.

Os sentimentos sensoriais têm certo caráter cadavérico. Servem como sinais de estados e processos de determinados órgãos e tecidos. Em troca, os sentimentos vitais nos permitem sentir nossa vida mesma, em seu incremento e decréscimo, na doença e na saúde. Por meio dos sentimentos vitais percebemos os valores do mundo circundante, o frescor do bosque, a opressão do trópico etc.; para eles existe uma verdadeira lembrança sentimental, coisa que não existe para os sentimentos sensoriais.

Eu não posso viver novamente uma dor física sofrida, mas lembrar-me de como era; em troca, posso viver de novo um estado de cansaço. Os sentimentos sensoriais são, pois, pontuais; existem como sinais recortados no tempo, sem continuidade possível. Os sentimentos vitais possuem a nota da duração e, além disso, certo caráter intencional. Eu não posso saber como é a dor de um pássaro, mas sim participar de sua sensação. Por isso os sentimentos vitais nos servem como indicadores de valores vitais. Sinalizam-nos os perigos e os ventos favoráveis através dos quais circula nossa vida, e não por experiência adquirida, mas de um modo primário, pré-sentido. Eis aqui a série dos pré-sentimentos nos quais somos advertidos de algo – perigo ou sorte – de um modo antecipado. É um erro crer que acompanham o estado de perigo; isso é o que ocorre nos sentimentos sensoriais, por exemplo, na dor. Em troca, os vitais os anunciam; são, pois, sentimentos plenos de futuração que nos põem, à distância, em contato com os acontecimentos temporais e as desordens espaciais. Por exemplo, é o que ocorre com a angústia, o medo, a vergonha, o apetite, a aversão, a simpatia e antipatia vitais, a vertigem etc.

A autonomia dos sentimentos vitais se acha intimamente enlaçada com a autonomia da vida. Em fisiologia clássica se distinguia entre excitabilidade e irritabilidade. A característica da irritabilidade se baseia na autonomia da resposta. Na excitabilidade existe certa correlação entre o estímulo e a resposta. Na irritabilidade há algo mais; o ser que responde, agrega, energeticamente, algo, que procede de seu próprio mundo interior, com o qual demonstra sua capacidade de autodeterminação. A irritabilidade não é um quantum constante de ação, mas variável; é mais, acha-se submetida a ritmos biológicos gerais e a outros específicos do ser vivo afetado.

Um processo análogo acontece nos sentimentos vitais. Precisamente seu caráter vital se mostra em sua autonomia e espontaneidade. A tristeza vital emerge do próprio doente, sem achar-se motivada por nenhum acontecimento exterior. A outra forma de tristeza sim, depende da informação triste. O mesmo ocorre em relação à corporeidade: o cansaço físico depende do esforço; o cansaço vital depende do estado do ser, sem que haja mediado esforço anterior nem outra causa produtora de fadiga. O doente desta classe se levanta já fatigado pela manhã, após o repouso noturno.


(3) Sentimentos anímicos (ou do ego)

Os sentimentos anímicos são sentimentos dirigidos. Trata-se de formas sentimentais reativas ante o mundo exterior. Alguém fica alegre ou triste por determinadas notícias; assim, neles começa a participação do ego ativo, e por isso Scheler fala também em sentimentos do ego. Os sentimentos anímicos não se ligam à percepção mesma, mas ao sentido, ao significado percebido.

Os sentimentos anímicos não são funções do ego, mas uma modalidade do ego. Uma tristeza motivada, por profunda que seja, nunca tem a difusão corporal de um mal estar vital. Certo é que os sentimentos anímicos podem perceber-se mais ou menos próximos ao ego, mas sem rebaixar seus próprios limites. Um homem cujos sentimentos anímicos não estivessem motivados e não oferecessem certa intimidade de sentido, seria tão incompreensível quanto um ser com inteligência deficitária.

Para Scheler a diferença entre esses tipos de sentimentos tem um caráter essencial, sem trânsitos possíveis. Cremos que se trata de diferenças conceituais e que a vida se nega a estas diferenças taxativas. Por exemplo, falamos de encolerizar-nos: eu me encolerizo como eu me entristeço. O ego, ativamente, toma uma atitude. O russo diz, por exemplo, que ele se encoleriza; isto é, como se a cólera emanara de si mesmo e não fora uma atitude reativa. A passividade do oriental se explica deste modo mais vital e menos anímico de sua vida sentimental. Também nos ocidentais temos todas as formas de trânsito. Junto ao "eu me encolerizo" está o "eu sinto que me invade a cólera". No primeiro caso é o incêndio que salta súbito, ao aproximar-se uma faísca. No segundo vai crescendo pouco a pouco, como alimentado de dentro. Essa referência à fonte interior será maior ou menor, segundo o caso, segundo o estado de ânimo do momento. A transição entre a camada vital e a anímica tem um enorme interesse patopsicológico. Com respeito à tristeza nos encontramos com o pôr-se triste, sentimento reativo anímico; o estar triste, sentimento vital endógeno, e o ser triste que denota um matiz constitucional da personalidade. Eis aqui a diferença entre depressão reativa, depressão endógena e psicopata constitucional.

O interesse aumenta quando se estudam as relações recíprocas entre estes estados. Existe um tipo especial de reação que se chama "reação cristalizada": existem estados vitais nos quais a ação de uma emoção – sentimento anímico – imprime um determinado sentido. Por exemplo, uma emoção triste causa uma tristeza que sobrevive ao motivo causal. Esta sobrevivência se acha determinada porque a tristeza, que a princípio parecia provocada, na verdade era uma tristeza vital. Os sentimentos vitais do ser se acham em um estado de aparente equilíbrio. Uma forte e duradoura emoção provoca a cristalização afetivo-vital, ou endo-reativo, ou endo-fenotípico, ou gene-memético. Daí sua sobrevivência, que fará com que se encontre totalmente desligada do motivo provocador.

(4) Sentimentos espirituais (ou da personalidade)

Os sentimentos espirituais surgem do mesmo ponto de onde emanam os atos espirituais. Não são mais estados do ego. Na serenidade de ânimo, por exemplo, parece apagado tudo o que é modo de estar. São sentimen­tos absolutos e parecem nublar com suas luzes e suas sombras todos os conteúdos da vida psíquica. São tão absolutos que não podem se apoiar em determina­dos valores. Se estamos desesperados por algo não possuímos o autêntico desespero, que, como a bem-aventurança, não vem de coisas deste mundo. Quando estes sentimentos existem realmente se fundem com o ser mesmo; são modos de ser em lugar de modos de estar. Neles se lança o valor da pessoa mesma, não este nem aquele valor determinado.

A estratificação dos sentimentos é, sem dúvida, um bom princípio de classificação, mas, não podemos ver as camadas sentimentais como reinos isolados. O princípio da totalidade da vida psíquica domi­na a vida sentimental mais que qualquer outro setor. Os sentimentos são "qualidades complexas" da vivência total; vale dizer, como o fundo sobre o qual desliza o resto da vida psíquica (percepção, pensamento etc.), fundo que há de se examinar como uma estrutura variável, mas sempre única, em um momento determinado.

Observações:

1ª. Patopsicologia quer dizer: da prática ao teórico; do doente ao ramo da Ciência; do pathós ao psicológico.

2ª. O artigo apresentado é um trecho de nosso livro "Psicossíntese Analítico-Compreensiva".

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