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Alguma filosofia nas idéias psicanalíticas

Resumo:

Estudo brevemente aspectos da filosofia pré-socrática, platônico-socrática, aristotélica e medieval buscando paralelos com as teorias psicanalíticas, em especial com a teoria freudiana clássica. Notamos que as noções de libido, repressão, inconsciente e, talvez, pulsão estão presentes em Platão, mas seu conceito de mente é problemático, pois para ele, ela faz parte do mundo dos deuses, das idéias. A teoria da castração de Freud corresponde à concepção aristotélica sobre a sexualidade que por mil anos educou a civilização. A filosofia medieval nos fez supor que a ausência de paradigmas psicanalíticos unificadores decorre da não solução do dilema entre o paradigma nominal e o universal, embate entre Platão e Aristóteles que determina justamente a distância que existe entre a teoria (universal) e a clínica (nominal, terminista, particular). Finalmente, por patognomônico, indicamos que a psicanálise envolve-se com o pano de fundo destas questões – o mítico, a idealização – propondo-se tecnicamente a usar estes elementos para alavancar a mudança do humano.

'Em todos nós, ainda nos de melhor natureza, subsiste a fera que durante nosso sono abre os olhos e espia'. (Platão)

 

'Gnothi seauton!' 'Conhece-te a ti mesmo!' (Sócrates).

 

… 'Um imprestável que dá a sua família mais notoriedade do que pão!'

(Xantipa, referindo-se ao esposo, Sócrates)

 

'Amicus Plato, sed magis amica veritas'. 'Amemos a Platão – grego – porém amemos mais a verdade.

(Aristóteles, macedônio, da raça bárbara do norte)

 

…' Um poldro que escoiceia a mãe depois de mamar-lhe todo o leite!'

(Platão referindo-se a Aristóteles)

 

'Non ragionam di lor, ma guarda e passa!' 'Não reflitamos sobre

eles, olha e passa!'

(Virgílio para Dante, Inferno, referindo-se aos que foram

condenados ao inferno por sua neutralidade insípida)

 

A idéia é apontar em algumas escolas filosóficas as vertentes da psicanálise. Qual a vantagem social disto? Que motivos podem fazer com que este estudo seja relevante? As respostas vertem necessariamente de uma única fonte: A historicidade, que em grego é o mesmo que informação.

1. Temos escolas psicanalíticas aceitáveis como clássicas ­ficando fora as psicologias de Jung e Adler – em número significativo – e não é o caso citá-Ias – e que se chamam escolas, isto é, um mestre com seus discípulos. Nada no horizonte parece indicar um paradigma comum e sequer uma nômica comum. São escolas, e não consideradas como evolução na psicanálise. A psicanálise não aceita sua historicidade, daí a ausência de legitimidade para as regras normativas dos vários movimentos psicanalíticos. A busca e a demonstração de que a psicanálise bebeu das vertentes da filosofia vai abrindo caminhos para a aceitação de sua evolução histórica.

2. Algumas concepções psicanalíticas estão a serviço da cultura, de instituições, de ideologias. Isto só é visível se tivermos em mente a sua perspectiva histórica. Estes estudos poderão, portanto trazer arejamento da teorização psicanalítica. O primeiro motivo sobre as vertentes nos leva a aceitar a historicidade, o segundo, permitirá a discussão destas mesmas vertentes e induzir à renovação.

3. O estudo da filosofia dos primórdios da Humanidade poderá nos dar um fio condutor aos problemas atuais da psicanálise. O psicanalista e o filósofo pré-socrático – conforme o aforismo (discutível) de que o psicanalista é o embaixador da realidade – têm como função posicionar o sujeito, com seu aparelho psíquico, seus mecanismos de defesa e suas fantasias inconscientes, no mundo. O embate entre a visão mítica e as visões realistas e nominalistas do mundo pode nos dar hipóteses sobre desencontros da psicanálise atual e, finalmente, o modo como a filosofia enfrentou o mítico lembra nosso dia-a-dia e pode nos indicar novas perspectivas sobre a função da idealização na técnica psicanalítica.

De qualquer modo, a idéia é suscitar a controvérsia para localizar e reestudar os conceitos. Desenvolver-nos na parafernália ideológica escondida por trás das teorias.

 

Brevíssima história da descoberta do ser do mundo

Os gregos descobridores da razão, criadores da ciência – o modo grego de ver o mundo – e da filosofia, começaram procurando por que coisas tinham existência em si e originavam todas as demais coisas. Qual seria a coisa de que todas as demais seriam compostas. Iniciaram com uma cosmogonia, com uma tentativa de compreender o mundo. Tales de Mileto (640-550 aC) pensou que era a água. Estava convencido que a terra flutuava sobre a água e que ela era a causa material de todas as coisas. Para Anaxímenes (450 aC) era o ar, observando a evaporação e a condensação. Xenófones, nesta época, observou fósseis, a biologia marinha e semelhanças entre as rochas de lugares distantes e ratificou o estado aquoso original da terra.

Empédocles (455 aC) pluralista, afirmou que eram quatro os elementos: a água, o ar, a terra e o fogo. Anaximandro (610-540 aC) complicou afirmando que era algo que não seria acessível aos sentidos, uma proto-coisa, o apeíron e construiu seu gnômon, um esquadro de carpinteiro que permitia, pelas variações na sua sombra, documentar os solstícios e os equinócios – as estações do ano. Acreditava que o universo começara como uma massa confusa, que todos os planetas foram a princípio fluidos.

Depois de Pitágoras nada mais seria o mesmo: as coisas são números. Como Anaximandro, para ele a origem das coisas do mundo seria algo abstrato, não acessível aos sentidos: a linguagem (sintaxe) do universo seria a música. Em torno de 530 aC, Pitágoras fundou em Crotona, sul da Itália, sua escola que era mais mitológica do que as anteriores, combinando crenças sobrenaturais com teorias científicas. Pitágoras sabia que a Terra girava ao redor do Sol e foi Aristóteles quem imaginou que o Sol girava ao redor da Terra.

Os pitagóricos praticavam um modo de vida baseado na crença que a alma é prisioneira do corpo e é liberada após a morte e reencarnada em outra forma de vida de acordo com o grau de virtude de sua vida. Heráclito (530-470 aC) introduz o movimento no problema: o existir é um fluir, nada existe porque tudo o que existe, existe num instante e logo já não existe mais. Para ele a substância básica era o fogo que produzia alterações na matéria. Ainda se representa o homem pela chama ou por uma fonte de água, indicadores da mutabilidade das formas do humano.

Demócrito (460-360 aC) e Leucipo (455 aC), seu mestre, supôs que toda matéria é composta de partículas indivisíveis diferindo somente em propriedades físicas simples. Todos os fenômenos naturais seriam explicáveis em termos de número, forma e tamanho dos átomos. Tudo seria explicado em termos físicos, mesmo formas elevadas de existência. Daí a origem do materialismo atual no nosso dia-a-dia afirmando que qualquer aspecto da existência é rigidamente determinado por leis físicas. Burnet (1930) não concorda em incluir Demócrito entre os pré-socráticos, pois ele foi um contemporâneo mais jovem de Sócrates e desejou encarar os problemas do conhecimento e da conduta mais seriamente do que seus antecessores.

Com estes filósofos deu-se o passo radical na distinção entre a explanação mitológica e a explanação científica da Natureza. Eles descobriram os importantes princípios científicos da estabilidade da substância – é a idéia de estabilidade do comportamento humano que permitiu, recentemente, dizer da existência de um aparelho psíquico – da evolução na natureza e da redução de qualidades em quantidades. O mundo é estável e descritível.

Iniciou-se então o processo de abandono da explicação mítica do mundo, daí dizer-se que os gregos são os descobridores da razão e dizer-se que a única filosofia é a grega, pois a filosofia oriental tende a preservar a explicação mítica do mundo além de repudiar a metafísica e a epistemologia – são os alemães quem gostam de epistemologia; os franceses a detestam – e suas preocupações se concentram na moral, na política, nas relações humanas e na existencialidade.

Confúcio, por exemplo, só diz de coisas concretas e é claríssimo, quase palpável. Como observa Burnet (1930): "Em quase todos os setores da vida, a princípio, a corporação é tudo e o indivíduo, nada. Os povos do Oriente mal foram além deste estágio. Sua Ciência, tal como é, é anônima, é a propriedade herdada de uma casta ou guilda, e ainda vemos, em alguns casos, que o mesmo outrora se dava com os gregos… A guilda se torna o que chamamos uma escola e o discípulo toma o lugar do aprendiz… (p.35)".

E o mundo não será mais o mesmo. Burnet afirma que a ciência só se desenvolveu na Grécia porque não havia sacerdotes envolvidos com ela, o sistema religioso grego estava enfraquecido e abriu espaço para a observação e reflexão. Este é um dilema da técnica psicanalítica: precisamos da idealização, mas sabemos que a capacidade de criação, reflexão e observação do paciente neste estado estará prejudicada.

E chegamos àquele que Platão (429-347 aC) denominou como o maior de todos os filósofos: Parmênides, pré-socrático da escola de Eléia (451 aC). Ele inicia a descoberta da lógica e demonstra a contradição na idéia de Heráclito. Se as coisas não são, estão sempre mudando para outras coisas, então o ser não é, que aquilo que é, não é. Descobre o princípio da identidade. O que é, é, o que não é, não é. Uma coisa que fosse e não fosse seria ininteligível.

Parmênides ocupa lugar tão nobre para Platão porque descobriu o poder do pensamento, seu potencial descritivo do mundo, descobriu a lógica. Defendeu a idéia da unidade e imobilidade absolutas do ser. Mas foi mais longe, declarou que há um mundo sensível, este que vemos, tocamos e um mundo inteligível. De Parmênides e sua lógica desligada do mundo concreto vertem Zenão e seu paradoxo da corrida entre Hércules e a tartaruga e mais tarde os sofistas. Nestes tempos, evidentemente, não há diferenciação entre a filosofia e as ciências naturais e o embate está contra a explicação mítica do mundo.

Mas, nascentes já da historicidade temos os sofistas, importantes politicamente no desenvolvimento da sociedade grega de monarquia agrária para democracia comercial. A famosa máxima de Protágoras – o homem é a medida de todas as coisas – é típica da concepção sofista onde o homem tem o direito de julgar tudo por si mesmo, a verdadeira fonte do humanismo e do existencialismo: o direito à escolha.

Em política, os sofistas se dividiam em duas escolas. Uma que acompanhava o que Rousseau desenvolveu milênios depois: a natureza é boa e a civilização má. Pela natureza todos os homens são iguais, mas tornaram-se desiguais pela instituição cultural de classes, dominados que são pela lei, uma invenção dos mais fortes para dominarem os mais fracos.

A outra foi revivida por Nietzsche segundo a qual a natureza está além do bem e do mal, que naturalmente todos os homens são desiguais, que a moralidade é uma invenção dos fracos para limitarem e embaraçarem a ação dos fortes, que a dominação (Foucault) é a suprema virtude e o supremo desejo do homem. Sofista, do grego sophistés, significa sábio e depois impostor, pelo uso abusivo da linguagem a qual Górgias (485-380 aC) atribuiu grande importância, desenvolvendo especialmente a retórica e a eloqüência.

Atingimos o apogeu do pensamento grego. Sócrates (470-399 aC) e Platão, que deve sua teoria dos dois mundos a Parmênides mas que a corrigiu, apontando que ele confundia a idéia (palavra criada por ele mesmo a partir da raiz grega para ver) daquilo que é com aquilo que é, com a coisa; não se pode confundir as condições formais de pensamento com as condições reais em que se é. De Sócrates, aquele que não escreveu uma linha, Platão recebeu os conceitos. Sócrates é agnosticista e a filosofia só começa quando aprendemos a duvidar, especialmente a duvidar de nossas crenças prediletas, dogmas e axiomas.

O oráculo de Delfos declarara Sócrates como o mais sábio e ele aproveitou para dizer só sei que nada sei, reforçando a dúvida como fonte de conhecimento. Não ­existe filosofia verdadeira enquanto o espírito não se volta para examinar a si próprio. Gnothi seauton! (Conhece-te a ti mesmo!) disse Sócrates. A dúvida associada à necessidade de conhecer o aparelho que conhece o mundo, milênios após, dará origem à epistemologia e ao idealismo cartesiano – fundamentos da psicanálise.

Sócrates queria fazer com o mundo moral o que Pitágoras e os geômetras fizeram com as formas sensíveis que foram transformadas em elementos, figuras geométricas. O conceito de idéia para Platão é o mesmo que temos para o conceito pitagórico de número. Ao contrário dos sofistas, Sócrates recusava-se a aceitar pagamento por seus ensinamentos, pois não tinha conhecimento positivo a oferecer, exceto a consciência da necessidade de mais conhecimento.

Ele buscava o logus, que no latim (na Bíblia), foi traduzido como o verbum – e ficou sendo, depois de Justino, a palavra de Deus! Qual o logus da justiça, qual o logus da coragem, qual o logus do ódio. Daí seu método, perguntar e responder, sempre, e ir lapidando o logus mas seu interesse era educacional, ensinar e aprender a moral porque para Sócrates, aquele que é mau, é mau porque não sabe que é e porque não sabe ser bom. Este é o chamado Paradoxo de Sócrates, concorde com Protágoras: nenhum homem é voluntariamente mau. Do qual Aristóteles discordou.

Como se vê, a cizânia entre Winnicott e Klein – entre quem põe o ódio, a morte, numa pulsão como a inveja primária e quem admite que nascemos para a vida e com amor, é antiga. Não esqueçamos, nós que freqüentemente temos de nos haver na solidão de nossas práticas, com opiniões e idéias difíceis de sustentar, que Sócrates preferiu beber cicuta a pedir perdão à plebe. Era oligarca, assim como o aristocrata Platão e jamais aceitou o sistema democrático grego, da Grécia ser governada pela plebe, por ignorantes. Aristós em grego é ótimo. Depois da morte de Sócrates, Platão tomou repulsa pelos sistemas democráticos, pelo povo, pelo lugar comum.

Para Platão cada coisa no mundo sensível tem sua idéia no mundo inteligível. O número de idéias, assim como os números de Pitágoras, é infinito. Nos diálogos República e Parmênides, descreve que os seres, as coisas que contemplamos na nossa existência sensível, não são mais do que sombras desse mundo das idéias – daí o Mito da Caverna -, imutável, eterno que dividimos com os deuses. Platão não abandonou e buscou um lugar na sua teoria para a explicação mítica do mundo.

Este mesmo lugar é o inconsciente freudiano, agora sistematizado. No diálogo Menon, aponta que cada pessoa tem dentro de sua alma todas as verdades e só necessita ser instado à reflexão para tornar-se consciente delas. Como chegar ao mundo das idéias? Pelo aperfeiçoamento da maiêutica socrática, pela dialética platônica, por um perguntar e responder agora com alguma historicidade, pois a filosofia já não estava mais no seu início. A existência de idéias eternas forneceria o padrão ou ideais em contraste com os quais todos os objetos e ações poderiam ser julgados.

Verdade, justiça e beleza coincidem com a idéia de Deus. Para ele a conduta humana tem três vertentes: Desejo (apetites, impulso, instinto, pulsão), emoção (entusiasmo, ambição, coragem) e conhecimento (pensamento, inteligência e razão). O desejo tem sede nos rins e é uma energia fundamentalmente sexual. A emoção tem por sede o coração, os músculos, o fluxo e a força do sangue e é o lugar de execução do desejo e do conhecimento. O conhecimento tem por sede o cérebro, é o olho do desejo e pode tornar-se o condutor da alma. O conceito freudiano de libido também preservou o aparato que localiza funções vinculares em partes do corpo.

Platão classificava as pessoas de acordo com o predomínio de cada uma destas vertentes. Para ele o ideal é que o desejo, aquecido do vigor da emoção, fosse guiado pelo conhecimento. Mas não descurava das origens culturais do comportamento, nem das origens pessoais da cultura: tais homens, tais estados. Queria enviar ao campo os habitantes da cidade com mais de dez anos, e apossar-nos dos de menor idade para preservá-los de contrair os hábitos dos pais e educá-Ios para a construção de um estado ideal. Platão amava tanto o geral e o universal que na República destruiu o indivíduo para criar o Estado Ideal (sua Utopia).

Toda a obra de Platão está embebida de sua concepção dual do homem: No Phaedrus, na história dos dois cavalos e da carruagem, onde um dos cavalos é o oposto do outro, um é consciente, ligado à cultura, e outro é o inconsciente instintivo, na sua história dos anjos, de como vamos perdendo as asas e nos tornando terrenos. A tradução da República direta do texto grego, edição de J. Burnet, 1949, por Maria Helena da Rocha Pereira, traz a seguinte nota: Tem-se "comparado (o texto que segue) com os versos do Rei Édipo de Sófocles (os mesmos que serviram a Freud para a sua distorcida interpretação do mito de Édipo)", p. 412.

Como existem pequenas diferenças entre as traduções, optamos pelo trecho que consta em Durant, p. 45 que percebera a semelhança com a teoria freudiana, apontando inclusive a existência da repressão. Este tema está na República porque Platão estava convencido de que para bem governar era necessário conhecer o indivíduo e estava perplexo de quão pouco se sabia sobre a psicologia individual:

"Certos desejos e instintos que são considerados como ilegítimos; revelam-se ao que parece em todos os homens, mas em muitos estão submetidos ao domínio da lei e da razão e, como instintos e desejos de ordem mais elevada prevalecem sobre eles, são eles totalmente suprimidos ou quebrados em sua força e número; em outros homens estes desejos revelam-se abundantes e fortíssimos. Refiro-me aos desejos que despertam quando o poder raciocinante e diretor da conduta está adormecido; o animal selvagem que temos em nós, só alimentado de materialidades, sai de seu antro e dá largas à sua vontade; não existe crime ou loucura, por mais vergonhosa e antinatural – como o parricídio e o incesto, que tais naturezas não cometam. Mas quando o homem está em sadio equilíbrio e vai dormir sob o sereno domínio da sua razão… tendo satisfeito sem excessos seus apetites… está ele com poucas probabilidades de fazer-se joguete de visões desordenadas… Em todos nós, ainda nos de melhor natureza, subsiste a fera que durante nosso sono abre os olhos e espia" (Durant, 1966, p. 45 e A República, 571-573, pp.411-14).

É de Platão o aforismo: De gênio e de louco todos temos um pouco! (O profeta, o gênio – mantike – é aparentado do louco – ­manike). De quebra aí a suposição de uma parte neurótica e uma parte psicótica na personalidade. Se tomarmos como fundamentos indispensáveis para o que seja a teoria psicanalítica freudiana o argumento que constituiu o Grupo dos Cinco, Comitê Secreto, Círculo Secreto, formado depois da ruptura com Jung, pela idéia de Jones, cuja primazia foi reclamada por Ferenczi nos idos de 1912, segundo o qual os membros do Comitê trocariam idéias e discutiriam na privacidade qualquer desejo de "se desviar de qualquer um dos princípios fundamentais da psicanálise – a repressão, o inconsciente e a sexualidade infantil", temos todos estes elementos já em Platão (!).

Talvez a sexualidade infantil não esteja explicitada, mas o complexo de Édipo está – parricídio e incesto como desejos suprimidos. A preocupação platônica em conhecer o individual para governar deve-se a importância que dava ao retorno do reprimido. O sonho como realização de desejo está explícito no texto acima, mas Platão adiantou, no Phaedrus, o modelo de Ferenczi (Garma) e o de Jung vendo o sonho como a tentativa de resolver traumas ou como parte do pensamento para resolver problemas.

"Nenhum homem no estado consciente chega à intuição da verdade ou alcança a inspiração, e sim quando o poder da inteligência é estimulado pelo sono, pelas moléstias ou pela demência". O sonho, o desgaste físico, a loucura eram necessários para aproximar-se de soluções. Mas existem diferenças fundamentais com a concepção aristotélica e a moderna. Para Platão, estas idéias não estavam em nossa mente, estavam num lugar, o mundo das idéias, dos deuses, que nós, em condições peculiares, poderíamos acessar.

Descritivamente esta é a fonte da idealização que temos da magia, dos sonhos, enfim, dos emergentes do processo primário, pois persistimos convencidos que estamos internamente em contato com deuses. Platão morreu aos 80 anos, numa festa de casamento, dormindo! Será que não existiriam exemplares dos Diálogos de Platão na biblioteca de Freud, quem sabe com anotações de seu tempo de adolescente?

Brevíssima história da separação entre a mente e o mundo
Chegamos então no outro cume do pensamento grego. Aristóteles (384-322 aC) nasceu em Estagira, Macedônia, filho de médico amigo de Amintas, rei da Macedônia e avô de Alexandre. Com 17 anos foi para Atenas estudar na Academia de Platão onde permaneceu por 20 anos. Quando Platão morreu em 347 aC mudou-se para Assos, na Ásia Menor convidado pelo amigo Hermias e casou-se com sua irmã, uma princesa. Em 345 aC, tornou-se tutor de Alexandre, o Grande. Em 335 aC, quando Alexandre tornou-se rei, retornou para Atenas e estabeleceu sua própria escola, o Liceu.

Aristóteles sempre foi um homem rico por sua família, pela família da esposa e pelo financiamento de Alexandre. Platão referia-se a casa de Aristóteles como a casa do leitor, tal a importância de sua biblioteca e nesta época os livros eram manuscritos. O nome de Escola Peripatética vem das discussões que se davam nos jardins do Liceu, enquanto caminhavam e significa ensinar passeando.

Talvez pela influência do pai médico, Aristóteles enfatizava muito a biologia em contraste com a ênfase platônica na matemática. Aristóteles não foi o escolhido por Platão para sucedê-Io, que escolheu seu sobrinho. Ele fundiu o mundo das idéias, as idéias transcendentes de Platão com o mundo sensível, com a sensopercepção, iniciando a autonomização da sensopercepção. Na análise de cada coisa distingue a substância da coisa, o acidente, a matéria e a forma. Cada coisa é a forma que se desenvolveu de alguma coisa que era sua substância. E cada coisa pode por sua vez ser a substância de que se vão desenvolver formas mais e mais elevadas. A forma não é a apenas a forma exterior, mas também a força modeladora, a realização de uma aptidão especial da substância.

Observou que a dialética platônica tinha leis e sistematizou a lógica, a teoria da inferência dedutiva representada pelo silogismo (duas premissas e uma conclusão). Um silogismo é uma trindade de proposições das quais, a terceira é a conclusão, que emana da verdade admitida nas outras duas, as premissas maior e menor: O homem é um animal racional / Sócrates é homem / logo Sócrates é um animal racional. Como se tem demonstrado, a premissa maior admite como verdadeiro justamente o que precisa ser provado indutivamente, o que gera o problema das definições.

Como procedermos para definir um objeto ou um termo? Toda boa definição se compõe de duas partes: primeiro, inclui o objeto em questão em uma classe ou grupo cujos caracteres gerais são também os seus – O homem é, antes de tudo, um animal. Em segundo lugar indica qual a característica que distingue o objeto de toda sua classe: O homem é racional. Vem de Aristóteles a convicção de que alguma coisa pode ser melhor entendida quando suas causas podem ser descritas em termos específicos ao invés de descrita em termos gerais.

Aristóteles distinguia entre duas lógicas, a dialética e a analítica. A dialética testa opiniões sobre a consistência lógica de um fenômeno enquanto a analítica trabalha dedutivamente a partir de princípios fundamentados na experiência e na observação. Isto claramente rompeu com Platão para quem a dialética (e sua crença na matemática) era o único método para a ciência e para a filosofia já que acreditava que o verdadeiro mundo era o das idéias, dos deuses. Talvez uma das mais importantes contribuições de Aristóteles seja uma nova noção de causalidade.

Para ele cada coisa ou evento tem mais de um motivo capaz de explicá-Io, dizer do como, do porquê e do onde, diferentemente dos primeiros pensadores gregos que imaginavam apenas uma causa para um evento. Aristóteles propôs quatro causas explanatórias. A palavra aition (ação) é usada por ele como significando a responsável, o fator explanador. Por exemplo, um jovem leão é feito por tecidos e órgãos – esta é a causa material. A causa eficiente são os pais do leão. A causa formal é a espécie, as características genéticas do leão. E a causa final é o processo de geração e construção biológica até torná-Io um espécime maduro para transformá-Io, novamente, numa causa eficiente.

Para ele nosso conhecimento das coisas consiste em possuir conceitos, em preencher nossa mente de conceitos que se ajustem às coisas, com ênfase na sensopercepção. Um conceito é falso se o que ele diz da coisa não se ajusta ao que a coisa é. Em sua teoria do conhecimento rejeita a doutrina platônica de que o conhecimento é inato e insiste que ele só pode ser adquirido por generalização a partir da experiência. Para Aristóteles a ciência e a filosofia devem integrar os dados da observação e da experiência sensorial com o formalismo da dedução racional. É de Aristóteles a máxima: Nada há no nosso intelecto que não tenha passado pelos nossos sentidos.

Ele definiu a alma como um tipo de funcionamento de um corpo organizado de modo a que possa suportar suas condições vitais. Para ele a liberdade de escolha do homem tornava impossível o exame do comportamento humano, tornando as ciências práticas como a política e a ética subalternas da ciência e só chamadas como tal por cortesia. As características individuais humanas dependem da capacidade de formar hábitos que por sua vez dependem da cultura e de escolhas individuais repetidas. Mudou, portanto a noção pitagórica que a alma seria prisioneira do corpo. A doutrina aristotélica é uma síntese da noção pitagórica só que agora supondo que a alma não existiria sem o corpo com a noção platônica, que a tinha como uma entidade não física. Para ele, a substância – o substrato comum e indiferenciado de todas as coisas – e a forma – a essência, ou as características imutáveis de um objeto – sempre estão juntas. Aristóteles, por isto, é o pai do realismo.

Portanto as idéias, a alma, para Platão, estão fora do corpo, não estão na mente, ou dito de outro modo, a mente está fora do corpo, é partilhada com o mundo dos deuses, transcendente ao humano. Para Pitágoras a mente, a forma, era prisioneira do corpo. Para Aristóteles a mente, a alma não poderia existir sem o corpo. Mas Aristóteles ainda afirmava que as idéias nos eram dadas pelos objetos, estavam, portanto no mundo e imprimiam nossos sentidos. O aforismo máximo do empirismo, repetimos, é aristotélico: Nada há no nosso intelecto que não tenha passado pelos nossos sentidos.

Quase um milênio depois ficam os platônicos com Agostinho afirmando que as idéias estão em Deus e perseverava Aristóteles na voz de Tomás de Aquino dizendo que as idéias estão nos objetos. Como fundo para esta questão persiste o problema da explicação mítica do mundo. É Tomás de Aquino quem, tendendo a Aristóteles, diz que as idéias estão em Deus, nos objetos e na mente do homem.

Não está a idéia da estátua na mente do escultor e também na própria estátua? É a partir dele que começa a discussão de idéias e sentimentos como originários do homem mesmo e a historicidade destas concepções. No século XIII, por Tomás de Aquino a Igreja encontra um novo fundamento na obra de Aristóteles. No início sua introdução foi questionada, vista com suspeita exatamente pela sua visão tipicamente materialista do mundo. Em 1215 o representante do Papa em Paris proibiu aos professores que ensinassem pelos seus textos, e em 1231 Gregório IX nomeou uma comissão para expurgá-Ios. Somente em 1260 ele foi aceito pela Igreja.

Mas o mítico, claro, persistia com amplo domínio sobre a conduta humana. Com a diminuição da influência dos mecanismos projetivos que permitiram a apreensão e introjeção do mundo como tal, iniciava a fase obsessiva da humanidade. A norma, a lei, o Livro Sagrado seriam os ditames na Idade Média e a paranóia persistirá na punição, na lnquisição.

Não há campo de conhecimento que não tenha sido discutido por Aristóteles. Sua Zoologia durou até Darwin que assinalou que perto de Aristóteles todos somos escolares. Acreditava que corpos mais pesados cairiam mais depressa que corpos mais leves, até que Galileu conduziu o experimento na Torre de Pisa. A teoria da geração espontânea de formas baixas de vida também é dele. Aristóteles nos seus textos Sobre a Geração dos Animais e Geração e Corrupção foi o primeiro a expressar que as mulheres concebem mesmo sem terem orgasmo e que, de qualquer modo, esse prazer feminino não seria muito freqüente. O líquido das secreções femininas não seria espermático e seria uma secreção local própria a cada mulher, o prazer clitoridiano estaria afastado do local de origem de uma possível secreção espermática, o colo do útero. E, na sua idéia de que a função faz o órgão, não seria admissível que algo fosse secretado para depois ser novamente absorvido, pois a natureza é econômica.

Embora os médicos da época não tenham apoiado suas convicções, sua lógica era irrefutável. Onde estaria o esperma, do grego sperma, semente, feminino? Sua conclusão era que não existia. Aristóteles manteve que a fêmea é um macho estéril. A mulher é um macho mutilado, os mênstruos são um esperma, mas um esperma impuro e a mulher se caracteriza por uma impotência, tendo a função de operar o cozimento do esperma. A mulher forneceria a substância, a matéria, e o esperma do macho imporia a forma. Nos casos em que a criança nascesse parecida com a mãe era porque a matéria teria resistido à forma.

Estas idéias nos são bastante conhecidas e são parte de todas as religiões modernas e só recentemente foram eliminadas da obstetrícia. Lembremos que por longo tempo, nos primeiros séculos de nosso milênio, os sábios discutiam se a mulher teria ou não alma. O tratamento típico que a mulher recebe no mundo islâmico é aristotélico. A semelhança destas idéias com a teoria freudiana da castração é evidente. Aristóteles teve influência nas culturas ocidental e oriental talvez maior do que Jesus Cristo. É dele nossa noção de senso comum. Capacidade, princípio, meio, fim, máxima, categoria, energia, atualidade, motivo, forma são alguns dos termos criados por ele.

A lógica que nos levou a Marte, o realismo e o empirismo que criou os computadores e máquinas especialíssimas como os ônibus e estações espaciais têm fundamentos aristotélicos. Sua doutrina do Primum Movens é a base da Teologia. Sua morte foi trágica. Ele não era grego, era macedônio, amigo pessoal do tirano Alexandre com quem se desaviera pela execução de sua sobrinha Calístenes, e tinha de defender Alexandre em Atenas, diante dos gregos. Morreu Alexandre em 323 aC e emergiu na Grécia todo o sentimento antimacedônio. Aristóteles fugiu para não beber cicuta, dizendo que não permitiria um segundo atentado à filosofia. Morreu no ano seguinte, 322 aC solitário e desacompanhado, aos 63 anos. Diz Diógenes Laércio que ele bebeu cicuta. E durante mil anos as trevas envolveram a face da Europa (Durant, 1966, p. 10).


O homem, seu pensamento, o mundo e a psicanálise

Com Platão e Aristóteles dá-se o esforço para retirar a sensopercepção do domínio do mítico e fixá-Ia como um elemento autônomo – de fato é impressionante como repete o que se passa com a criança – e funda-se o realismo. Platão, como Pitágoras, acredita na possibilidade de sistematização do mundo e descreve o mundo das idéias, a lógica e a matemática como instrumentos capazes de descrever o mundo, mas não é claro para Aristóteles como é para Descartes que estes instrumentos estejam em nossa mente. A lógica aristotélica tem existência real, ela está nos objetos. Aristóteles é um filósofo do senso comum.

Para Platão, a lógica, as teorias científicas, os universais tinham existência concreta no mundo real, palpável além dos próprios objetos às quais estes se adaptam. Tomás de Aquino tenta integrar estes conceitos reafirmando que as idéias estão nos objetos e na nossa cabeça e Descartes fundará o oposto do realismo, o idealismo ­que com os empiristas dará origem à psicologia – pois para saber do mundo deveremos saber antes as idéias que temos na nossa mente que nos mostram o mundo. Mas seu cerne é o pensamento.

Falta a definição, o acesso da ciência empírica a porção mítica da mente que Platão não quis retirar do mundo dos deuses. Freud, que descreve esta constituição mítica e sua presença no dia-a-dia e Nietzsche (Foucault) enfatizam a influência da cultura na constituição do aparelho psíquico, na construção de seu aparato ideológico. Grosseiramente poderemos afirmar que Platão usava mais a projeção, enquanto Aristóteles a introjeção. Abelardo e Tomás de Aquino buscaram conciliar ambos os mecanismos.

Nosso problema é localizar Pitágoras, o mecanismo é a projeção, mas mais sistematizada do que em Platão. A crença de que a alma, a mente, é prisioneira do corpo é muito comum em obsessivos graves, mas suspeitamos que está presente e intensamente em todos nós. Estamos na essência do mítico. Ele só existe porque através deles podemos habitar outros mundos, outros corpos, outros lugares. Esta é proposta básica da mídia atual: permitir através de identificações breves, habitar outros corpos, preferentemente o corpo adolescente. Pitágoras anteviu a agonia da existencialidade, do ser-em-si, do ser-no-mundo, do ser dono de seu corpo, atirado ao tempo, que terá de construir seu destino e aproximou-se da tragédia da posição depressiva (Klein) no sentido existencialista do termo.

 

Sobre a persistência da visão mítica do mundo

Entre os séculos IV aC até a ascensão da filosofia cristã no século IV as principais escolas filosóficas, abarcando principalmente a ética e a religião e com pouco interesse pelas ciências naturais, foram o epicurismo, o estoicismo, o ceticismo e o neoplatonismo. Epicuro em 306 aC fundou em Atenas sua academia, ratificando que a ciência natural é importante somente se aplicada a decisões práticas e se afastar o medo da morte e dos deuses.

O objetivo da vida humana é eliminar a dor. Seus ensinamentos sobreviveram no poema filosófico do romano Lucrécio. A escola estóica foi fundada em Atenas em 310 aC rejeitando os valores materiais e as instituições sociais. A doutrina estóica de que cada pessoa é parte de Deus e que todas as pessoas formam uma família universal contribuiu para quebrar barreiras raciais e lingüísticas e preparou o caminho para as religiões universais.

Foi introduzida em Atenas pelo mercador fenício Zenão (310 aC) como uma dentre as numerosas idéias orientais o que bem demonstrava a decadência do pensamento grego, infiltrado pelo mítico que após emergiria com toda força no cristianismo. O objetivo era a ataraxia, a tranqüilidade, a equanimidade, a paz de espírito, ainda encontrada no êxtase religioso, na idealização estimulada pelas religiões atuais. O judeu helênico Philo Judaeus, um dos primeiros a interpretar o Antigo Testamento para os não-judeus, combinou a filosofia grega, particularmente a platônica e a pitagórica, com o judaísmo antecipando as formas atuais do judaísmo, do cristianismo e do islamismo.

Philo enfatizou a natureza transcendente de Deus como estando além do entendimento humano, sendo, portanto indescritível. Morreu em 50. A escola cética dominou a academia platônica no século III aC, continuando com a crítica sofista mas agora aplicada ao conhecimento objetivo. Os céticos descobriram que a lógica é um instrumento poderoso e capaz de destruir qualquer conhecimento positivo. Para Zenão e Carneades o homem não pode ter certeza de nada e não há critério para o que seja a verdade ou a realidade.

O neoplatonismo foi elaborado por Ammonius Saccus e Plotinus no século III e exerceu forte influência sobre o pensamento medieval. Para os neoplatônicos, Deus está além de toda compreensão e realidade e é onipresente. O Universo emana de Deus e o objetivo humano é purificar-se das necessidades de conforto para o corpo e, através da meditação, preparar-se para o encontro com Deus.

 

Brevíssima história da filosofia medieval: escolasticismo

Típico da decadência da civilização greco-romana foi o desinteresse dos filósofos pela natureza e sua descrição e a busca de modos como viver a vida de jeito a conseguir a salvação para a vida em outro mundo melhor. A obra de Agostinho buscou a conciliação entre a ênfase grega na razão e a fé cristã. Novamente o esforço para conciliar a visão mítica do mundo com a científica. Desenvolveu um sistema de pensamento que tornou platônica a estrutura da Igreja até o século XIII quando Aristóteles, pela mão de Tomás de Aquino, tornou-se dominante.

A cultura alexandrina encontrou em Aristóteles sua inspiração. Seu Organon educou o espírito dos bárbaros medievais, lhes dando coerência ao pensamento. Foi traduzido para o siríaco (idioma aramaico, sírio), no século V da era cristã, para o árabe e hebreu no século X e para o latim só nos idos de 1200 – mais de 1500 anos depois de escrito. Os cruzados trouxeram cópias melhores em grego e, em 1453, os estudantes gregos trouxeram novas obras de Aristóteles quando fugiram dos turcos.

Para Agostinho, a fé e a razão seriam complementares ao invés de opostos. Como os neoplatônicos, considerava a alma como uma forma de existência mais elevada que o corpo e buscava soluções racionais para o problema da liberdade e destino humanos. Concebia a história humana como uma queda de braço entre a bondade, expressa em dedicação a Deus e a maldade, expressa em dedicação a valores materiais. Pessimista, admitia que a felicidade só seria conseguida após a morte.

No século XI, Platão e Aristóteles foram reinterpretados e absorvidos pelo judaísmo e pelo islamismo buscando fundamentos na razão natural para suas teologias. Este foi o momento das tentativas de fusões de modelos filosóficos com a teologia cristã, judaica e árabe (islâmica). É este trabalho de justificação lógica de crenças que tipifica o escolasticismo, movimento filosófico e teológico que tentou o uso da razão humana, natural – através da filosofia e da ciência greco-romana, especialmente de Aristóteles – ­para entender os conteúdos sobrenaturais de revelação do cristianismo. Esta é de fato a idade das trevas. Os sistemas religiosos, a idealização impedem a curiosidade e a criatividade. Este esforço foi a principal diferença entre o escolasticismo e o pensamento moderno da Renascença, que perdeu esta preocupação teológica, recusou a tentativa de conciliação entre a razão humana e o mítico, a religião, a fé. O escolasticismo foi dominante nas escolas e universidades medievais da Europa da metade do século XI até a metade do século XV.

 

A tentativa de conciliação entre a ciência e o mítico

O termo escolástico, do grego scholastikos, pelo latim scholasticu designava o diretor das escolas ou dos sistemas monásticos medievais e depois estendeu-se aos professores de filosofia e teologia. Este sistema estava mais interessado em demonstrar as verdades da fé do que em descobrir novos fatos e princípios e para isto usava o argumento dialético. O escolástico estava convicto da harmonia fundamental entre razão e revelação.

O argumento básico, circular (dialético) sustentava que como o mesmo Deus originava estes dois tipos de conhecimento e que a verdade era um de seus atributos, ele não poderia se contradizer nestas duas maneiras de ser. Qualquer dúvida poderia ser buscada num uso incorreto da razão ou numa interpretação errada da revelação. Mas como os escolásticos acreditavam que a revelação era a palavra de Deus, ela apresentava um grau maior de verdade que a razão. Isto é, entre a filosofia e a teologia, a supremacia era da teologia.

No primeiro período escolástico a filosofia era dita como uma serva da teologia. O padre italiano Anselmo (agostiniano) não distinguia entre razão e revelação e, em conseqüência, entre teologia e filosofia. Anselmo de Canterbury adotou a doutrina de Agostinho da relação entre fé e razão, combinando platonismo com a teologia cristã. Anselmo argumentou em favor da existência de universais ou propriedades comuns a todas as coisas levando ao realismo lógico, platônico. No escolasticismo mais amadurecido, o teólogo e filósofo italiano Tomás de Aquino retomou a distinção entre ambas e inclinou a balança para a razão. Mas, após a revelação divina, parou de escrever, afirmando que face à revelação, nada mais poderia dizer.

Depois de Tomás restringiu-se mais e mais com os nominalistas o domínio das verdades de fé capazes de serem demonstradas com a razão. Isto resultou da aplicação dos princípios da demonstração científica conforme especificados no Organon de Aristóteles. Como o próprio Aristóteles não aplicava com a devida ênfase o método que ele mesmo propôs, o resultado é que no início da Renascença, Lutero não acreditava mais na razão humana. Seu argumento, obsessivo, sua crença básica era o Livro Sagrado, o que estava escrito na Bíblia e não o humano. Persiste ainda na tradição germânica protestante outra atitude escolástica: o respeito à autoridade teológica e filosófica.

A autoridade dos primeiros pais da Igreja – Agostinho – só era superada pela Bíblia e pelos concílios da Igreja. Aristóteles era chamado simplesmente Ille Philosophus. O escolástico só poderia escrever e opinar baseado nos escritos antigos e qualquer idéia nova precisava ser escondida ou harmonizada com o passado, transformando a maioria dos escolásticos em meros compiladores: A paranóia como base da obsessão, a fogueira apoiando a norma. Exceções são Tomás de Aquino e Duns Scotus, este lastimavelmente falecido aos 42 anos, que davam interpretações pessoais aos textos aristotélicos para ratificar suas posições. Esta aceitação sem crítica de Aristóteles foi o principal motivo da recusa de todos estes sistemas na Renascença.

 

A disputa entre a tríade do mítico, do real e do nominal

A filosofia medieval foi marcada pela disputa entre o universal (realismo lógico) e o particular (nominalismo). É impressionante como este embate persiste na psicanálise atual, a área de mais atrito entre Aristóteles e Platão. Toda a Europa medieval pregou ao tumulto da divergência entre os nominalistas e os realistas. Um universal para Aristóteles é qualquer nome comum, qualquer nome capaz de aplicação universal a todos os componentes de sua classe: Homem, animal, árvore e por aí vai.

Mas estes universais são noções subjetivas e não realidades objetivas tangíveis. São nomina (nomes) e não res (coisas). De fato, Platão pensava que o universal era incomparavelmente mais duradouro, importante e substancial que o individual e tinham existência concreta. Persistia aí a discussão se Deus poderia ser representado ou não, colocada na pergunta quantos anjos cabem numa cabeça de alfinete? É claro que se os universais têm existência concreta, Deus poderia ser representado visualmente – um dos motivos do primeiro grande cisma na Igreja, no ano 1050. Para Platão, os homens passam, mas o Homem persiste. Se admitirmos que os universais existem, concretamente estamos abrindo mão da sensopercepção e assumindo posições míticas.

O contraponto disto é a escola conhecida como nominalismo formulada pelo filósofo escolástico Roscelini. A escola nominalista, terminista, que pertence a nomes, na escolástica medieval argumentou que abstrações como os universais, as generalizações científicas, formas ou idéias não têm realidade essencial ou substantiva e que só objetos individuais têm existência concreta. Universais como animais, nação, beleza, círculo são simplesmente nomes, meros sons, marcas. O nominalismo opôs-se ao realismo extremo segundo o qual estes universais teriam existência concreta e independente, separada de objetos particulares. O nominalismo evoluiu da idéia aristotélica segundo a qual a realidade consiste de coisas individuais.

A controvérsia escolástica entre os nominalistas e os realistas tornou-se proeminente entre os séculos XI e XII, com a posição nominalista apoiada por Roscelini e a realista por Bernard Chartres e William Champeaux. Na teologia, Roscelini argumentou que a Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), como constituindo uma unidade na natureza divina, não pode ser entendida de acordo com a concepção nominalista, exceto como três distintos e separados Deuses, doutrina conhecida como Triteísmo. Em 1092, claro, esteve às voltas com a Inquisição. As implicações éticas desta concepção são muitas. Se não há natureza comum a todos os indivíduos então não há leis naturais que nos governem a todos. Ou, uma mesma lei não poderia ser aplicada a todos nós.

O teólogo francês Abelardo – ­lembre-se seu trágico amor por Heloísa no século XII – propôs um compromisso entre o realismo e o nominalismo conhecido como conceitualismo segundo o qual os universais existiriam em coisas particulares como conceitos na mente. Abelardo antecipou o pensamento protestante ao argumentar por uma ética baseada na consciência. Embora os universais não tenham existência concreta, substantiva no mundo externo, eles existem como idéias ou conceitos na nossa mente e então são algo mais do que nomes. O realismo moderado localizou os universais na mente, mas também admitiu uma base real em objetos particulares. O embate de fundo era se a razão poderia descrever o mundo ou se era necessário invocar Deus e sua revelação para fazê-lo. Como os escolásticos usavam a razão como palavra de Deus, os nominalistas apontavam a cisão entre a lógica e a realidade, escapavam para a realidade.

O grande intelectual da idade média foi Tomás de Aquino, monge dominicano que estudou com Alberto Magno, o primeiro filósofo cristão a interpretar o sistema aristotélico por inteiro, seguindo-o para Colônia em 1248. Ele combinou a ciência aristotélica com a teologia agostiniana em um sistema de pensamento que se tornou a filosofia da Igreja Católica. Nas Summa Theologica e Summa Contra Gentiles reflete seu interesse na razão, na natureza e na esperança de felicidade neste mundo harmoniosamente com a fé e os esforços para a salvação. O mais importante crítico da filosofia de Tomás foi John Duns Scotus (ou Scots que dizia de sua origem, escocesa) e William de Ockham.

O nominalismo rejeitou a tentativa tomista de reconciliar as revelações da razão com as revelações da fé. Manteve uma versão modificada da doutrina das duas verdades de Averróis (Ibn Ruchd) – árabe-espanhol que distinguia dois sistemas separados de verdades, as verdades de fé e as verdades de razão e, em contraste com o escolasticismo, admitia que ambas poder-se-iam contradizer. Afirmava que todas as crenças religiosas eram matérias de fé, exceto para a crença na existência de Deus que se acreditava logicamente provável. Contra Aquino que sustentava que Deus agia de acordo com sua natureza racional, Scotus argumentou que a vontade divina era anterior à razão divina. Duns Scotus morreu em 1308. O escolástico inglês William de Ockham ou Occam, (1285-1349?), conhecido como Doctor lnvincibilis e Venerabilis lnceptor, é o grande expoente do nominalismo. Nasceu em Surrey, Inglaterra, franciscano, ensinou em Oxford de 1309 a 1319. Denunciado pelo papa João XXII por ensino perigoso, ficou 4 anos preso no palácio papal de Avignon na França enquanto a ortodoxia de seus escritos era examinada (1324-28). Fugiu para Munich em 1328 buscando proteção de Luis IV e acabou excomungado. Morreu em 1347, de praga. Ockham foi um lógico rigoroso e usou-a para demonstrar que muitas crenças dos filósofos cristãos ­Deus é único, Deus é onipotente, Deus é o criador de todas as coisas, Deus é imortal – não podem ser provadas por filosofia ou por razão natural, mas só por revelação divina. Tratou do mesmo modo a crença no intangível, em formas, em essências e em universais, mantendo que estas entidades abstratas são meramente referências a palavras que se referem a outras palavras do que a coisas reais. Sua famosa regra conhecida como Navalha de Ockham argumentando que não precisamos presumir a existência de mais coisas do que as que são logicamente necessárias tornou-se um princípio fundamental da ciência e filosofia modernas.

 

Sobre a atualidade da disputa entre o universal (realismo lógico) e o particular (nominalismo) na psicanálise

A defesa do nominalismo feita por Ockham preparou o caminho para várias teorias (nominalistas) modernas como a pragmática e a semântica. Até então a filosofia estava engajada na oposição ao mítico e na valorização da sensopercepção, do pensamento (lógica). Este esforço todo foi para eliminar os elementos míticos da sensopercepção. Esta é a caminhada para que experiência e razão tornem-se a medida da realidade e, só mais tarde, para que o homem – humanismo – seja a medida de todas as coisas. O que descrevemos foi o processo de descoberta do pensamento e de sua localização – se nos objetos, na mente ou em Deus. Mas os pensamentos e a sensopercepção já existiam antes.

O universal diz de regras relacionadas à realidade que nos permitem fazer previsões sobre o maquinismo do mundo. O realismo extremo (realismo lógico, platônico) supôs que estas regras estão de fato na realidade e não são abstrações. O nominalismo diz que isto não existe, que o que existe são coisas particulares. Evidente então que qualquer teoria que estude o significado, o sentido, tem de ser uma teoria nominalista, pois está às voltas com coisas absolutamente peculiares, particulares.

E a psicanálise?

A psicanálise freudiana tem sua proposta teórica universal. Ela descreve as regras de funcionamento do inconsciente, comum a todos nós, descreve a repressão e a sexualidade infantil. Mas a clínica psicanalítica é particular ao indivíduo. Interessa à clínica psicanalítica definições tão peculiares e tão caracteristicamente individuais como o nome da pessoa e só no nominalismo se aplica a noção de pessoal. Evidente que estamos apontando que há uma contradição básica, pois a psicanálise estuda o particular e não pode, portanto ter regras gerais, isto é, pode tê-Ias, mas apenas para contradizê-Ias.

Klein e Bion persistem com os mesmos fundamentos freudianos. Mas Lacan, muito influenciado pelo humanismo francês e sua constituição histórico-social, e principalmente Winnicott e a psicologia do self de Kohut buscam exatamente o espaço privativo, nominal, da emergência do sujeito. Muitos dos desencontros na psicanálise resultam da incompreensão destas propostas – diferentes – de base. À psicanálise interessa a descrição de regras que expliquem a todos nós ou interessa a descoberta do sujeito individual mesmo usando um conjunto de regras titubeantes, falhas que buscarão o desenho do sujeito pelos erros de suas aplicações? E será que a aplicação destas regras freudianas clássicas explica o humano?

De outro lado persiste na psicanálise o mítico. Pode-se mesmo dizer que a psicanálise é a ciência que, alavancando-se no mítico tenta mudar o homem. O representante fundamental do mítico na psicanálise é a idealização.

 

Conclusões

(1) As noções de libido, repressão, inconsciente e, talvez, pulsão já estão em Platão, mas para não sermos acusados de românticos, assinalamos que a noção de mente para Platão era problemática, pois ela fazia parte do mundo dos deuses, das idéias.

(2) A teoria da castração de Freud corresponde à concepção aristotélica sobre a sexualidade que por mil anos educou a civilização.

(3) O problema do desencontro entre as várias idéias psicanalíticas decorre da não solução entre o paradigma nominal e o universal, embate entre Aristóteles e Platão que determina justamente a distância que existe entre a teoria (universal) e a clínica (nominal). Clin é um radical do alemão antigo e que se refere a inclinar-se diante do paciente.

(4) A psicanálise é a ciência que tem uma especificidade – nisto estou sendo clássico – ela se propõe a usar o mítico – a idealização – para alavancar a mudança do humano.

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