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Sociabilidade define bem beber e embriaguez reprovável

Para povos indígenas do Uaçá, embriaguez só é reprovável ao infringir protocolo de sociabilidade. Antropólogo analisou a prática do uso de bebidas alcoólicas entre quatro povos do Amapá. O consumo excessivo faz parte da cultura, mas chama a atenção pela influência de bebidas não-indígenas.
Para povos indígenas do Uaçá, embriaguez só é reprovável ao infringir protocolo de sociabilidade. Antropólogo analisou a prática do uso de bebidas alcoólicas entre quatro povos do Amapá. O consumo excessivo faz parte da cultura, mas chama a atenção pela influência de bebidas não-indígenas.
Uma análise dos contextos socioculturais do consumo de bebidas alcoólicas entre os povos indígenas da região do Uaçá, no extremo norte do Amapá, revelou que, para eles, a embriaguez só é reprovada quando prejudica as relações sociais. “Se após beber a pessoa se envolver em brigas, acidentes, se não tiver disposição para as atividades de roça, se esquecer ou deixar de lado a cultura indígena, sua embriaguez será considerada reprovável”, explica o antropólogo Laércio Dias. “Já o bem beber é aquele que promove e intensifica a sociabilidade entre as famílias e entre estas e o sobrenatural.”

O pesquisador estudou o tema em seu doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e sua tese trata tanto da bebida tradicional (o caxiri, fermentado preparado à base de mandioca) quanto das bebidas não produzidas pelos índios, principalmente a cachaça. Dias analisou a prática de beber dos povos Karipuna, Galibi Marworno, Palikur e Galibi de Oiapoque, que vivem distribuídos em três terras indígenas da região.

Entre 1995 e 2003, nos nove meses que passou no Uaçá, o pesquisador percebeu que o uso de bebidas alcoólicas (inclusive não-indígenas) entre esses povos era excessivo e quis compreender as razões socioculturais que estariam na base dessa prática. O antropólogo destaca que “entre todas as populações indígenas das Américas, do Canadá ao Chile, existe algum tipo de excesso desse consumo.”

Diferentemente da visão biomédica, que atrela a qualidade do consumo à quantidade e à sobriedade, os povos do Uaçá definem o bem e o mal beber de acordo com a maneira como a embriaguez atua nas relações sociais. “Ingerir grande quantidade de bebida ou ficar bêbado não é exatamente o problema para eles”, afirma o pesquisador.

Como causas dos episódios de embriaguez reprovável, Dias aponta três principais. A primeira delas é que a cachaça, cujo uso é cada vez mais freqüente, tem um poder de embriaguez muito maior que o do caxiri. A segunda é que, para esses povos, não faltam motivos para beber. Bebe-se antes, durante e depois das atividades de roça, nos fins de semana, feriados e em praticamente todas as datas comemorativas. A terceira refere-se a um estilo de consumo que visa sempre o fim de todo o conteúdo de bebida disponível. “Um cacique, já falecido, comentou certa vez: ‘é beber até zerar'”, conta Dias.

Beber – e muito – tem um significado cultural importante para os índios do Uaçá. Esse estilo imoderado de consumo, segundo o antropólogo, provém do ritual do Turé, uma festa organizada pelo xamã para agradecer aos seres sobrenaturais pelas curas concedidas. Durante o Turé, quanto mais se dança, canta e se bebe caxiri, maior será a expressão de gratidão. Mas, “beber até zerar” permanece como um padrão mesmo em outras circunstâncias da vida social.

Dias constatou que, muitas vezes, o consumo de bebidas alcoólicas – sobretudo da cachaça – se desloca do contexto cultural. “Existem grupos que se reúnem tendo o beber como um fim em si mesmo, sem um motivo específico”, o que pode ser explicado pela influência do tipo de consumo dos não-índios. Entretanto, Dias afirma não ter visto casos de dependência – por exemplo, alguém bebendo sozinho.

Mesmo considerando o beber historicamente integrado ao seu modo de vida, esses povos vêm percebendo que o consumo excessivo de cachaça se relaciona a problemas de saúde e que é preciso evitá-lo. Segundo Dias, ainda não existem ações médicas sendo realizadas na região. “O que se tem efetivamente feito são tentativas – pouco eficazes – por parte das lideranças indígenas, de controle da disponibilidade de cachaça nas áreas e de conscientização dos riscos envolvidos no consumo abusivo de bebidas alcoólicas.”

Fonte: [url=http://www.usp.br/agen/repgs/2006/pags/118.htm]www.usp.br[/url]

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