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Exposição constante a sons altos pode levar à dependência

Especialistas relacionam o processo com a estimulação de neurotransmissores e com aspectos emocionais.
Especialistas relacionam o processo com a estimulação de neurotransmissores e com aspectos emocionais.
Buzinas nas avenidas, helicópteros no céu, bate-estaca no prédio em construção, gente falando alto e, nesse período pré-eleitoral, carros com alto-falantes repetindo os jingles dos candidatos. Esse costuma ser o retrato sonoro de grandes centros urbanos, e São Paulo não foge à regra. Ao contrário, é considerada uma das cidades com piores índices de poluição sonora no mundo, e o excesso de barulho é uma das principais queixas de seus moradores.

Por que, então, é tão comum ver esses mesmos moradores fugindo do silêncio? Seja no som do carro, no bar ou no tocador de MP3 para andar no parque, muita gente busca estar sempre rodeada de barulho.

A explicação para o paradoxo passa por estímulos químicos, segundo alguns especialistas. Da mesma forma que o exercício e o chocolate, o som libera no organismo substâncias que geram prazer. E isso pode levar algumas pessoas a ficarem dependentes de barulho.

Um ruído de 55 decibéis (nível de uma conversa normal) já dá início a um aumento na produção de noradrenalina, afirma Fernando Pimentel-Souza, doutor em psicofarmacologia pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Por volta de 80 decibéis (equivalente ao ruído de tráfego intenso), ainda segundo o pesquisador em neurofisiologia, tem início a liberação de endorfina. O problema é quando a exposição constante a esses estímulos leva a um quadro crônico.

“A endorfina é analgésica, suprime a dor, suprime a punição que a pessoa sofre, e isso é condicionante de comportamento. Quanto à noradrenalina, ela é prazerosa, o que leva a pessoa a repetir esse tipo de comportamento. Esses mediadores químicos provocam uma ativação cerebral e combatem a depressão nervosa. Quando a pessoa vive num ambiente barulhento, ela está sendo estimulada artificialmente de forma constante e, ao se privar desse barulho, tem a sensação de depressão. Ela fica dependente do barulho que, de certa forma, age farmacologicamente no organismo”, explica.

Os neurotransmissores, incluindo a endorfina, são necessários para a passagem do som pelas células nervosas, afirma Luiz Carlos Alves de Sousa, presidente da Sociedade Brasileira de Otologia. “O prazer é químico. O som dispara um gatilho de sensações boas, e a pessoa fica dependente disso.”

O estudante André Mirabeli Sanches, 23, conhece bem esse esquema. Ouvia música no último volume, e só assim o som lhe causava prazer. “O cérebro parecia ficar anestesiado.” A diversão o levou a instalar no carro um sistema de som “subwoofer”. “Sabe aqueles carros que passam fazendo um bum-bum-bum bem grave? É isso”, descreve. O ouvido direito de André não agüentou. Aos 20 anos, ele descobriu que havia perdido parte da audição.

O problema veio acompanhado de outro sintoma: a hiperacusia – hipersensibilidade auditiva. “É como se os sons chegassem amplificados”, diz.

Segundo a fonoaudióloga Eliane Schochat, presidente da Academia Brasileira de Audiologia e professora da USP (Universidade de São Paulo), a hiperacusia acomete a maioria das pessoas com perda auditiva de origem coclear (cóclea é a parte anterior do labirinto).

Devido à hipersensibilidade, André pegou o hábito de tapar os ouvidos com as mãos ao andar nas ruas, além de usar protetores de borracha. O problema afetou até o contato com amigos, já que diversão é, geralmente, associada a barulho. “Após o trauma, a vida social ficou difícil. Meus amigos chamavam para a balada, e eu inventava desculpas para não ir.”
Se ele sabia que o som alto poderia levar à perda auditiva? Sim. “Todo mundo sabe, mas ninguém se importa. Até passar por uma situação traumática.”

De acordo com o psiquiatra Aderbal Vieira Jr., co-responsável pelo ambulatório de dependências não-químicas do Proad (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes), da Unifesp, um vício pode ser identificado por dois aspectos: o uso disfuncional de algo, que tanto pode ser uma droga como um jogo, e a incapacidade de se separar daquilo espontaneamente. “É diferente de quem faz muito alguma coisa, mas pára quando quer.”

No fim dos anos 90, pesquisadores norte-americanos mostraram que a música também pode causar o problema.

A equipe, liderada por Mary Florentine, professora de audiologia na Northeastern University, aplicou a um grupo de 90 pessoas um questionário para saber como elas se relacionavam com música alta -as questões eram adaptadas de um exame para diagnosticar alcoolismo. A conclusão foi que cerca de 10% dos entrevistados tinham, em relação à música, o mesmo comportamento que os alcoólatras têm com o álcool.

O estudo não encontrou relação entre o resultado e a idade dos participantes ou o tipo de música que eles ouviam.

Apesar de os adolescentes serem mais associados a barulho, os efeitos do sons no organismo são os mesmos em quase todas as faixas etárias. “Crianças pequenas, abaixo de cinco anos, são mais susceptíveis porque não têm a neuromaturação necessária. Depois dessa faixa etária, é tudo a mesma coisa”, afirma Schochat.

Para Vieira Jr., a liberação de neurotransmissores é uma explicação insuficiente. “Quando falamos de uma sensação prazerosa com som, não sei se o que está por trás é o efeito físico auditivo ou o prazer estético de uma boa experiência. Acho que é menos um fenômeno fisiológico e mais a mensagem que esse fenômeno passa”, diz.

Segundo o psiquiatra, “tudo que é prazeroso pode levar a um vício”, e quando a pessoa sente que perdeu o controle sobre a situação, o ideal é procurar um terapeuta para o diagnóstico. Algumas pessoas também conseguem restabelecer os limites sozinhas.

O engenheiro mexicano Fernando Elizondo Garza, do laboratório de acústica da Universidad Autónoma de Nuevo Léon, se dedica a estudar as funções sociais do som e ressalta que a busca por barulho não é necessariamente um vício -pode ser, diz, até como uma forma de se “proteger” de outros ruídos.

Ele cita, por exemplo, que, num local silencioso, sons eventuais como uma buzina podem atrapalhar a concentração. Por isso, há quem adquira o hábito de estudar ou dormir com música: ela gera um fundo acústico que minimiza o impacto dos barulhos do exterior.

O fotógrafo Fernando Contin Pilatos, 28, integra o grupo que só dorme assim. “Já fiz o teste. Não consigo dormir sem o rádio ou a TV ligados”, conta.
“Estou certo de que pessoas com esse hábito moram em casas ou bairros onde há muito barulho. Como não podem controlar esses ruídos e têm quase certeza de que não haverá silêncio, preferem dormir com o barulho, mesmo que isso signifique um descanso menor.”

Além disso, afirma Garza, o som pode ser uma ferramenta de isolamento, como no uso do tocador de MP3, e de aproximação social, como numa festa. Em outros casos, o próprio som pode fazer “companhia”.

“Chego em casa e ligo o som, aí me animo para fazer as coisas, sinto um pique diferente. Acho que também tem a ver com não ficar sozinho”, conta a psicóloga Gisele Sydow Kizahy, 34, que também deixa um aparelho de som ligado na sala de espera de seu consultório.

Independentemente dos motivos que levam à busca por barulho, a exposição a sons altos gera danos. “As pessoas precisam tentar evitar a exposição ao ruído quando ela não é “obrigatória”, como nos momentos de lazer”, diz Schochat.

Além disso, diz ela, é importante fazer exames anuais para avaliar a audição, da mesma forma como muitas já fazem com a visão. Assim, é possível detectar problemas auditivos ainda no início. Se as células nervosas forem afetadas, o problema é irreversível.

Fonte: [url=http://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/eq3108200608.htm]www.folha.com.br[/url]

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