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TOC – Na compreensão existencial

Neste pequeno artigo pretendo traçar uma descrição fenomenológica do TOC, bem como a compreensão existencial da sua forma de ser-no-mundo (Dasein-in-ther-Welt). O indivíduo com TOC é descrito como um ser que faz de uma tarefa impossível de ser cumprida seu objetivo de vida. Compila-se a contribuição de vários autores bem como empresta-se à Antropologia a compreensão do mecanismo básico do TOC. Quadros clínicos são comparados ao estudado chegando-se à conclusão de que o estudo da temporalidade, como uma “parada da marcha interior, uma detenção do vir-a-ser” (Von Gebsattel), são básicos para o entendimento da referida síndrome.
Certa vez, nos tempos das faculdades, eu perguntei a um psicoterapeuta e intelectual da época o que eu deveria ler para saber mais sobre psicopatologia, e ele me respondeu: "Se você quer conhecer a alma humana, leia os clássicos, Vitor Hugo, Dostoiévski, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Shakespeare, Goethe, enfim tantos outros." (Fiz esta mesma observação em relação a Rollo May, aqui na RedePsi).

Afinal o que nos diferencia, pobres mortais, do verdadeiro artista é a capacidade que ele tem de captar a essência do que é comum ao ser humano e imprimir à sua obra uma linguagem universal.

Quando fui convidado a participar deste encontro, por coincidência, eu relia o livro da saga de Marcel Proust – "Em Busca do Tempo Perdido". Numa das primeiras páginas do Caminho de Swann, encontro a seguinte descrição do narrador: "Quando tínhamos visitas, jantava antes de todos e ia em seguida sentar-me à mesa, até às oito; hora em que estava convencionado que deveria deitar-me; aquele beijo, precioso e frágil, que mamãe de costume me confiava em meu leito antes de eu adormecer, era-me preciso transportá-lo da sala de jantar para o quarto e guardá-lo durante todo o tempo em que me despia, sem que se quebrasse a sua doçura, sem que a sua virtude volátil se expandisse e evaporasse e, justamente, naquelas noites em que necessitaria recebê-lo com maior precaução via-me obrigado a apanhá-lo, a roubá-lo bruscamente, publicamente sem ter ao menos, o necessário tempo e liberdade de espírito para dedicar ao que fazia essa atenção dos maníacos, que se esforçam por não pensar em outra coisa enquanto fecham uma porta a fim de poderem, quando lhes sobrevém a mórbida incerteza, opor-lhe vitoriosamente a recordação do momento em que fecharam". *1

Este parágrafo de Proust descreve com exatidão o ser-no-mundo do obsessivo. Uma pessoa que faz do cumprimento de uma tarefa impossível de ser cumprida seu objetivo de vida, ou projeto-de-vida, ou raison d'etre, ou leit motiv. Tal como Sísifo que rola uma pedra montanha acima para mal atingida a subida vê-Ia rolar caminho abaixo – o obsessivo tenta fixar-se naquele átimo no qual, entre o ir-e-vir a pedra estaria parada.

Mas o Ser não é parado, o Ser é movimento (Heráclito) constante e talvez, justamente esta tentativa infrutífera de fixar o tempo resulte no malogro existencial deste indivíduo atormentado e sofredor, que é o ser humano obsessivo.­

Muitos foram os teóricos que se aproximaram do TOC, Pièrre Janet a chamou com muita propriedade de "loucura da dúvida", Binswanger tem um trabalho sobre a "fuga de idéias", Minkowski aborda a temporalidade da neurose obsessiva, mas a meu ver quem melhor caracterizou o mundo do obsessivo foi VE Freiherr von Gebsattel em seu livro Antropologia Médica. ­

Parafraseando Binswanger que via no encontro existencial a única possibilidade de real conhecimento do outro, diria eu, que mesmo neste momento de encontro "o que conheço de meu interlocutor é uma ínfima aproximação de seu ser-no-mundo".

O que vou tentar é meramente isto: uma aproximação do eidós, da essência do ser-no-mundo da pessoa prisioneira do TOC.

No início era a angústia, angústia de morte, do nada, do vazio, e conviver com ela incessantemente era extremamente pesado e difícil. Cria-se então uma defesa – que de nada defende -, enquista-se essa sensação avassaladora em um único medo; de lugares fechados, de lugares abertos, de escuro, de avião, de doenças e por aí vai.

O sujeito pode então desenvolver-se dentro de um espaço mais ou menos amplo, delimitado pela sua fobia. O que faz a pessoa claustrofóbica, evita passar em túneis, elevadores, metrôs. Isto muitas vezes se torna um problema, dado que a vida de hoje nos confronta cada vez mais com tais situações e edifícios de mais de 30 andares já são rotina, só para citar um exemplo. O sujeito fóbico enfrenta mais ou menos adequadamente seu medo.

O sujeito obsessivo é aquele que não consegue lidar com seu medo e se vê possuído pela fobia. Ele mesmo, se torna o seu medo. Esta possessão dá origem a rituais, tarefas que tentam aplacar o medo subjacente e a angústia original.

Vale dizer que embora a angústia existencial primária seja combatida, o obsessivo caracteriza seu viver pelo estreitamento paulatino de seu Dasein, estreitamento este que está na etimologia da palavra angústia que quer dizer angusto, apertado, estreito.

Portanto o obsessivo em seu afã de evadir-se da angústia organiza sua vida com muito mal-estar, com incômodo, inquietação, contradição e tristeza.

Embora com uma origem semelhante o fóbico defende-se de seu medo evitando o objeto temido. Se tem medo a lugares cerra-se em casa e a ilusão de que dominou o medo, exterior ao sujeito, acontece.

O obsessivo não pode fugir de seu medo, pois o cerne de seu transtorno está em si mesmo, em seu mundo interior.

A sujeira, a putrefação, a doença, o mau cheiro, a repelência, o pecado são inextricáveis ao sujeito.

Cabe aqui tentar uma explicação antropológica deste alastramento da sujeira autógena para o mundo. Qual de nós não tem seu talismã: um pé de coelho, uma moeda da sorte, um patuá, uma medalhinha, uma fita do Bonfim, uma Bíblia e por aí vai.

Se pararmos para pensar o significado destes comportamentos nos reportaremos aos povos primitivos. Os índios ao usarem penas de águia em seus cocares acreditam que a força do pássaro lhes será comunicada. Os beduínos comem fígado de um camelo abatido na hora para adquirir a resistência e longevidade do único animal que atravessa o deserto. As características desejáveis do animal, como que contagiam suas partes e, assim, passariam a quem os portasse. E lá vamos nós carregando nossos objetos mágicos pessoais.

Na personalidade obsessiva a força da "repelência" interior passa para os objetos como o mecanismo do talismã. Ele vai sujando o que toca. Ele é o veículo da expansão das atitudes obsessivas, porém mais que o realizador é a vítima deste processo. A expansão do pensamento é involuntária e incontrolável.

Tomando novamente emprestada a antropologia de povos primitivos vemos que alguns deles se caracterizavam pela valentia em enfrentar animais ferozes, porém temiam as representações em pinturas ou máscaras destes mesmos animais. Justificavam tal atitude dizendo, nas minhas palavras, que o tigre da selva se pode ver, enfrentar e matar e a sua representação é imortal.

Da mesma forma, o obsessivo consegue acabar com a "sujeira", porém o que o persegue é o pensamento da "sujeira". A representação nesse caso tem as características semelhantes às vividas pelos povos primitivos; a sujeira é ineliminável, ineludível, perene. O sujeito então constitui seu império ritualístico defensivo que visa inutilmente sobrepujar a divisão interna da personalidade obsessiva. Ela exige a possibilidade de limpeza contra o fato da possessão pela sujeira. A estrutura obsessiva faz com que a força purificadora dos rituais nunca triunfe totalmente trazendo uma "angústia de consciência" e um aperfeiçoamento dos rituais ad aeternum.

Tais pessoas vivem em um mundo que perdeu totalmente seu caráter de abertura e múltiplas possibilidades. A espontaneidade não tem lugar, a pessoa está sempre fugindo de um inimigo que o persegue de perto.

Neste aspecto o mundo do obsessivo se assemelha ao do paranóico em que o inofensivo não tem lugar. O paranóico não necessita uma explicação para a perseguição que o acomete. Já o obsessivo cobra um significado à sua obsessão. Ele evita o cheiro das flores porque elas estão ligadas a enterro e enterro à morte. Por mais que ele saiba que provavelmente aquelas flores não tenham nada a ver com enterro, a idéia predomina e seu cheiro é insuportável.

Toda ação obsessiva se reflete como uma reação a algo que não é propriamente a obsessão. A ação não termina no obsessivo. O ato de sujar, ser repelente não se confina em si mesmo, se alastra no tempo e no espaço.

Em termos existenciais poderíamos dizer que a obsessão é um transtorno do vir-a-ser. Ela impede o desenvolvimento evolutivo normal na criança e no adolescente e cristaliza o adulto impedindo sua vivência de futuro. O devir do surpreendente não existe.

Percorrendo mais uma vez a sabedoria popular que diz que quem pára, regride, podemos entender a parada do vir-a-ser, o embargo do desenvolvimento de uma personalidade que está parada em si mesma em eterna luta paralisante de si para consigo, de sua sujeira com seus rituais de limpeza. A vida cotidiana fica tão alterada que nada se faz naturalmente.

A obsessão alcança, por vezes, o domínio absoluto da pessoa (daí nós contestarmos a separação artificial entre neurose e psicose, aqui na RedePsi).

O não poder concluir fica na base do arrestamento da personalidade e da vida em geral.

"É a parada da marcha interior, a detenção do vir-a­-ser" nas palavras de Von Gebsattel.* 2

Por mais elaborada que seja a tarefa, ela não consegue atingir seu objetivo. Por exemplo: limpar a sujeira. O obsessivo ataca o sintoma diretamente sem compreender o substrato, o caminho da impressão de sujeira. A angústia de sujeira não é transparente. A sujeira e o mau odor, por exemplo, não são mais do que símbolos de uma das possíveis formas de ser-no-mundo do sujeito. Este mundo maior, mais complexo e rico que ele sabe existir não está, porém ao seu alcance. O direcionamento da pessoa ao futuro fica impossibilitado.

O obsessivo faz o que não deseja e o que deseja não pode realizar (cumprir a tarefa). A falta dos graus de liberdade (Henri Ey), que se manifesta em sua atuação pertence à essência do transtorno de sua personalidade.

O obsessivo vive perturbado por um dilema de consciência. Ele não tem certeza de que cumpriu qualquer tarefa (ausência do sentimento de evidência de Erwin Straus), e mesmo após inúmeros e sofisticados rituais continua dominado pela dúvida. Esta insegurança o faz sofrer e traz um sentimento de paralisação. Há que repensar do início e reconsiderar mais uma vez sabendo que jamais se chegará a uma certeza. Esta impossibilidade de uma convicção da tarefa feita leva a uma mania de precisão (Janet).

O começar e o terminar de qualquer ação é muito difícil para o obsessivo. A ele falta a estrutura histórico­-vital que possibilita uma elaboração da vivência temporal com vivência de finalização.

A ação embora terminada não atinge seu objetivo primário (limpeza, expiação, desodorização) de tal forma que é como se a ação não tivesse sido feita.

Como o fluir da vida está paralisado o sujeito não alcança, com sua ação, a plenitude das coisas. Paira sempre uma dúvida sobre a autenticidade do efeito da ação. A ação "não tem futuro", uma vez que não se completa, não tem "fim", como se evoluísse em cima do mesmo ponto, sem ampliação no espaço-tempo.

O obsessivo não tem a sensação de ter dado um passo a frente. Ele não vive em um contínuum temporal de antes, agora e depois. Ele vive em um somatório de agoras encadeados e sem sentido. De tal forma que a realização da tarefa não realiza a pessoa.

A dúvida é real porque no sentido do "vir-a-ser" a ação não resulta positiva. Nada se conseguiu. A ação sendo insuficiente o obsessivo cria atos mágicos confirmatórios como bater o pé no chão, estalar os dedos, piscar, que em geral cada vez mais se afastam do significado original do mecanismo de defesa do Ego em ação.

O efeito bola de neve logo vem a se instalar, pois o ritual acaba ficando sem efeito (não aplaca mais a ansiedade em relação à consecução da tarefa), e necessitando de um controle cada vez mais sofisticado e enredando a pessoa, em atividades cada vez mais complicadas e vivencialmente inefetivas.

O começar de uma ação, tanto quanto o terminar, seguem as mesmas leis. Para o obsessivo o novo não é um incentivo para a realização.

O novo é um transtorno, é o desconhecido que desestabiliza o ritual, e é vivenciado pelo obsessivo com profunda desconfiança, é seu maior inimigo.

Neste aspecto o mundo do neurótico obsessivo se aproxima do depressivo que também apresenta uma vivência paralisadora do futuro. Seu Dasein está tão diminuído e esfacelado que ele só consegue fazer uma tarefa simples a cada vez. O que antes fazia com espontaneidade necessita de planejamento. A plenitude da sua vida normal é demais para ambos os tipos de patologia, cujo vir-a-ser está paralisado.

Convivemos muito bem em nossa vida diária com pessoas com tendências obsessivas, cuja performance ordeira e perfeccionista nos impressiona e até nos dá uma certa inveja. A forma existencial malograda na personalidade obsessiva seria o exagero desta tendência.

Tal pessoa vive sob a égide de um fanatismo pelos programas. Tudo tem que ser organizado, medido e principalmente pensado. Tudo que é novo, imprevisto, as coisas mais simples do dia-a-dia são devastadoras porque atrapalham a realização dos programas.

O obsessivo controla tanto o que pode quanto o que não pode acontecer. Exerce uma rigidez imodificável que fixa o curso vital interno e externo. O encadeamento do viver torna-se uma prisão. Neste estágio nada mais resta ao obsessivo que retrair-se do mundo exterior e dedicar-se cada vez com mais afinco a seus rituais.

Parece que o obsessivo segue uma regra: "O seguir dos rituais mantém a vida". Como na verdade a pessoa foge dela mesma com suas ações, o não atingir um objetivo representa que ainda existem restos vitais não aniquilados que conseguem conservar certa vitalidade interior apesar das defesas (aparentes) do Ego cada vez mais e mais rígidas.

Quero, ainda, acentuar o caráter de obrigatoriedade característico da obsessão, sempre egodistônica, em que a própria pessoa exerce as duas funções de obrigador e de ser obrigado. Tal conduta forçada limita sobremaneira a liberdade do sujeito que se vê impossibilitado de errar.

O homem cujo vir-a-ser não está arrestado, sabe que não é máquina de precisão, que o aproximado tem seu direito, o provisional tem seu sentido e até o erro é permitido em muitas ocasiões.

Esta liberdade amplia o horizonte de possibilidades humano, favorecendo a disponibilidade de atuar com precisão quando seja necessário.

O sempre vivo Fernando Pessoa em seu poema de 1914: 3

No entardecer dos dias de Verão, às vezes,

Ainda que não haja brisa nenhuma, parece

que passa, um momento, uma leve brisa…

Mas as árvores permanecem imóveis

Em todas as folhas de suas folhas

E os nossos sentidos tiveram uma ilusão,

Tiveram uma ilusão do que lhes agradaria…

Ah, os sentidos, os doentes que vêem e ouvem!

Fôssemos nós como devíamos ser

E não haveria em nós necessidade de ilusão…

Bastar-nos-ia sentir com clareza e vida

E nem repararmos para que há sentidos…


Mas graças a Deus que há imperfeição no Mundo

Porque a imperfeição é uma coisa,

E haver gente que erra é original,

E haver gente doente torna o Mundo engraçado.

Se não houvesse imperfeição, havia uma coisa a menos,

E deve haver muita coisa

Para termos muito o que ver e ouvir…

Sem imperfeição não há surpresa.

Sem surpresa não há devir,

e sem devir, onde há esperança?

Referências

*1. em PROUST M – No Caminho de Swann. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1979, p. 19.

*2. VON GEBSATTEL VEF – Antropologia Médica. Madri: Ediciones Rialp S.A., 1966, p. 186.

*3. em CAEIRO A – Fernando Pessoa – Obra Poética. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar S.A., 1990, p. 224.

Referências bibliográficas
1. ALONSO FERNANDES F – Fundamentos de la Psiquiatria Actual. Madri: Editorial Paz Montalvo, 1976.

2. GILES TR – História do Existencialismo e da Fenomenologia – Karl Jaspers. São paulo: EDUSP, 1973.

3. HEIDEGGER M – Ser e Tempo. Petrópolis: Ed. Vozes, 1990.

4. MINKOWSKI E – Le Temps Vécu, Neuchâtel, Suisse: Ed. Delachaux et Mestré, 1968.

5. PESSOA F – Obra Poética. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar S.A.,1990.

6. PROUST M – No Caminho de Swann. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1979.

7. Von GEBSATTEL VEF – Antropologia Médica. Madri: Ediciones Rialp S.A., 1966.

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