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Questionando o diagnóstico de Autismo Infantil Precoce

Observação: Alguns dos dados mostrados neste artigo estão presentes em nosso outro texto chamado “Rain Man”, aqui na RedePsi.
Em 1943, Leo Kanner publicou um artigo intitulado "Distúrbios Autistas do Contato Afetivo", repor­tando-se a onze crianças (8 meninos e 3 meninas), que ele observou no Serviço de Psiquiatria Infantil do Johns Hopkin's Hospital, que tinham em comum um padrão de conduta caracterizado pela sua "impressionante singularidade".

Mais tarde, em 1944, ele resolveu designar o quadro mental dessas crianças com a expressão autismo infantil precoce. Leo Kanner, é bom que se ressalte, sempre consi­derou o autismo infantil precoce como uma doença, uma entidade nosológica bem definida, assim como Rirnland, que chegava a separar esta nova "doença" da esquizofrenia infantil. Contra essa tendência nosográfico-nosológica sempre se bateu Lauretta Bender. Em outro artigo, Leo Kanner, já em 1965, dizia que "não há, realmente, ne­nhuma doença chamada esquizofrenia infantil". Nesse mesmo artigo, Kanner, ao se referir ao autismo infantil precoce, esclarece o termo de "síndrome", usado por ele: "… síndromes específicas – "específico" no sentido de uma "doença definitivamente distinguível". (…specíftc syn­dromes – "specific" in the sense of a "definitely distinguishable disease"), e que tem uma identidade própria" (it has an identity of its own).

Infelizmente, sua postura conseguiu antagonizar os esmerados e científicos trabalhos de Bender e Bradley, tendo sido, então, o autismo infantil precoce considerado, durante décadas, como uma verdadeira doença, enquanto a esquizofrenia infantil ficou pouco estudada e mal co­nhecida até nos meios acadêmicos.

Saraiva, dentre nós em 1969, chamou a atenção para a realidade clínica da esquizofrenia infantil, enquanto no trabalho de 1970, de Mário Moreira, esclarecia que o autismo infantil precoce era uma síndrome e jamais fora uma doença, como tanto queria, equivocadamente, Leo Kanner (1894-1981).

Concomitantemente às descrições de Leo Kanner, em Baltimore, H. Asperger descreveu, na primavera do ano de 1944, em Viena, uma síndrome que levou seu nome. Os pacientes acometidos da Síndrome de Asperger apre­sentavam um quadro clínico caracterizado por isolamento social, comportamento esquisito, e excêntrico, em tudo similar ao referido por Kanner. Atualmente, vários autores (Gillberg, 1989; Goodman, 1989; Berthier, Starkstein e Lei­guarda, 1990 e Kersbeshian, Burd e Fisher, 1990) não vêem nenhuma diferença clínica entre o autismo infantil precoce de Kanner e a síndrome descrita por Asperger. Ao mesmo tempo, à medida em que o tempo passou, e que mais se estudou e observou o que, nesse assunto, fora descrito, o autismo infantil precoce é hoje considerado universal­mente como uma síndrome, que pode estar presente em várias doenças e até mesmo verificável no primeiro estágio do desenvolvimento da inteligência da criança normal (Piaget).

O termo autismo procede de E. Bleuler que com ele designou determinadas e importantes qualidades do pen­samento e do comportamento esquizofrênicos. Autismo significa limitação a si próprio (autós em grego).

Seguindo a descrição clássica do quadro da psicopa­tologia da esquizofrenia por Bleuler, Kanner e Eisenberg tentaram estabelecer a psicopatologia do quadro clínico do autismo infantil precoce com sintomas básicos e secun­dários.

De toda a combinação de sintomas básicos estabelece­ram dois sintomas, que reputaram de valor patognomô­nico:

1. Um grande distanciamento autista do ambiente de relações humanas;

2. Uma necessidade físico-obsessiva de manutenção do ambiente inanimado.

Estes dois sintomas, segundo os autores, são necessários para o diagnóstico do autismo infantil precoce, não sendo, portanto, o autismo isolado, como sintoma, o suficiente para firmá-lo.

Como sintomas secundários, ressaltaram:

1. Uma grande alteração no desenvolvimento da fala;

2. O olhar desviado para o infinito;

3. Grande relação com os objetos, inclusive conside­rando as pessoas como se fossem objetos também, como se não existissem, o anima (em grego – alma) que lhes confere toda uma dimensão humana, transcendental e peculiar no reino da biologia.

Quanto à consideração sobre a inteligência, isto é, ainda hoje, objeto de controvérsia, que, de minha parte, não entro em consi­deração a seu respeito.

Em 1943, Kanner comunicou 11 casos de crianças cujas tendências ao retraimento foram observadas já no primeiro ano de vida. Deonna, Ziegler, Moura-Serra e Innocenti14 relatam que a regressão autista pode ser observada no período que medeia o 13° mês e o 22° mês de vida. Sua freqüência varia de 0,7 a 4,5 pacientes por 10.000 (Grudzka, Szumbarska e Puzynska, 1992).

Na terceira edição de sua Psiquiatria Infantil, porém, Leo Kanner informa já ter visto mais de cento e cinqüenta crianças autistas.

O denominador comum destas crianças era o não es­tabelecimento, desde cedo, de relações normais com as pessoas e as situações e eram levadas à consulta com a suspeita de debilidade mental ou deficiência auditiva. Na realidade os testes psicométricos apresentavam níveis mui­to baixos e a falta de reação aos sons, ou a resposta insuficiente, confirmavam a hipótese de surdez. No en­tanto, um exame meticuloso veio a demonstrar que a inteligência estava apenas mascarada pelo transtorno bá­sico, encontrando-se também íntegra, a audição.

Lebovici parece considerar o autismo infantil precoce como uma entidade nosológica à parte, no conjunto das psicoses infantis.

Tustin propõe uma classificação tripartite para o au­tismo:

1. Autismo primário normal, que a autora qualifica como uma prolongação anormal do autismo primário normal.

2. Autismo secundário à concha das tartarugas (carapace), e que parece corresponder ao autismo descrito por Kanner.

3. Autismo secundário regressivo, síndrome que parece superpor-se à esquizofrenia infantil.

Para Duché17, parece ser pouco realista tentar-se es­tabelecer uma nosografia e uma nosologia seguras para as psicoses infantis, opinião respeitável, com a qual, contu­do, não concordo; a própria índole de todo este livro, formula-se e dirige-se em sentido contrário a este pensa­mento do eminente psiquiatra da infância francês. Para Duché, cada caso deve ser apreciado individualmente, levando-se em conta o substrato neurobiológico e sensorial de base, a história clínica, o inter-relacionamento com o meio e a dinâmica familiar. Procura, Duché, encontrar uma conti­nuidade entre os estados psicóticos precoces e as esqui­zofrenias juvenis e do adulto na medida em que encontra fenômenos clínicos comuns entre estas entidades. Subdi­vide as psicoses infantis em duas categorias, antes e depois dos seis anos de idade, e as fraciona, ainda, em um total de oito entidades nosológicas:

1. Psicoses de desenvolvimento (antes dos seis anos):

a) Psicoses do primeiro ano (autismo infantil-Kanner).

b) Psicoses sirnbióticas (tipo Mahler).

c) Psicoses reveladas tardiamente (período de latência).

d) Psicoses decorrentes de carências importantes e cui­dados maternos.

2. Psicoses de desestruturação ou esquizofrênicas:

a) Esquizofrenia juvenil.

b) Esquizofrenia precoce.

c) Esquizofrenia aguda.

d) Formas pseudoneuróticas e caracteriais.

Mais tarde (1978), Duché reconheceu apenas três psi­coses que lhe pareceram suficientemente individualizadas para serem descritas separadamente, que são: o autismo de Kanner, as psicoses desenvolvidas sobre um fundo deficitário e as psicoses de expressão do caráter, considerando a esquizo­frenia como uma enfermidade da puberdade.

Levisky, em minucioso trabalho, resume, de maneira clara, as concepções do Centro Alfred Binet e da Clínica Psiquiátrica Infantil do hospital Salpêtrière, que demons­tram inumeráveis denominações e classificações para as psicoses infantis.

Como se pode ver perdeu-se, neste campo do conhe­cimento humano, aspectos relevantes da Lógica Formal, qual seja a procura da validade intrínseca das operações intelectuais. Tem-se a impressão de que o raciocínio não mais apresenta, para ser explicado, seus três componentes básicos, como sejam: para a apreensão, o termo; para o juízo, a proposição e para o raciocínio, o argumento.

Parece, inclusive, que se fala em autismo, sem antes conceituá-Io como sintoma, síndrome ou entidade noso­lógica, bem como, não se procura adentrar à essência pura (Husserl) dos fenômenos observados, mas seguir uma orientação puramente de natureza científico-descritiva, sem perceber-se que a psiquiatria também tem o seu ponderável conteúdo de ciência humana e social e, por­tanto, refratária, na sua totalidade e em sua índole mais íntima, à perquirição do método científico-natural, pura e simplesmente. Cremos, apenas, que a epistemologia fenomenológica de Husserl seja o único método capaz de, neste contexto do conhecimento humano, elaborar corretamente as idéias à procura e à demonstração da verdade, ou seja, penetrando na essência dos fenômenos clínicos patoplásticos, no sentido de chegar-se ao irredu­tível fenomenológico, representado pelo conteúdo pato­genético dos fenômenos psicopatológicos e, assim, pro­curar-se atingir às construções ideais do pensamento.

Pode-se ver que é difícil situar o início do aparecimento das primeiras manifestações mórbidas no autismo infantil precoce, e esta incerteza provoca, naturalmente, problemas que emergem de opiniões diferentes expressas a propósito de posições teóricas, principalmente a respeito do resul­tado da observação direta efetuada nos primeiros meses de vida. A criança autista é levada à consulta psiquiátrica no momento em que as perturbações já são manifestas, sendo comum o relato de uma história clínica referente a um descompasso progressivo e evidente entre as emer­gentes funções perceptivomotoras e seu correlato bloqueio ou impedimento interno. Raras são as crianças autistas que, pela sua evolução clínica, trazem inquietação ou suspeitas a seus pais durante o primeiro ou, até mesmo, no decurso do segundo semestre de vida. Freqüentemente, mais tarde, quando a criança é levada a exame com psi­quiatra ou neurologista, este diagnóstico é, então, lem­brado.

As histórias clínicas de Kanner indicavam que havia, invariavelmente, uma inclinação à solidão autista e a­lheamento total da realidade circundante. Um dos pro­blemas levantados era justamente o que dizia respeito ao mundo sonoro destas crianças. O diagnóstico de surdez é freqüentemente evocado sem que, contudo, os exames audiológicos permitam sua comprovação. Clinicamente, é de surpreender a discordância entre a ausência de reação aos apelos, às solicitações diretas como aos ruídos vio­lentos, enquanto que a um ruído discreto, ao limite da audição normal, a criança apresenta resposta. Schechter & cols. elaboraram uma hipótese, segundo a qual a criança autística é incapaz de filtrar, normalmente, os estímulos sensoriais que se lhe chegam através do mundo exterior, representando, portanto, o autismo, uma defesa de ordem psicológica contra os estímulos e solicitações, os quais a criança não se encontra capaz de integrar, nos níveis su­periores de seu sistema nervoso.

Com base nesta hipótese testaram três crianças colo­cando-as em quartos escuros pelos períodos respectiva­mente de 68 dias, 40 dias e 73 dias. Ao fim destas obser­vações, verificaram que todas as três apresentaram me­lhoras totais nos aspectos anteriores de retraimento e de defesas autísticas. Desenvolveram e mantiveram desejo de contato humano ao retomar às suas famílias.

Modificação da sensibilidade à dor, com uma elevação do limiar doloroso termo-álgico que foi igualmente ob­servado por diversos autores, para o que orientavam-se com explicações de ordem neurofisiológica.

As perturbações da linguagem são constantes. Cerca de dois terços das crianças inicialmente observadas por Kanner aprenderam a falar, mas a linguagem não lhes servia como meio de comunicação. Elas repetiam com facilidade listas de nomes, canções, poemas etc., como se falassem (palrear) automaticamente "como papagaio", diz Leo Kan­ner, faltando a conotação afetiva, a inflexão vocal de quem quer transmitir alguma coisa. Um terço das crianças permanecia em mutismo completo, dizendo, raramente, palavras soltas e sem significado. Por vezes, escutavam palavras e frases, guardavam-nas e as reproduziam mais tarde, como se fosse uma "ecolalia retardada" (Kanner). As respostas afirmativas se faziam pela repetição literal das perguntas, pois o conceito do "sim" é dificilmente adqui­rido.

Os pronomes pessoais são repetidos como são ouvidos, não se adaptando às situações do momento. Desta forma a criança fala de si mesmo como "você" e se refere ao interlocutor como "tu". Além disso, se a pergunta é feita de modo interrogativo, a resposta guarda a mesma forma gramatical e a inflexão da indagação feita. Só aos seis anos é que vão aprendendo a falar na primeira pessoa e a referir-se ao interlocutor na terceira pessoa do singular.

Tipicamente, estas crianças autistas exprimem-se atra­vés de uma verdadeira ausência de linguagem, corolário do desinteresse evidente pelo contato humano. Não pres­tam atenção às solicitações verbais dos outros. Não se comunicam quer pela palavra, quer por qualquer outro modo.

Quando as perturbações de linguagem aparecem pre­cocemente, em tomo dos dois anos de idade, ela não possui valor para comunicação. Elas são constituídas de palavras isoladas, freqüentemente deformadas, incomple­tas e incompreensíveis no sentido em que são empregadas. As palavras, no entanto, são corretamente pronunciadas, chegando a ser grupadas em pequenas frases, mas elas conservam uma notável inadequação às situações em que são proferidas. O ritmo de emissão correta da linguagem é muito variável: a evolução pode parecer rápida, no que diz respeito ao plano do enriquecimento do vocabulário e da adaptação à sintaxe, mas, persiste por longo tempo uma incapacidade para utilizar os pronomes pessoais, havendo confusão no emprego do "ele", por "eu", o que é interpretado como uma identificação ao "ele". Outros autores (Rutter, Pronovost) acham que se trata de um fenômeno de ecolalia. Portanto, a repetição em eco, quando se a encontra em uma criança autista, representa um fenômeno muito diferente da ecolalia encontrada na crian­ça oligofrênica. Não significa apenas uma repetição ime­diata, mas sim, ligada a uma formulação diferente, po­dendo comportar uma frase completa. É, pois, uma ver­dadeira metalalia tendo valor de afirmação e identificação com o interlocutor. Os distúrbios da linguagem revelam uma perturbação global da personalidade caminhando paralelamente como uma ameaça significativa à relação com o próximo.

Aos quatro meses as mães notam, com certo espanto, a ausência da posição que a criança habitualmente assume quando deseja que a pegue nos braços.

Uma característica marcante no retraimento autista é uma evidente apatia e falta de ressonância afetiva nas relações interpessoais. Gostam do isolamento e com­prazem-se na solidão, afastando-se de tudo e de todos. Caso se pretende quebrar esta solidão, a criança mostra-se intensamente irritada e intensifica o afastamento ante­rior.

Kanner, originariamente, sugeriu que a criança autística nasceria com uma inabilidade congênita no sentido de formar vínculos afetivos. A experiência, segundo os autores citados, mostra que esta criança é capaz de elaboração de ligações familiais de tonalidade emocional, mas que o obstáculo surgiria no momento da formação destes mes­mos laços familiais. Referem que não só a criança, como também a família e, principalmente a mãe, contribui, mu­tuamente, para o fracasso da integração emocional normal, no conjunto do meio familial.

A criança seria, inicialmente, incorporada ao ambiente familial, como usualmente se processa com as demais crianças normais, mas que, para ela, já com aquele com­prometimento de ordem emocional de que fala Kanner. Haveria, para isso, um obstáculo quase inacessível, repre­sentando, pois, o autismo, um sintoma de defesa, e que seria cada vez mais reforçado, à medida que, ao re­traimento, fossem intensificando as solicitações fami­liais, embora realizadas no bom sentido, com a finalidade de vê-Ia em adequação emocional com a família.

As estereotipias e os rituais obsessivos se integram às manifestações precedentes. Os cerimoniais diversos, os tiques, os gestos iterativos, variáveis de um caso a outro, conferem, a cada criança, uma atitude particular.

Certas crianças organizam atividades mais complexas, através de verificações concernentes à imutabilidade do modo de vida, à manipulação estranha e sofisticada de certos objetos, a ritualizações bizarras referentes aos modos de alimentação, às maneiras de vestir, de lavar-se, de brincar, de jogar, do uso da atividade esfincteriana e por aí vai.

Quando se notam, nestas crianças, de maneira preva­lente o aparecimento de certas manipulações complexas, tais como, construções, jogos de paciência, preocupações numismáticas, filatélicas e repetições obsessivas. Isto deve representar um valor diagnóstico, pelo seu caráter repe­titivo, pelo que, restringe na criança, a atividade global de sua personalidade. Esta se vira inteiramente para tais móveis obsessivos, que se repetem de maneira monótona sem que se observe, nas demais áreas da personalidade, uma evolução global, integrada, harmônica e com a natural dispersão da esfera de interesses, que normalmente se nota no mundo infantil.

Observam-se que apresentam rituais obsessivos e se de­sesperam se algo vem a interromper uma rotina já prees­tabelecida. Tudo fazem para a conservação da mesmice; qualquer mudança no ambiente em que vivem como por exemplo, troca de lugar de móveis etc., as tornam ansiosas e irritadiças. Esforçam-se pela preservação, a todo custo, da manutenção do status quo. A criança autista deseja viver num mundo estático, onde nenhuma modificação seja possível ou tolerada; somente a criança mesma é que pode, de raro, mudar alguma coisa, mas ninguém além dela pode fazer isto sem lhe trazer irritação, birra, ansie­dade, raiva e sofrimento. Nenhuma parte de um todo pode ser alterada em termos de forma, seqüência e espaço. A mais leve modificação pode levar a criança a violentas explosões de raiva.

Léon Eisenberg cita como sintomas patognomônicos do autismo infantil precoce o isolamento em que a criança se coloca e a insistência obsessiva na preservação da mes­mice.

O relacionamento da criança autista com o mundo circundante é superficial, mas qualquer modificação que nele se dê será vivenciada com ansiedade e a ela se oporá persistentemente. Deixando a criança autista agir sem qualquer interferência ela se empenhará em brincadeiras giratórias e repetitivas, organizando-se de acordo com uma determinada rotina que seguirá rigorosamente todos os dias.

Peculiaridades quanto ao pensamento são notadas: a semelhança é confundida com identidade e o todo com suas partes constitutivas. Surgem dificuldades com a ali­mentação, recusa à mastigação e problemas quanto ao aprendizado dos hábitos higiênicos.

Kanner e Eisenberg assinalam a importância da lin­guagem como índice de prognóstico. Observam que uma evolução favorável depende da presença de uma lingua­gem normal até aos cinco anos, caso contrário torna-se sombrio o prognóstico.

Para Kanner, em relação à família das crianças autistas, a maioria dos pais, avós e colaterais são pessoas inteli­gentes, porém, obsessivas, encontrando-se entre eles mui­tos médicos, homens de ciência, escritores e artistas. A maioria seria composta de pessoas frias, in­tensamente preocupadas com abstrações cientificas, lite­rárias ou artísticas e pouco inclinadas aos genuínos in­teresses humanos, inclusive os matrimônios mais felizes são frios e formais.

Kanner considerou que o estado autista destas crianças era afecção de origem principalmente psicógena; produ­zir-se-ia nelas uma deficiência do desenvolvimento das faculdades do eu e de sua identidade, como conseqüência da falta de um calor emocional suficiente e da correspon­dência afetiva da mãe. Em tais circunstâncias um substrato biológico deficiente aumentaria a tendência a um desen­volvimento desviado e anormal.

Entretanto a investigação a respeito dos pais das crian­ças autistas, levadas a efeito por Lobascher, Gubbay & Kingerlee, não chegaram às mesmas conclusões de Kanner. Após acurado estudo verificaram que o alcoolismo, doen­ças da psiquiatria várias e debilidade mental ocorriam sig­nificantemente em maior proporção nas famílias das crian­ças autistas do que o observado no grupo de controle. Verificaram, estudando 25 crianças autistas, que as mães destes pacientes tiveram um período de gestação mais prolongado que o observado no grupo de controle, bem como maiores dificuldades obstétricas por ocasião do nas­cimento. Das crianças autistas, 56% demonstraram evi­dência de desordens neurológicas, verificáveis aos exames neurológicos e eletrencefalográficos e, por fim, notaram baixos níveis de QI nos testes psicométricos. Citam Creak e Ini que não encontraram qualquer evidência de etiologia psicogenética em um estudo de 200 pais de crianças autistas. Segundo os autores, um forte fator de predisposição ge­nética foi encontrado, pois 40% dos pais destas crianças eram esquizofrênicos.


Achados biológicos

Atualmente, o autismo infantil precoce é considerado como uma desordem universal do desenvolvimento, de­teriorando os mecanismos concernentes ao comportamen­to e aos aspectos biológicos, psicológicos e sociais da criança (Dalton & Howell12; Courchesne, Press & Yeung-­Courchesne, 1993; Lotspeich & Ciaranelo, 1993 e Mays & Gillon47.

O autismo infantil constitui-se em um distúrbio neu­rológico grave que prejudica severamente o desenvol­vimento das mais altas funções cognitivas. Achados de necrópsia demonstram haver hipoplasia dos hemisférios cerebelares, bem como do vérmis cerebelar. Verifica­ram-se, também, perda dos neurônios de Purkinje no cerebelo posterior. Foi observado, ainda, em achados de necropsia, uma parada do desenvolvimento das es­truturas límbicas.

Os lobos parietais têm uma aparência anormal em 43% das crianças autistas. Observa-se perda do volume cortical, incluindo diminuição dos lobos parietais, frontal e occi­pital. Estes estudos, realizados com ressonância magnética, também mostram adelgaçamento do corpo caloso. Has­himoto & cols. (1992) acharam notável diminui­ção do tronco cerebral em crianças autistas, pesquisando com ressonância magnética.

Malformações nos hemisférios cerebrais, tais como po­limicrogiria e macrogiria foram relatadas por Kemper & Bauman35. Piven & cols. (1990) referiram dano anatômico aos núcleos da base. Estas agressões orgânicas, ao sistema nervoso central, prejudicam, diretamente, as conexões entre o tronco cerebral, hipotálamo e tálamo e os circuitos intercerebelares e cerebelo-hipotalâmicos, in­terferindo negativamente nas funções cognitivas, senso­riais e psicomotoras das crianças autistas.

Ao que parece, as alterações anatômicas do sistema nervoso central são devidas à síndrome do cromossomo X frágil e acometimento dos cromossomos 1, 7 e 21 (Lopreiato & Wulfsberg, 1992).

R. Lemp, da Universidade de Nervenklin, em Tübingen, examinou 40 crianças autistas e as considerou como casos de psicossíndrome orgânica, com notável comprometi­mento hereditário e dano cerebral durante o período da primeira infância.

Gubbay & cols.24 realizaram exames neurológicos e estudos eletrencefalográficos em 25 crianças com diag­nóstico de autismo. Cinqüenta e 6% dessas crianças apresentaram inequívocas evidências de lesão orgânica cerebral e 84% delas reve­laram dados sugestivos da existência de encefalopatia.

Prognóstico

A avaliação do prognóstico parece estar intimamente ligada à época do aparecimento da fala.

Em um estudo em 63 crianças com autismo infantil, Eisenberg notou em 31 casos, que ainda não haviam apre­sentado capacidade de comunicação verbal, em torno da idade de cinco anos, um péssimo ajuste durante a ado­lescência. Das 32 crianças que gozam certo grau de fala útil, a metade conseguiu um ajuste ''bom ou mediano", enquanto que as outras só o lograram escassamente.

Conclusões

Pelo que se pode observar, o autismo infantil deve ser considerado uma síndrome ou um sintoma, que aparece nas mais variadas condições clínicas, tais como: esquizo­frenia infantil, oligofrenias, encefalites, epilepsias (incluin­do a Síndrome de West), Doença de Tay-Sachs, distrofia muscular congênita, neurofibromatose, Síndrome de Down, Síndrome de Willians, Síndrome de Gilles de La Tourette, Síndrome de Turner, Síndrome de Marfan, Sín­drome de Goldenhan, esclerose tuberosa, mucopolissaca­ridoses e encefalopatias diversas.

Em síntese, a meu ver, o autismo infantil precoce do professor Leo Kanner em nada contribuiu para aclarar o intrincado capítulo das psicoses infantis e, muito pelo contrário, só o complicou com mais uma designação nova que, além de nada trazer de original, não resistiu, como "doença" ou "quadro clínico espe­cifico", aos estudos e observações posteriores.

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