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A Transferência do Mal

Procuraremos estabelecer uma análise das vivências da “TRANSFERÊNCIA DO MAL”, dentro das vertentes histórico-religiosas e da situação analítica.

Sabemos, através da história da psicanálise, que a leitura deste trabalho, denominado "O Ramo de Ouro", muito teria influenciado Freud em seus escritos, nomeadamente em "Totem e Tabu". Pretendo, com a retomada dessa obra, traçar algumas correlações histórico-religiosas, bem como com a situação analítica.

A idéia de que poderia ser possível transferirmos as nossas culpas e sofrimentos para algum outro ser que os suportará por nós, é bem conhecida através da análise da conduta dos povos primitivos. Ela é oriunda de um tipo de confusão que ocorre entre as instâncias física e mental, entre o aspecto material e o imaterial.

Assim sendo, da mesma forma em que é possível passar uma carga de madeira ou outra qualquer de nossas costas para as costas de uma outra pessoa, assim também o selvagem imaginaria ser igualmente possível, transferir o peso de suas dores e penas, para outra pessoa que arcaria com o seu sofrimento em seu lugar. É notório que o princípio do sofrimento indireto é compreendido e praticado por aquelas raças que estariam situadas em um nível pouco elevado de cultura social assim como intelectual.

Procuraremos citar algumas das estratégias das quais se valeriam os selvagens, numa tentativa de conseguir o seu intento.

Devemos observar, de início, que o mal de que o homem quer se livrar não precisa ser transferido necessariamente para uma pessoa: pode ser igualmente transferido para um animal ou mesmo uma coisa, embora nesse último caso, ela seja apenas um veículo que portará o mal e o transmitirá para a primeira pessoa que entrar em contato com ela .
No distrito ocidental da ilha de Timor, quando as pessoas estão realizando viagens muito longas e cansativas, costumam se abanar com ramos de folhas, as quais depois serão lançadas fora em determinados lugares, assim como o teriam feito os seus antepassados. Com isso acreditam que a fadiga seria transmitida às folhas e ficaria para trás.

Evidentemente incapaz de distinguir o material do imaterial, o abstrato do concreto, o primitivo supõe que não é só a fadiga que joga fora com as folhas, mas também os medos que se apossaram dele durante a viajem. Se for sabedor de algum crime ou tragédia que acontecera em alguma parte do trajeto, entenderá esse local como sendo assombrado. Isso em sua maneira simples e sensória de reagir, parece-lhe ser possível lançando alguma coisa no lugar horrível e fugindo em seguida.

Não será assim o contágio da desgraça, separado dele e transferido para a coisa? Não recolherá ela em si as influências maléficas que o ameaçavam, deixando-o em paz para continuar sua viagem com tranqüilidade?

Os animais também são utilizados com muita freqüência, como veículo para a transferência ou desaparecimento do mal.

Assim, entre os majhwars, raça do sul de Mirzapur, se algum indivíduo morre em virtude de uma doença contagiosa, como a cólera, o sacerdote responsável pela aldeia vai à frente do enterro levando sempre nas mãos uma galinha, a qual irá ser solta na direção de uma outra aldeia, como um bode expiatório, assim carregando para lá a infecção. Ninguém, a não ser um outro sacerdote muito experiente nesse tipo de ritualística, ousaria comer essa galinha.

Homens por vezes desempenham o papel de bode expiatório. Sabe-se de um antigo ritual hindu, o qual descreve como as angústias da sede podem ser transferidas de um homem doente para outro são. O operador coloca os dois sentados de costas, o enfermo com o rosto voltado para o leste e o indivíduo são com o rosto voltado para o oeste. Na seqüência, mexe um tipo de caldo numa vasilha que é colocada sobre a cabeça do paciente e dá, em seguida, o caldo para o outro homem para que o beba. Assim, ele transfere o sofrimento da sede daquela alma sedenta, para a outra que receberia esse sofrimento.

Historicamente, conta-se que a grande peste que devastou o mundo antigo, no reinado de Marco Antonio, ter-se-ia originado em função da curiosidade e da ambição de alguns soldados romanos, que ao saquearem a cidade de Selêucia, encontraram um buraco estreito num templo e ampliaram a abertura, na esperança de encontrar um tesouro. O que saiu dali foi a peste. Havia sido aprisionada num compartimento secreto pela arte mágica dos caldeus.

Em outras ocasiões, o bode expiatório é um animal divino. Os habitantes de Malabar adotam a mesma reverência que os hindus têm pela vaca e matá-la e comê-la é por "eles considerado como um crime tão hediondo quanto o homicídio ou o assassinato premeditado". Não obstante, "os brâmanes transferem os pecados do povo para uma ou mais vacas; são então levados para longe tanto as vacas como os pecados de que estão carregados, para o lugar determinado pelos brâmanes.

Num local denominado o Templo da Lua, os albaneses do Cáucaso oriental mantinham alguns escravos sagrados, dentre os quais muitos eram inspirados e faziam profecias. Quando um deles evidenciava sintomas excepcionais de inspiração ou sanidade e passava a vagar solitário pelos bosques, o sumo sacerdote mandava prendê-lo com uma corrente dita sagrada e o sustentava com todo o luxo e conforto durante um ano, ao final do qual ungia-o com ungüentos e levava-o ao sacrifício. Existia sempre um homem cuja função era a de sacrificar essas tais vítimas, o qual avançava da multidão e atirava uma lança sagrada, atravessando o coração da vítima. De acordo com a forma como o homem tombava, inferiam através de um código próprio, presságios para a vida de toda a aldeia. Muito bem, tecidas essas considerações de ordem histórica, passaremos a fazer às correlações que deram origem a esse trabalho.

Em se tratando de " bode expiatório", oferecido em sacrifício para expiar os males que assolavam as aldeias, me parece impossível ou ao menos muito pouco provável, não nos acudir à mente a figura de Jesus de Nazaré, filho de Deus Pai e que teria se tornado homem, para além de transmitir a palavra do Senhor, se oferecer em sacrifício, para salvar a humanidade do pecado original.

Contudo, se observarmos os ditames encontrados na religião católica, nomeadamente nos momentos que antecedem à comunhão, os fiéis dizem: "Senhor eu não sou digno que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e serei salvo". Percebe-se que mesmo depois do sacrifício supostamente redentor, o homem continua sendo indigno. Além disso, se retomarmos o extraordinário trabalho de Freud "Totem e Tabu", notaremos que , no "banquete totêmico", o animal totêmico é morto e comido por todos os membros da aldeia. Numa correlação direta com a religião católica, por ocasião da comunhão, Cristo vem pra dentro de nós, supostamente nos purificando. Mas, ocorre que esse mesmo ser que nos purifica e que nos vigiava desde fora, agora passará a nos vigiar desde dentro.

Aliás, o que nos é dito é que "pecamos por pensamentos, palavras, atos e omissões". Parece que neste estado de coisas, não temos saída possível, nos restando permanecer nesse ciclo vicioso de pecado e purificação constante. Ao fazermos isso e, mais do que fazermos, sentirmos isso, estaremos absolutamente acorrentados na culpabilidade infinita.

Imaginemos a seguinte situação: um pré-púbere que freqüenta as missas dominicais, que antes disso fez a catequese e a primeira comunhão. Com a natural explosão hormonal típica desse período da vida, e tendo em sua vida fantasmática, devaneios de ordem erótica, como poderá exercitar a prática masturbatória se, ao mesmo tempo estará, segundo os cânones religiosos, pecando contra a castidade? Prazer e culpa são duas coisas que definitivamente não combinam.

Tomando agora como nosso alvo de observação, a situação analítica. Como será possível, para um analisando, manter em relação ao seu ou à sua analista, fantasias eróticas, quando esse analista ou essa analista, estejam ocupando transferencialmente os "lugares" paterno e/ou materno. Digo e/ou, acolhendo uma recomendação do próprio Freud que dizia que seria sempre preferível nos referirmos "aos pais". Nesse momento, me parece interessante retomar uma metáfora freudiana, na qual o seu autor nos diz que, o analista senta com o seu paciente para um "jogo de xadrez" e, que a sua função é a de propiciar ao paciente desenvolver outras jogadas possíveis, além daquelas a ele propiciadas pelos seus aspectos neuróticos.

Já quando estamos diante de pacientes psicóticos, aos quais a sugestão quanto à utilização do divã deve ser feita com muita parcimônia, principalmente pelo aspecto da concretude pela qual estão invadidos, penso que é onde nos é possível vivenciarmos com uma maior clareza, o aspecto da "transferência do mal". Mantermos o paciente frente a frente conosco durante a sessão, pode ser facilitador para que ele possa perceber que através de sua fala prenhe de agressividade por muitas vezes, não obteve como efeito o nosso, também temido por ele, despedaçamento e fragmentação, sensações a bem da verdade, vivenciadas por ele próprio.
Muitas vezes, recebemos por parte dos familiares dos pacientes psicóticos, reclamações no sentido de que depois de defecarem, não puxem a descarga. Se tivermos em mente, uma necessidade de expurgar o mal podemos entender, que muito provavelmente a vivência de tal paciente é a de não poder olhar e constatar que "coisas" saíram dele, significando essa vivência de que ele estaria perdendo "pedaços" de uma "integridade já tão despedaçada" em sua representação mental.

O analista em maior ou menor grau, muitas vezes fica colocado nas mesmas condições de importância do pajé, o qual através de uma espécie de pajelança, teria a habilidade de tirar o mal do corpo e da mente de seus pacientes.

Que o analista seja assim localizado, dentro da fantasmagoria inconsciente dos pacientes, e muitas vezes de seus familiares, creio que teremos aqui material para muito se trabalhar. Agora, confesso que muito me preocupam aqueles que são assim "investidos" e que incorporam tal investimento, como sendo uma verdade absoluta e inquestionável. O que acaba complicando ainda mais a já grave situação desse "analista" é que uma vez possuidor dessa "vivência delirante", jamais irá procurar por ajuda, uma vez que no quesito ajuda, ele é que é o expert maior e inigualável.

Interrompo por aqui, deixando duas sugestões aos leitores desse artigo: a primeira é a de que tentem entrar em contato com a obra "O Ramo de Ouro", obra de inigualável magnitude em conteúdo e beleza de ilustrações. A segunda e mais árdua sugestão, é a de que os leitores tentem pensar neste artigo, aplicado à conjuntura política, tanto em seus aspectos históricos, bem como em relação à atualidade, onde os "bodes expiatórios", me parece existirem aos montes e propiciando inclusive, que possamos fazer uma reflexão sobre o nosso próprio papel nessa conjuntura, individual e coletivamente.


Referência bibliográfica:

"Totem e Tabu" – Obras Completas de S. Freud.

"O Ramo de Ouro" – Sir James George Frazer – Zahar Editora.

"Relatório de meus estudos em Paris e Berlim" – Obras Completas de S. Freud.( Demonstrações feitas por Charcot, quanto à transferência de sintomas entre pacientes histéricos)

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