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A estética em busca do aborto ético

RESUMO

Este artigo foi escrito no intuito de oferecer ao leitor um tempo de reflexão sobre a polêmica questão ética envolvida na interrupção intencionalmente provocada de uma gravidez. Para ilustrar este dilema humano, escolhemos a problematização contida no livro The cider house rules, "As regras da casa de cidra", de John Irving, o qual foi roteirizado para o filme de Lasse Hallström, "Regras da vida". O fio condutor das análises do livro e do filme é desenvolvido a partir das especulações inteligentemente provocantes, e por vezes chocantes, do filósofo Peter Singer no seu texto Ética Prática.

Palavras-chave: 1. bioética; 2. cinema; 3. literatura; 4. filosofia; 5. direito.

ABSTRACT

This article was written in intention to offer to the reader a reflection's time on the controversial involved ethical question in the interruption intentionally provoked of a pregnancy. To illustrate this human quandary, we choose the problem contained in the book, "The cider house rules", of John Irving, which was script for the film of Lasse Hallström with de same name (in portuguese: Regras da Vida). The conducting wire of the analyses of the book and the film is developed from the intelligently provocative speculations, e for chocking times, of the philosopher Peter Singer in its Practical Ethical text.

Keywords: 1. bioethics; 2. cinema; 3. literature; 4. philosophy; 5. justice.

 

Duas linguagens:

a estética – lítero-cinematográfica, e

a ética – filosófica,  

a escrutinarem o mesmo dilema humano: o aborto provocado.

The cider house rules (As regras da casa de cidra) é o título do livro de John Irving (1994) que, nas suas mais de quinhentas páginas, anima seus personagens, de encanto e tristeza, que nos contaminam da mais pura magia da arte literária, dando-nos a oportunidade de identificações com situações absolutamente verossímeis. Ele consegue colocar na sua obra de ficção a exatidão de nossa realidade. Suas edições vêm-se esgotando aliviando a náusea, por catarse, de todos nós.

"Regras da vida" é o título, entre nós, do filme, com 126 minutos de duração, de 1999, baseado nesta história. Na competente direção de Lasse Hallström, com roteiro do próprio autor, John Irving, os personagens ganham forma em um fundo de extraordinária beleza, trazendo à luz paisagens, ambientes, cores, música e diálogos de cristalina singeleza, transformando a cidade de Maine, numa espécie de Paraíso Perdido, apesar de tudo.

Para quem ainda não o leu ou assistiu, e a quem já o fez, chamamos a atenção para o fato de que trabalhar com crianças, dentro de um orfanato, e não cair no pieguismo, no gesto forçado, na poluição da algazarra, em uma enfadonha mesmice sentimentalesca, mas, ao contrário, dirigir estes pequenos atores, extraindo-lhes uma consistência ímpar no riso ou no choro, na fala infantil espontânea, na inocência mostrada, e não explorada, de maneira pungente e autêntica, tudo isso, para um diretor de cena, é como se equilibrar, o tempo todo, em um fio de navalha. No entanto, do começo ao fim, somos convidados a participar do convívio daqueles órfãos, de maneira agradável e surpreendentemente realística.

"Ética prática" (Practical ethics), de Peter Singer (1998), filósofo que provoca o cisalhamento dos pilares que sustentam nossas, aparentemente, irremovíveis convicções. Singer consegue, com argumentação límpida, lógica e direta, transformar, cada um de nós, em verdadeira "metamorfose ambulante". Sempre que lhe apresentamos uma antítese, emerge uma nova síntese, desmascarando o quanto nossas "velhas opiniões formadas sobre (quase) tudo" são efêmeras ilusões. (trechos entre aspas de Raul Seixas, 1973).

Não iremos congestionar este artigo-resenha com uma sinopse do que é vivido no orfanato e na casa de cidra. Qualquer um de nós pode consultar a videolocadora mais próxima, ou digitar uma busca pela Internet, para ler estes resumos feitos por profissionais da área. Além do que, de sinóptica já bastam nossas vidas: aquela impressão de nunca termos vivenciado plenamente nossas situações, de termos, limitadamente, enxergado com uma única visão – syn + optikós – todos os ângulos que a existência, pacientemente, procura-nos mostrar, e de sofrermos a terrível angústia vital da irreversibilidade do tempo, impedindo-nos de reparar, concretamente, o desastroso agir diário que temos. Nossas vidas são como o trabalho de um vendedor de comerciais pela mídia. O cliente mostra sua mercadoria e o executivo da publicidade vende o tempo (chronós) de mão-única, sem retorno. Os horários não vendidos já não existem mais. Nossas vidas não vividas já não existem mais, também. Ficam as reelaborações inventadas pela memória a nos iludir.

"Regras da vida" tem de ser saboreado a cada segundo e de maneira global. Em especial, através de seus dois personagens centrais: O Dr. Wilbur Larch, interpretado por Michael Caine, e Homer Wells, corporificado pela inocência nascente de Tobey Maguire. Estas duas figuras se colocam como antípodas na questão básica, o aborto. Cada qual puxa o fio de sua meada ao longo dos fatos correntes. Além deles, é claro, as crianças, objeto primeiro das discussões éticas e estéticas. Cada uma delas trazida nos seus momentos mais pungentes: Curly, "The One", sentindo-se sempre o mais rejeitado de todos por não ser adotado pelos casais que aparecem no orfanato; a menina-moça, a mais velha, descobrindo e burilando seu poder erótico de órfã sedução; o pequeno "Fuzzy", filho de mãe alcoólatra, bronquítico crônico, vivendo numa carinhosa tenda de oxigênio que lhe foi feita especialmente pelo Dr. Wilbur, que nos comove com seus "por quês" sérios e graciosos; a amizade fraterna, sincera e respeitosa oferecida por Buster a Homer, o seu sofrido recolhimento, não se despedindo de Homer, quando este resolve pegar sua carona para o mundo; Homer, que depois de duas adoções equivocadas, acaba nas mãos do próprio Dr. Wilbur, que irá dedicar-lhe um profundo amor paternal, além de prepará-lo a "ser útil" na vida, ensinando-lhe a arte da medicina; a extremosa dedicação das duas enfermeiras-mães se dividindo entre todas as crianças em igual dose.

O que é vivido fora de St. Cloud's acrescenta ao drama os elementos necessários para a grande experiência que Homer irá viver: a paixão por Candy Kendall (Charlize Theron), o trabalho fora da medicina, o contato com pessoas tão diferentes de si, com suas vidas nômades e construídas à base de regras próprias. Irving e Hallström mesclam em sua criatividade, imagens, sons, diálogos e situações, envolvendo-nos na trama do cotidiano deste povo simples, e colocando-nos diante de um impasse cruel: o surgimento uma gravidez por incesto paterno.

De uma coisa temos certeza: todos os personagens desta história são sensíveis, ricos em sentimentos, e, portanto, não há presença de personalidade psicopática, ou sociopática, neste meio. A única exceção, talvez, seria de uma figura bem distante do núcleo das nossas atenções: um catador de maçãs rebelde e agressivo, mas que logo desaparece de cena. Dizemos isso, pois o tema do aborto poderia facilmente associar-se com questões da marginalidade social. Há cenas emocionantes as quais desvelam temperamentos de grande afetuosidade nas figuras temáticas centrais.

Nós lecionamos Filosofia na Universidade Anhembi Morumbi, na cidade de São Paulo. Quando chegamos ao capítulo de Ética e introduzimos a questão do aborto em Bioética, vimos há quatro anos seguidos, apresentando este filme para nossas turmas semestrais. Centenas de alunos têm participado desta experiência. Com cerca de dez turmas por semestre, formadas, em média, por quarenta alunos cada uma, ao longo destes oito últimos semestres. Selecionamos um probando de cerca de 400 alunos, que multiplicado por oito semestres, chega à cifra de 3200 reações individuais ao filme "Regras da vida".

Mesmo com alunos de postura rigidamente contra qualquer tipo de aborto, não encontramos um sequer que não tenha cooptado a decisão de Homer, em interromper aquela gestação incestuosa. E, a partir daí, com debates de calorosa argumentação, ficamos surpresos com a flexibilização alcançada por nossos alunos em suas posturas, que nos pareciam, a princípio, irremovíveis.

Não podemos reduzir esse debate somente a um SIM ou um NÃO. Cada gestação indesejada surgida vem lambuzada pelo contexto daquelas vidas. A lógica aristotélica binária não dá conta da situação. Newton da Costa nos dá a ferramenta da lógica paraconsistente, aonde, entre o SIM e o NÃO, há muito o quê ser considerado.

Estão em ação inúmeras dimensões humanas nesta questão. Antes de expormos a ética prática da filosofia de Peter Singer, passemos, rapidamente, pelo viés legal e jurídico que contempla a prática do aborto.

O problema legal e jurídico

Pelo Decreto-Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940, o Código Penal Brasileiro capitula o aborto como ato punível a quem praticá-lo ou com ele colaborar. Há penas de detenção e reclusão, sendo esta mais severa (Salles Jr., 2000).

O artigo 124 reza: "Provocar aborto em si mesma ou permitir que outrem lho provoque: Pena-detenção, de um a três anos".

A experiência diária mostra que a maioria dos abortos se dá com o consentimento da gestante pela prática, embora, com alguma freqüência, encontre-se, também, o auto-aborto (Matielo, 1994, p. 57).

O artigo 125 reza: "Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena-reclusão, de três a dez anos".

Quando o crime for contra menor de 14 anos de idade, ou em pessoa com debilidade mental, torna-se praticamente impossível provar que houve consentimento da gestante (Idem, pp. 57-58).

O artigo 126 reza: "Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena-reclusão, de um a quatro anos".

Neste caso à gestante caberá as sanções do artigo 124, e àquele que pratica a manobra, incorrerá no artigo 126.

O artigo 127 prevê o aborto qualificado: "As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte".

O artigo 128 externa os casos de permissão legal para o aborto, dividido em aborto necessário (inciso I) e aborto sentimental (inciso II): "Não se pune o aborto praticado por médico":

Inciso I do artigo 128: refere-se ao aborto necessário ou terapêutico, executado quando não há outro meio de salvar a vida da gestante.

Inciso II do artigo 128: refere-se ao aborto ético, sentimental ou humanitário, permitido quando resultante de estupro contra a gestante. 

Para estes dois incisos é desnecessária a autorização judicial inicial.

A Constituição Republicana de 1988 é ostensivamente contra o aborto, quando insere como cláusula pétrea, o seu artigo 5º, que define como garantia fundamental a inviolabilidade do direito à vida, esvaziando o artigo 128 do Código Penal de 1940. Na revisão do Código Civil de 2002, o artigo 2º vai mais longe ao estabelecer que a personalidade civil começa com o nascimento, mas os seus direitos estão garantidos desde a concepção.

No momento em que escrevo este artigo, está em pauta na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, o projeto de lei nº. 1.135/1991, ao qual estão apensos mais de vinte projetos de lei com o objetivo de legalizar o aborto no Brasil (Bassuma, 2005).

O nosso Código Penal não permite o aborto eugênico, isto é, aquele praticado face à possibilidade de vir o nascituro a portar deficiência física ou mental, por herança genética. A aceitação de tal procedimento faria com que se retornasse aos tempos remotos da antiga Roma, onde se jogavam de penhascos as crianças nascidas com deformidades, sob o pretexto de que os nascidos sem "aparência humana" não eram pessoas, não eram seres humanos (Idem, p. 63).

São puníveis, também, os chamados:

(a) aborto honoris causa: praticado em função de gravidez extra-matrimonial, e que seria realizado "em defesa da honra";

(b) aborto econômico: quando praticado por questões ligadas à precariedade das condições financeiras da gestante, incapaz de manter a criança e educá-la com dignidade.

Por ser considerado crime contra a vida, o julgamento dos delitos de aborto é feito pelo Tribunal do Júri, constituído por jurados escolhidos do meio social. É o chamado Júri Popular.

Observação: Segundo recente relatório do IBGE, mais de 90% da população brasileira assume uma posição religiosa. Na sua maioria, ainda é a católica apostólica romana, religião que se opõe a qualquer tipo de aborto. Talvez, por isso, os magistrados, os médicos e a direção dos grandes hospitais, se mostram extremamente desconfortáveis quando se deparam com um caso de interrupção de gravidez, mesmo que prevista e autorizada pelo nosso Código. Aqui a religião fala mais alto e cala a lei no fundo do peito. Vejamos a posição oficial da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) nesta questão.

O problema religioso

Ao longo de toda a sua história, não houve um momento sequer no qual a ICAR tenha compactuado com a prática do aborto. Ao contrário, sempre condenou veementemente a interrupção precoce da gravidez; até mesmo o denominado aborto terapêutico, conta com a aversão da ICAR, sob o argumento de que desde o instante da concepção passa a existir um ser humano dotado de sensibilidade e teoricamente apto para a vida. Assim, considera-se o embrião como uma pessoa qualquer, embora em fase de aperfeiçoamento físico.

Face ao exposto, conclui-se que, tratando a ICAR do embrião ou do feto como sendo na verdade "alguém", e não "algo", deixa patente que essa visão rotula de assassinato a prática abortiva. A teoria encontra substrato histórico em dois princípios religiosos básicos: (1º) o quinto mandamento, onde expressamente consta "não matarás"; (2º) a idéia do pecado original, que atribui a todos, desde a concepção, o pecado da desobediência no mito de Adão e Eva, quando do princípio dos tempos. Para livrar-se dele, após o nascimento a pessoa deve ser batizada, donde se infere que o aborto impediria a efetivação do batismo e, portanto, comprometeria a alma do ser em formação e a do próprio autor das manobras, pelo pecado de cercear o sagrado direito do nascituro.

Sendo vedada a todas as pessoas, mas principalmente aos católicos a infração à Lei Divina, matar alguém – e abortar equivaleria a isso fazer – é tido como das mais graves afrontas ao Criador que comete o homem em sua passagem terrena.

Procurando amainar a intransigência da ICAR, em tempos recentes conceituados juristas alegaram que se poderia abortar quando verificada, e comprovada, a chamada "legítima defesa", que estaria caracterizada quando se interrompesse a gestação com o fim único de proteger a vida da gestante, por um ou outro motivo, ameaçada em função do estado gravídico. Respondendo aos bem-intencionados estudiosos, o então Papa Pio XI disse: "De maneira nenhuma! Existe o direito de defesa até ao sangue somente contra o injusto agressor. Quem chamará injusto agressor a uma criatura inocente?"

Diante dessa surpreendente dedução, alicerçada na teoria penal da legítima defesa, que entre seus indeclináveis pressupostos coloca a repulsa a uma injusta agressão sofrida pela outra pessoa, restaram sem efeito os apelos dirigidos ao Vaticano. Isso porque realmente não se vislumbra, no caso formulado pelos juristas, a agressão do embrião ou feto à gestante, com o que esta não estaria autorizada a "defender-se".

Apesar disso, equipes, reconhecidamente capazes de médicos ofereceram a sua solução, tentando receber o consentimento da ICAR para a realização de abortos quando em risco a vida da mulher. Para tanto, lançaram mão do próprio argumento do Vaticano, dizendo que se a prática não era permitida porque se estaria impedindo o batismo, poder-se-ia modificar o sistema e batizar o embrião ou feto no próprio ventre materno, com a aplicação intra-uterina de água benta esterilizada em ínfimas porções. Calcado, porém, no mandamento que ordena "não matarás", o Papa João Paulo II rejeitou o plano médico, embora não tenha expendido explicações sobre a viabilidade, ou não, do batismo intra-uterino se se deixasse de lado a questão do mandamento de Deus.

Abrindo pequena brecha no rigorismo católico, vários Papas, entre os quais, Clemente VIII, toleravam o provocação do aborto precoce, pois admitiam que o produto da concepção somente adquiriria alma quarenta dias após a fecundação, no caso de geração de um ser masculino, e oitenta dias depois da mesma, quando se estivesse gerando um ser feminino. Todavia, a denominada "doutrina da animação tardia" sofreu de imediato avassaladoras críticas, tendo sido logo substituída pela "teoria da animação imediata", ou seja, o novo ser receberia a alma no exato instante da fecundação. Assim, fecharam-se as portas para novas tentativas de evolução em relação à matéria, retornando-se à primitiva idéia.

Essa posição tem sido preservada com fervor através dos séculos, mesmo com as inovações alcançadas em legislações mais recentes, como, por exemplo, a autorização para aborto terapêutico, empregado quando indispensável à sobrevivência da gestante. A orientação da ICAR é clara e intangível: embora correndo real perigo de vida a mulher, ninguém tem permissão religiosa para provocar o aborto, ainda que imbuído de espírito humanitário, eis que somente Deus tem poder de vida ou de morte sobre as criaturas. Em casos definidos, a Igreja consente com a aceleração do parto, por meio de cesariana, contanto que o feto tenha perfeitas condições teóricas de sobreviver por si só após a retirada de dentro do ventre da mãe, ou seja, deve estar "maduro". Nisso inclui-se a hipótese em que a gestante falece e ainda há possibilidades de extração do feto com vida do útero, tornando viável o batizado do mesmo.

Por outro lado, jamais aceita a ICAR que se provoque a expulsão de um feto imaturo, incapaz de sobreviver desagregado do corpo materno, mesmo que manobra direcionada à preservação da vida da mulher. Surge, aqui, outra base a amparar a vedação, traduzida nos dizeres do evangelista Paulo de Tarso: "Não se fará o mal para conseguir o bem", ou seja, não se deve abortar com o fim de obter a salvação da vida da grávida. Isso resume fielmente a forma como a Igreja encara o aborto terapêutico, já que quanto às demais formas de cessação antecipada do estado gravídico não recebem qualquer outra explicação para a proibição a não ser a necessidade de respeito à ordem divina de não matar. Aliás, a questão do aborto terapêutico somente teve atenção por parte da Igreja devido às várias correntes que defendiam, com bons argumentos, a liberação, forçando-a ao oferecimento de parecer minucioso e forte motivação para justificar sua posição contrária (Matielo, 1994, pp. 16-19).

O problema filosófico segundo Peter Singer

Fechando a resenha proposta: um livro, um filme e uma filosofia, tomemos o último elo dessa corrente. Para tanto, seguimos, em uma adaptação, o autor Peter Singer.  

Até 1967, o aborto era ilegal em quase todas as democracias ocidentais, com exceção da Suécia e da Dinamarca. Em seguida, a Inglaterra passou, também, a permitir o aborto, e, em 1973, a Corte Suprema dos Estados Unidos admitiu que as mulheres têm o direito constitucional de abortar nos primeiros seis meses de gravidez. Os países da Europa Ocidental, inclusive os católicos, como a Itália, a Espanha e a França, liberalizaram as suas leis relativas ao aborto. A Irlanda foi o único país a não seguir a tendência.

Os adversários do aborto não desistiram. Nos Estados Unidos, presidentes conservadores alteraram a composição da Corte Suprema, que, por sua vez, vem tentando, de diversas maneiras, que alguns estados restrinjam o acesso ao aborto. Fora dos Estados Unidos, a questão do aborto voltou à tona no Leste Europeu, depois do colapso do comunismo. Os estados comunistas tinham permitido o aborto, mas, quando as forças nacionalistas e religiosas ganharam força, em países, como a Polônia, verificaram-se fortes movimentos favoráveis à reintrodução de leis restritivas. Uma vez que a Alemanha Ocidental tinha leis mais restritivas do que a Alemanha Oriental, a necessidade de introduzir uma única lei para a Alemanha unificada também provocou um intenso debate.

1. O ponto de vista conservador

Colocado como argumento formal básico contra o aborto, ele ficaria assim:

Primeira premissa: É errado matar um ser humano inocente.

Segunda premissa: Um feto humano é um ser humano inocente.

Conclusão: Logo, é errado matar um feto humano.

A reação liberal tradicional consiste em negar a segunda premissa deste argumento. A discussão vai ligar-se ao problema do feto ser ou não, um Ser Humano, e a questão do aborto costuma ser vista como uma controvérsia a respeito de quando se inicia uma vida humana.

Os conservadores chamam a atenção para o continuum que existe entre o óvulo fecundado e a criança e, desafiam os liberais a apontar qualquer estágio desse processo gradual que assinale uma linha divisória moralmente significativa. A menos que tal linha exista, dizem os conservadores, devemos conferir ao embrião o status de criança, mas ninguém quer permitir que as crianças sejam mortas a pedido de seus pais e, assim, o único ponto de vista defensável está em assegurar ao feto a proteção que asseguramos à criança.

Mas, seria verdade que não existe nenhuma linha divisória moralmente significativa entre o óvulo fecundado e a criança? Examinemos quatro possibilidades.

1.1. Nascimento

O nascimento é a mais visível das possíveis linhas divisórias e a que melhor se ajusta à argumentação liberal. Até certo ponto, ajusta-se melhor também aos nossos sentimentos – ficamos menos perturbados com a destruição de um feto que nunca vimos do que com a morte de um ser que todos podemos ver, ouvir e acariciar. No entanto, será que isso é suficiente para transformar o nascimento na linha que decide se um ser pode ou não ser morto?

Os conservadores podem perfeitamente responder que o feto/bebê é a mesma entidade tanto dentro quanto fora do útero, que tem as mesmas características humanas (possamos vê-las ou não), o mesmo grau de consciência e a mesma capacidade de sentir dor. Sob esses aspectos, um bebê prematuro pode muito bem ser menos desenvolvido do que um feto que se aproxima do fim de sua gestação normal. Parece estranho admitirmos que não se pode matar o bebê prematuro, mas que podemos matar o feto mais desenvolvido. A localização de um ser – dentro ou fora do útero – não deveria configurar tanta diferença quanto ao erro que consiste em matá-lo.

1.2. Viabilidade

Se o nascimento não assinala uma distinção moral decisiva, deveríamos recuar a linha divisória ao tempo em que o feto poderia sobreviver fora do útero? Isto supera uma objeção a tomar o nascimento como o ponto decisivo, pois trata o feto viável em pé de igualdade com o bebê nascido prematuramente, no mesmo estágio de desenvolvimento. Foi na viabilidade que a Corte Suprema dos Estados Unidos sustentou que, o Estado tem um interesse legítimo de proteger a vida em potencial e que esse interesse se torna "inexorável" na questão da viabilidade, "pois, então, supõe-se que, o feto tenha a capacidade de levar uma vida significativa fora do útero materno". Segundo a Corte, portanto, as leis que proíbem o aborto com base na viabilidade não são inconstitucionais. Mas os juízes que subscreveram esta posição não indicaram por que a mera capacidade de existir fora do útero deve fazer tanta diferença para o interesse do Estado em proteger a vida em potencial. Afinal, se falamos (como faz a Corte), em vida humana em potencial, então o feto, ainda inviável, pode ser considerado um ser humano adulto em potencial tanto quanto o feto viável.

Há outra importante objeção a tomar-se a viabilidade como o ponto de desligamento. O ponto em que o feto pode sobreviver fora do corpo da mãe varia conforme o estado da tecnologia médica. Há trinta anos, em geral se aceitava que um bebê nascido mais de dois meses prematuro não tinha condições de sobrevivência. Hoje, um feto de seis meses – prematuro de três meses – quase sempre pode sobreviver, graças à sofisticação da tecnologia médica, conhecendo-se casos de sobrevivência de fetos nascidos aos cinco meses e meio de gestação. Tudo isso ameaça pôr por terra a concisa divisão estabelecida pela Corte Suprema, que separa a gravidez por trimestre, situando o limite da viabilidade entre o segundo e o terceiro trimestres.

À luz desses avanços médicos, diremos que um feto de seis meses de idade não deve ser abortado agora, mas poderia ter sido abortado há trinta anos, sem que com isso se cometesse um erro? A mesma comparação também pode ser feita, não entre o presente e o passado, mas entre lugares diferentes. Um feto de seis meses poderia ter uma boa oportunidade de sobreviver, se nascesse numa cidade onde se usa a mais recente tecnologia médica, mas não teria oportunidade alguma se nascesse num vilarejo distante da Nova Guiné. Suponhamos que, por alguma razão, uma mulher no sexto mês de gravidez fosse voar de São Paulo para um vilarejo da Nova Guiné e que, tendo chegado a este último, não havia como voltar rapidamente para uma cidade onde pudesse contar com os mais modernos recursos médicos. Devemos dizer que ela teria agido erradamente se tivesse feito um aborto antes de partir de São Paulo, mas que, agora, no vilarejo, pode fazê-lo? A viagem não altera a natureza do feto, então, por que motivo deveria acabar com o seu direito à vida?

Os liberais poderiam responder que o fato do feto ser totalmente dependente da mãe para a sua sobrevivência significa que, independentemente dos desejos dela, ele não tem direito à vida. Em outros casos, porém, não defendemos a idéia de que a total dependência de uma outra pessoa signifique que essa pessoa pode decidir se é preciso viver ou morrer. Se vier a nascer numa região isolada onde não exista nenhuma outra mulher que possa amamentá-lo, nem recursos para que possa ser alimentado com mamadeira, um recém-nascido é uma criatura totalmente dependente de sua mãe. Uma velha pode ser totalmente dependente do filho que toma conta dela, e um caminhante que quebra a perna a cinco dias de caminhada da estrada mais próxima pode morrer se o seu companheiro não vier salvá-lo. Não pensamos que, nessas situações, a mãe possa tirar a vida do seu bebê, o filho a de sua velha mãe, ou o caminhante a do seu companheiro ferido. Portanto, não é plausível sugerir que a dependência que o feto inviável tem de sua mãe dá a ela o direito de matá-lo; e, se a dependência não justifica que se faça da viabilidade a linha divisória, é difícil saber o que pode justificá-la.

1.3. Primeiros sinais de vida

É a época em que, pela primeira vez, a mãe sente o feto mexer-se; na teologia católica tradicional, pensava-se ser esse o momento em que ele ganhava a sua alma. Se aceitarmos esse ponto de vista, podemos achar que esses movimentos iniciais são muito importantes, pois, segundo a concepção cristã, a alma é o que diferencia os seres humanos dos animais. Contudo, a idéia de que a alma entre no feto quando ele começa a movimentar-se não passa de uma superstição antiga que já foi rejeitada até mesmo pelos teólogos católicos. Se deixarmos de lado essas doutrinas religiosas, os primeiros sinais de vida tornam-se insignificantes. Não passam da época em que se percebe que o feto começa a movimentar-se por conta própria; o feto está vivo antes desse momento, e pesquisas realizadas com ultra-som mostraram que, na verdade, os fetos já começam a fazer seus primeiros movimentos na sexta semana depois da fecundação, muito antes desses movimentos poderem ser sentidos. Seja como for, a capacidade de movimento físico – ou a falta dela – nada tem a ver com a seriedade do direito que alguém possa ter à continuidade da vida. Não vemos a falta de tal capacidade como uma negação do direito que os paralíticos têm de continuar vivendo.

1.4. Consciência

Na medida em que constitui um indicador de alguma forma de consciência, poderíamos pensar no movimento como algo dotado de uma importância moral indireta – e a consciência e a capacidade de sentir prazer ou dor possuem uma importância moral concreta. Apesar disso, nenhum dos lados envolvidos na questão do aborto tem mencionado devidamente a questão do desenvolvimento da consciência no feto. Os que se opõem ao aborto podem mostrar filmes sobre o "grito silencioso" do concepto ao ser abortado, mas, por detrás de tais filmes, existe apenas a intenção de mexer com as emoções dos que ainda não tomaram partido. Na verdade, os adversários do aborto defendem a idéia de que o ser humano tem direito à vida desde o momento da concepção, seja ou não consciente.

Para os que defendem o aborto, o apelo à ausência da capacidade de consciência tem parecido estratégia arriscada. Com base nos estudos que mostram que o movimento já se evidencia na sexta semana depois da fecundação, ao lado de outros estudos que constataram a existência de alguma atividade cerebral já na sétima semana, sugeriu-se que o feto pode ser capaz de sentir dor nessa fase inicial da gravidez. Essa possibilidade tornou os liberais muito cautelosos em seu apelo ao surgimento da consciência como o momento em que o feto passa a ter direito à vida. No que diz respeito ao aborto, até o momento, as discussões mostraram que a busca liberal de uma linha divisória moralmente crucial entre o recém-nascido e o feto não produziu nenhum fato, nem descobriu um estágio do desenvolvimento que possa arcar com o peso de separar os que têm direito à vida daqueles que não o têm. E, de um modo que mostre, claramente, que os fetos pertencem à última categoria quando estão no estágio de desenvolvimento em que a maior parte dos abortos é feita. Os conservadores pisam em terreno firme quando insistem em que o desenvolvimento que vai do embrião ao recém-nascido é um processo gradual.

2. Alguns argumentos liberais

Alguns liberais não contestam a afirmação conservadora de que o feto é um ser humano inocente, mas afirmam que, não obstante, o aborto é admissível. Examinemos três argumentos que dizem respeito a esse ponto de vista.

2.1. As conseqüências de leis restritivas

O primeiro argumento é o de que as leis que proíbem o aborto não acabam com ele, mas levam-no a ser feito clandestinamente. Em geral, as mulheres que pretendem abortar estão desesperadas e procurarão um abortador de fundo de quintal ou usarão remédios populares. O aborto feito por um médico qualificado é uma operação tão segura quanto qualquer outra, mas as tentativas de procurar fazer aborto com profissionais desqualificados, geralmente resultam em graves complicações médicas e, às vezes, até mesmo na morte. Portanto, o resultado da proibição do aborto não é tanto a redução do número de abortos realizados, mas, sim, o aumento das dificuldades e dos perigos para as mulheres com uma gravidez indesejada.

Esse argumento tem influenciado a conquista de apoio para a criação de leis mais liberais sobre o aborto. Foi aceito pela Real Comissão Canadense da Condição Feminina, cuja conclusão foi: "Uma lei que tem efeitos mais nocivos do que benéficos não é uma boa lei. (…) Enquanto existir, em sua forma atual, milhares de mulheres irão transgredi-la".

O que há de mais importante nesse argumento é o fato de ser contra as leis que proíbem o aborto, e não de ser contra o aborto. Trata-se de uma distinção importante, quase sempre negligenciada nos debates. Uma mulher poderia aceitá-lo coerentemente e defender o ponto de vista de que a lei deve permitir o aborto sempre que solicitado, achando, ao mesmo tempo, que seria errado abortar. É um erro pressupor que a legislação deve sempre reforçar a moralidade. Pode acontecer que, como se alega no caso do aborto, as tentativas de reforçar a conduta certa levem a conseqüências não desejadas por ninguém e não produzam um decréscimo de erros; pode acontecer também que exista uma esfera da ética privada na qual o Direito não deve interferir.

Portanto, esse primeiro argumento é sobre as leis que regem o aborto, e não sobre a ética do aborto. Mesmo dentro desses limites, porém, está aberto à contestação, pois é incapaz de atender à afirmação conservadora de que praticar o aborto é tirar deliberadamente a vida de um ser humano inocente pertencendo assim o aborto à mesma categoria ética do assassinato. Os que têm essa visão não se deixarão contentar pela afirmativa de que tais leis restritivas sobre o aborto não fazem mais do que levar as mulheres aos abortadores de fundo de quintal. Vão insistir em que essa situação pode ser mudada e que se pode exigir o cumprimento apropriado da lei. Também podem sugerir medidas que tornem a gravidez mais fácil de ser aceita, no caso das mulheres que engravidam sem querer. É uma resposta perfeitamente racional, dado o juízo ético inicial sobre o aborto; por isso, o primeiro argumento não consegue esquivar-se à questão ética.

2.2. Nada a ver com a lei?

O segundo argumento é também sobre as leis que regem o aborto, e não sobre a ética do aborto. Adota o ponto de vista de que, como foi colocado pelo governo britânico que investigou as leis sobre a homossexualidade e a prostituição: "Deve continuar existindo uma esfera da moralidade e da imoralidade pública que, grosso modo, nada tem a ver com a lei". Esse ponto de vista é muito aceito pelos pensadores liberais e suas origens podem ser atribuídas a "Sobre a liberdade", de John Stuart Mill. Nas palavras de Mill, o "princípio muito simples" dessa obra consiste na afirmação de que o

"único objetivo em nome do qual o poder pode ser legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é o de impedir que os outros sejam prejudicados". "(…) Ele não pode ser legitimamente forçado a agir ou a abster-se de agir porque será melhor que o faça, porque assim será mais feliz, porque, na opinião dos outros, agir desse modo seria mais sensato, ou mesmo mais certo".

O ponto de vista de Mill é comum e adequadamente citado em apoio da revogação de leis que criam "crimes sem vítimas" – como as leis, que proíbem os relacionamentos homossexuais entre adultos que desejam mantê-los por mútuo acordo, o uso da maconha e outras drogas, a prostituição, o jogo, etc. O aborto costuma ser incluído nessa relação. É o que faz, por exemplo, o criminologista Edwin Schur, em seu livro Crimes Without Victims. Os que consideram o aborto um crime sem vítimas dizem que, enquanto todos têm o direito de defender um ponto de vista sobre a moralidade do aborto e agir de acordo com ele, nenhum segmento da comunidade deve tentar coagir os outros a aderirem ao seu ponto de vista específico. Numa sociedade pluralista, devemos ser tolerantes com os que defendem idéias diferentes das nossas e deixar a decisão de fazer um aborto a cargo da mulher que está vivendo o problema.

A falácia de incluir o aborto entre os crimes sem vítimas deve ser evidente a todos. Em grande parte, a discussão sobre o aborto é uma discussão sobre o fato dessa prática ter, ou não, uma "vítima". Para os adversários do aborto, a vítima é o feto. Os que não se opõem ao aborto podem negar que o feto possa ser visto como uma vítima grave. Talvez digam, por exemplo, que um ser só pode ser uma vítima se seus interesses forem violados e que o feto não tem interesses. Contudo, sejam quais forem os termos em que se dê essa discussão, não se pode simplesmente ignorá-la com base na afirmação de que as pessoas não devem coagir as outras a seguirem as suas concepções morais particulares. Nossa opinião de que o que Hitler fez aos judeus é errado traduz um ponto de vista moral, e, se houvesse qualquer possibilidade de um ressurgimento do nazismo, certamente nos empenharíamos ao máximo para forçar os outros a não agirem contrariamente ao nosso ponto de vista. O princípio de Mill só é defensável se se restringir, como Mill o restringiu, aos atos que não prejudicam os outros. Usar o princípio como um meio de evitar as dificuldades de resolver o embate ético sobre o aborto equivale a dar por certo que o aborto não prejudica um "outro" – o que é, exatamente, o ponto que precisa ser comprovado antes que possamos, legitimamente, aplicar o princípio ao caso do aborto.

2.3. Um argumento feminista

O último dos três argumentos que procuram justificar o aborto sem negar que o feto é um ser humano inocente é o de que uma mulher tem o direito de escolher o que fazer com o seu próprio corpo. Esse argumento adquiriu notoriedade com a ascensão do movimento de libertação feminista e foi elaborado por filósofos norte-americanos simpáticos à causa feminista. Um argumento influente foi apresentado por Judith Jarvis Thomson através de uma analogia.

Imagine, diz ela, que um dia você acorda pela manhã e descobre que está num leito de hospital, ligado de alguma forma a um homem que se encontra inconsciente numa cama ao lado da sua. Você é então informada de que esse homem é um famoso violinista com uma doença renal. Ele só poderá sobreviver se o seu sistema circulatório for ligado ao de uma pessoa que tenha o mesmo tipo sangüíneo, e você é a única pessoa que tem o sangue adequado. Portanto, foi seqüestrada por uma sociedade de amantes da música, a ligação foi feita, e ali está você. Como se trata de um hospital bem-conceituado, você poderia, se quisesse, chamar um médico e pedir-lhe para desligá-lo do violinista; este, porém, morreria com certeza. Por outro lado, se você continuar ligada a ele por só (só?) nove meses, o violinista irá recuperar-se e você poderá então ser desligado dele sem que ele corra perigo algum.

Thomson acredita que, se você se encontrasse inesperadamente numa situação difícil como essa, não teria nenhuma obrigação moral de permitir que o violinista usasse os seus rins durante nove meses. Poderia ser generoso, de sua parte, permitir que ele o fizesse, mas, nas palavras de Thomson, dizer isso é bem diferente de dizer que, se não o fizesse, estaria cometendo um erro. Observe-se que a conclusão de Thomson não depende de negar que o violinista seja um ser humano inocente, com o mesmo direito à vida que tem qualquer outro ser humano inocente. Pelo contrário, Thomson afirma que o violinista realmente tem direito à vida – mas que o fato de tê-lo não dá a ninguém o direito de usar o corpo de outra pessoa, mesmo que, sem esse uso, alguém possa morrer.

O paralelo com a gravidez, sobretudo a gravidez resultante de estupro, deve ficar evidente. Graças a uma escolha que não foi dela, uma mulher que engravidou por ter sido estuprada vê-se ligada a um feto de uma forma muito semelhante à da pessoa ligada ao violinista. É verdade que, normalmente, uma mulher grávida não precisa ficar nove meses, presa a uma cama, mas os adversários do aborto não vêem nesse argumento uma justificativa suficiente para a prática do mesmo. Permitir a adoção do recém-nascido talvez seja mais difícil, psicologicamente, do que se separar do violinista no fim da sua doença; mas, em si, isso não parece constituir uma razão suficiente para que o feto seja morto. Se admitirmos, apenas a título de argumentação, que o feto é um ser humano plenamente desenvolvido, o fato de abortar quando o feto não é viável tem o mesmo significado que o de desligar-se do violinista. Portanto, se concordamos com Thomson que não seria errado desligar-se do violinista, teremos de admitir também que, sejam quais forem as condições do feto, o aborto não é um erro – pelo menos quando a gravidez resulta de estupro.

3. O valor da vida fetal

Voltemos ao início. O argumento central contra o aborto era o seguinte:

Primeira premissa: É errado matar um ser humano inocente.

Segunda premissa: Um feto humano é um ser humano inocente.

Conclusão: Logo, é errado matar um feto humano.

A fragilidade da primeira premissa do argumento conservador está no fato de fundamentar-se em nossa aceitação do status especial da vida humana. "Humano" é um termo que se subdivide em duas noções específicas: ser um membro da espécie Homo sapiens e ser uma "pessoa". Uma vez o termo assim desmembrado, a fragilidade da primeira premissa conservadora se torna evidente. Se "humano" for tomado como equivalente de "pessoa", a segunda premissa do argumento é claramente falsa, pois não se pode argumentar que o feto seja um ser humano. Por outro lado, se "humano" for tomado apenas com o significado de "membro da espécie Homo sapiens", então a defesa conservadora da vida do feto tem por base uma característica que carece de significação moral e, portanto, a primeira premissa é falsa. A esta altura, a questão já nos deve ser familiar: em si, o fato de um ser pertencer, ou não, à nossa espécie não é mais relevante para o erro de matá-lo do que ele ser, ou não, um membro de nossa raça. A crença em que, a despeito de outras características, o mero fato de ser membro de nossa espécie faz uma grande diferença quanto ao erro de matar um ser é um legado de doutrinas religiosas que até mesmo os que se opõem ao aborto hesitam em trazer ao debate.

O reconhecimento desse simples fato transforma toda a questão do aborto. Agora podemos examinar o feto do jeito que ele é – com as características concretas que possui – e avaliar a sua vida em pé de igualdade com as vidas de seres que possuem características semelhantes, mas não são membros de nossa espécie. Fazendo uma comparação justa das características moralmente relevantes – como a racionalidade, a autoconsciência, a consciência crítico-reflexiva, a autonomia, o prazer, a dor, etc. – aves e mamíferos que normalmente comemos, surgem bem à frente do feto em qualquer dos estágios da gravidez, ao passo que, se fizermos a mesma comparação com um feto de menos de três meses, um primitivo peixe daria mais indícios de possuir uma consciência.

4. O feto como vida em potencial

Uma objeção constante ao aborto é a de que só se leva em conta as características reais do feto, deixando de lado as suas características potenciais. Com base nas suas características reais, alguns adversários do aborto hão de admitir que o feto se compara desfavoravelmente a muitos animais.

A questão do potencial do feto pode-se colocar da seguinte maneira:

Primeira premissa: É errado matar um ser humano em potencial.

Segunda premissa: Um feto humano é um ser humano em potencial.

Conclusão: Logo, é errado matar um feto humano.

É problemático saber se um feto é realmente um ser humano – isso vai depender do que queremos dizer com o termo – não se pode negar que o feto é um ser humano em potencial. Isso é verdade tanto se, por "ser humano", estivermos nos referindo a um "membro da espécie Homo sapiens", quanto se tivermos em mente um ser racional e autoconsciente, uma "pessoa". Contudo, a força da segunda premissa do novo argumento é conseguida à custa de uma primeira premissa mais fraca, pois o erro de matar um ser humano em potencial – até mesmo uma pessoa em potencial – é mais sujeito à contestação do que o erro de matar um ser humano real.

Não se duvida, por certo, de que a racionalidade e a autoconsciência potenciais do Homo sapiens fetal (bem como outros atributos semelhantes) superam essas mesmas qualidades do modo como se manifestam num animal não humano; daí não se segue, porém, que o feto tenha um direito mais forte à vida. Não existe regra que afirme que um X potencial tenha o mesmo valor de um X, ou que tenha todos os direitos de um X. Há muitos exemplos que mostram exatamente o contrário. Arrancar uma bolota de carvalho em germinação não é o mesmo que derrubar um venerável carvalho. Colocar uma ave viva dentro de uma panela com água fervente seria muito pior do que fazer o mesmo com um ovo. O príncipe Charles é rei da Inglaterra em potencial, mas, no momento, não tem os direitos de um rei.


CONCLUSÃO, 'INDA QUE PROVISÓRIA

Até aqui expomos os argumentos prós e contras à interrupção deliberada da gravidez humana. Mas, não queremos nos furtar a uma posição bem definida sobre esta questão.

Somos contra, por princípio, ao aborto. Entretanto, pensamos que ele é admissível em certos casos, e que estes devem ser previstos em lei justa, precisa e universal. Portanto, somos a favor de sua legalização. Achamos indiscutíveis que, por exemplo, gravidezes por estupro, ou, que coloquem em severo risco a saúde mental e/ou física da mãe, ou de embriões gravemente malformados, devam ser contempladas favoravelmente à sua interrupção imediata pela lei.

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Bibliografia

BASSUMA, L. Em defesa da vida: contra o aborto! Folha de São Paulo, p. 03, 17/11/2005.

IRVING, J.  The cider house rules. Nova Iorque: Ballantine Books, 598 pp., 1994.

MATIELO, F.Z.  Aborto e Direito Penal. Porto Alegre: Sagra-DC Luzzatto Ed., 108 pp., 1994.

SEIXAS, R. Metamorfose ambulante (autor de letra e música). Em: LP "KRIG-HA, BANDOLO! Rio de Janeiro: Philips/Phonogram, 1973.

SALLES JR., R.A.  Curso completo de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 8ªed., 517 pp., 2000.

SINGER, P.  Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 399 pp., 1998.

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(*) médico e teólogo. Neurobiólogo pelo IB da USP. Mestre, Doutor, Pós-Doc e Ph.D. (Harvard) em Filosofia. Doutor em Medicina, e especialista em neurologia e psiquiatria pela Université Sorbonne-Paris VII-Dennis Diderot –. Ph.D. em Teologia (Chicago). Psicólogo por "Notório Saber", título honorífico dado pelo Conselho Universitário da PUC-SP. Neuropsiquiatra clínico e forense na Cidade de São Paulo. Docente da Laureate Anhembi Morumbi International University.

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