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Eu e Tu: um diálogo possível?

O incômodo mais freqüente não é provocado por fenômenos naturais ou distantes, sobretudo por circunstâncias humanas, cotidianas. A priori: é a indiferença do outro. A posteriori: sou brindado com compreensão ou julgado sem qualquer benevolência. No entanto, preciso da presença de outrem, pois dele extraio quem sou, àquele que teima permanecer escondido. O outro de mim, seu aparecimento só é possível pela alteridade.


Ser exposto ao olhar do outro não se refere apenas ao corpo. Na peça de Sartre, ´´Entre Quatro Paredes“, um personagem diz: ´O inferno… são os outros`. Isso significa que os outros me mostram a minha modalidade de indigência, que consiste em não poder me ocultar. Estar exposto – e isto pode querer dizer estar à mercê do domínio, do controle do outro – refere-se a uma dimensão da existência. A existência é exposta ao olhar, à compreensão e à interpretação do outro: o outro pode pensar o que quiser a meu respeito. O estar exposto perpassa toda a existência, mas é, primariamente, uma experiência corporal (1).

Posso, a qualquer momento, ser removido do esquecimento, de minhas camadas incompreensíveis. Dessa blindagem ilusória, porosa, recordo novamente, e dele (do outro) advém o que não gostaria de ver, sou revolvido ao singular, desconforto que traz o camuflado temor primordial. Tendo assim a existência revelada, enfrento com pudor o que se impõe a mim. Com pudor, porque me percebo despudoradamente mais animal do que humano, isto é, menos nobre.

No clássico filme ´´Os Pássaros“, de Alfred Hitchcock (F1), uma família é misteriosamente ameaçada por aves. Desde o início uma tragédia se anuncia, no entanto, ela não se confirma, mas serão vigiados por essas desconhecidas presenças.

No prefácio do livro ´´Massa e Poder“, de Elias Canetti, o autor nos alerta: Não existe nada que o homem mais tema, do que ser tocado pelo desconhecido (2).

Na recente realização de Manoel de Oliveira, ´´Um Filme Falado“ (F2), a história da humanidade encontra-se perigosamente ameaçada, como jamais esteve. O catastrófico já não é apenas uma promessa: tão próximo de nós, como os nossos olhos, que não podemos vê-lo. Pensemos em uma saída, antes que seja tarde: na mudança radical no modo de concebermos o outro, o outro próximo, de pensarmos a relação com o mundo, o mundo próximo, pois é preciso repensar os atos individuais e suas implicações coletivas.

E a humanidade precisa preservar seu contador de histórias, como diz um personagem de ´´Asas do Desejo“, de Wim Wenders (F3).

Michael Hanecke, diretor do filme ´´Caché“ (F4), pondera a situação contemporânea. Uma família se vê atormentada por um anônimo, através de sucessivos envios de imagens filmadas e estranhos desenhos. Quem será este escondido, um inimigo oculto? Desta vez, não são pássaros que lhes retiram o eixo, mas o olhar de um invasor de privacidade, espiando suas culpas. O outro humano. Como no filme de Alfred Hitchcock, o desfecho é inconclusivo, a família jamais saberá o autor do crime. Mas é pelo crime do outro, pela insistência do olhar alheio, invisível, ao mesmo tempo palpável, que poderão (a)-pagar suas faltas. Bom lembrar: se, ´o inferno são os outros`, nós somos o inferno para eles. E o paraíso aparece como possibilidade…

Na difícil leitura sobre o amor, ou sobre a impossibilidade dele, de Krzysztof Kieslowski, em ´´Não Amarás“ (F5), acompanhamos a trajetória do tímido e apaixonado adolescente Tomex. Pela janela indiscreta de seu apartamento e através de uma luneta, vigia clandestinamente a vida da vizinha Magda. A aproximação é penosa, desajeitada, e o resultado será um estrondoso fracasso. Mesmo que o adolescente se esforce com sinceridade, que revele suas melhores intenções, para Magda, Tomex é apenas um voyeur em busca dos prazeres da carne, um violador de vidas alheias, um criminoso. Ao contrário, Tomex quer expor sua fascinação, não quer nada em troca, quer simplesmente expressar o seu amor. No final, após a tentativa frustrada de suicídio do adolescente, Magda vai ao apartamento de Tomex, e através da luneta, vislumbra o cenário problemático de sua própria vida. Tu, ponto de partida. Eu, ponto de chegada. Revelação, através do outro.

Estamos em crise, mas que situação crítica será essa? Diante de uma velha circunstância, posso arriscar: novamente, da aproximação da presença do outro, do toque que remete ao fundamental. E se os fundamentos assustam, preferimos mais que nunca, à distração.

Quem sabe, um dia, as palavras do poeta Rainer Maria Rilke, não soem pejorativamente românticas, quando diz:

Querida minha, minhas mãos já não se sentem mãos quando se tocam uma à outra: buscam realizar seu misterioso destino de ser mãos só nas tuas, tuas queridas mãos (3).

As tentativas de reconhecimento mútuo devem prosseguir, mesmo que, mal sucedidas.


(*)Psicólogo clínico e supervisor na abordagem 'Fenomenológica-Existencial'. Formado na UNIP em 1985. Cursos de formação na 'Daseinsanalyse' e no 'Centro de Estudos Fenomenológicos de São Paulo'. Fundador do Neffe – Núcleo de Estudos e Formação em Fenomenologia Existencial. 

A. Trecho do livro (a ser publicado em breve):

Fenomenologia e Cinema: pequena topologia da condição humana

B. Assunto:

Introdução à Psicologia Fenomenológica Existencial e Cinema

Referências bibliográficas:

(1) Pompéia, João Augusto. Na Presença do Sentido. São Paulo. Educ/Paulus, 2004

(2) Canetti, Elias. Massa e Poder. São Paulo. Companhia das Letras, 1995

(3) Rilke, Rainer Maria. Cartas a Benvenuta. Buenos Aires. Editorial Leviatan, 1981

Filmografia:

(F1) Os Pássaros – Direção: Alfred Hitchcock, 1963

(F2) Um Filme Falado – Direção: Manoel de Oliveira, 2003

(F3) Asas do Desejo – Direção: Wim Wenders, 1987

(F4) Caché – Direção: Michael Hanecke, 2005

(F5) Não Amarás – Direção: Krzysztof Kieslowski, 1987/1988


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