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Normal ou Patológico em Psicopatologia Clínica

Resumo

Analisando os conceitos de normal e pa­tológico segundo as principais correntes do pensamento psiquiátrico (a fenomenologia, a psicanálise e a anti-psiquiatria), o autor pro­põe repensá-los a partir do discurso próprio "louco" e da desidealização desses concei­tos que enfatizam três dimensões: a real, a social e a humana.

A colocação do problema

Logo nas páginas iniciais de seu livro, Devereux (7) coloca em xeque a teoria psiquiátri­ca. Pois se esta se fundamenta sobre o conceito de normal e seu oposto, anormal (lido como patológico), a verdade é que o problema de conceituação desses termos não foi re­solvido, nem ao menos ficou delineada a fronteira que os delimita e, por condição, define. A partir daí – isto é, de conceitos indefinidos – ergue-se uma semiologia bastante sofisticada que estabelece diagnósticos, que classifica, que coloca os indivíduos em locais precisos: os sãos e os loucos. E continua, numa subdivisão minuciosa, propondo-se a des­crever a loucura de cada um, mas não a sanidade, vista co­mo um todo unitário. Mesmo a "revolução psicanalítica" não trouxe mudanças substanciais à taxonomia psiquiátrica, porquanto as categorias ficaram (com maior ou menor sofis­ticação de detalhes). Foi preciso haver uma "invasão aliení­gena" para que a psiquiatria começasse a questionar esse ar­cabouço. Estudando grupos, e não indivíduos, sociólogos e antropólogos introduziram uma nova dimensão na análise da pessoa (dimensão que Freud apreendera, embora lendo do ângulo do indivíduo): a cultura. E perceberam também que esta apresentava tantas variáveis, de tal modo presentes na organização daquela pessoa, que Marx, anos antes, ques­tionava o próprio conceito de "ser humano" (13, 14), en­quanto um conceito abstrato. Assim, o problema conceitual torna-se mais complexo. Ao nível do orgânico, quando o que define é a possibilidade ou não de sobrevivência, ou a quali­dade dessa sobrevivência, poderia ser mais simples estabele­cer a fronteira. Mas, ao lidarmos com comportamento, com sentimento, como definir? A partir de uma estreita correla­ção com a "vida dos órgãos" ou a partir de "uma análise fi­losófica da vida compreendida como atividade de oposição à inércia e à indiferença" (5)? De qualquer modo, lidamos com valores, posicionamo-nos ideologicamente frente ao problema (e haveria outra possibilidade?).

A angústia do questionamento

No entanto, não se tra­ta aqui de uma elucubração a respeito de um tema filosófi­co: a oposição entre vida e morte, corpo e alma, saúde e doença, idealismo e materialismo ou alguns desses pares an­titéticos que preenchem o corpo teórico da filosofia. Muito mais do que isso. É em cima de uma definição indefinida que calcamos a nossa prática médica. E esta é a angústia do questionamento. Porque frente aos nossos pacientes im­põem-se dois níveis de compreensão: o social e o individual; o sociológico e o médico. Em outras palavras: o observar e analisar e o fazer (a partir de premissas teóricas que funda­mentam e justificam essa prática, mas que não necessaria­mente são por ela determinadas). Pois que aquelas pessoas "doentes", "alteradas", de comportamento "anormal", al­gumas até necessitando de exclusão, mesmo que temporá­ria, do mundo dos normais, estão ali à nossa frente agindo, falando, e seu discurso é essencial para a nossa ação, embora o invalidemos com um diagnóstico. Mas mesmo assim lá es­tão elas, agindo e interagindo, como fazem quaisquer pes­soas em outras situações. São algumas das entrevistas colhidas junto a tais pacientes de que me utilizo aqui para colo­car o problema (2). E se Marx diz que "suscitar uma ques­tão é resolvê-Ia", parece-me que não consegui suscitá-Ia ade­quadamente. Em busca de clareza, tento organizar algumas idéias, como numa primeira abordagem.
Normal e Patológico: Uma questão de leitura ?


I.
A busca de parâmetros – Que parâmetros são usados para definir, na prática psicoclínica, normal e patológico?

– "Não estou doente não" – diz L. – "estou é com rai­va daquela mulher" (da mãe-de-santo que lhe prometera um favor e não cumprira).

 -"Não é doença não, doutora, é esquecimento" – diz H., não se recordando do nome de uma antiga paciente.

Que parâmetros estão usando esses pacientes para distin­guir doença de não-doença?

A corrente fenomenológica lança os parâmetros na Psico­patologia. E o que nos diz ela a esse respeito? De início, de­fine Jaspers o objeto da psicopatologia como "a atividade psíquica real e consciente […]. Mas não se trata aqui de toda a atividade psíquica: apenas da patológica […] (a não delimi­tação clara entre a psicologia e a psicopatologia) resulta do fato do conceito de doença não ser uma entidade […] não atribuímos qualquer valor ao conceito preciso de doença fí­sica; nós nos baseamos em nossa intuição pessoal e, sobretu­do no uso tradicional da divisão do trabalho quanto à deli­mitação de nosso tema de estudo". (11) Numa edição pos­terior consideraria fenômenos anormais como aqueles que "excedem o habitual em medida, grau e duração […] as asso­ciações que se tornam hábitos mecânicos […] A cisão ou dis­sociação (da vida psíquica) que acabe sendo definitiva e in­superável […] o mecanismo de comutação do estado de cons­ciência […]"(12)  Devemos lembrar que o primeiro parâme­tro aproxima-se da colocação de K. Schneider, um dos prin­cipais teóricos da prática clínica psicopatológica. Distingue ele enfermi­dade, que "existe apenas na esfera somática" e anormalida­de, entendida como "apenas uma variedade do nor­mal" (15).

A corrente psicanalítica não busca tanto descrever os processos quanto entendê-los. "A resposta da psicologia freudiana a esta dicotomia é que tanto os processos mentais normais quanto os patológicos têm seu lado fisiológico e são ainda funções cerebrais amplamente desconhecidas […] Não há diferenças fundamentais entre psicologia e psicopa­tologia: ambas seguem os mesmos princípios básicos" (1). Princípios esses que serão buscados no conflito intra-indivi­dual entre as "pulsões instintivas e as demandas ambientais, entre as pulsões instintivas e os padrões superegóicos e entre instintos opostos […]"; o distúrbio decorre assim, de uma es­truturação desviada da norma ou da expectativa para uma determinada idade, de tal monta que o propósito de adaptação fica apenas parcialmente realizado e assim o fun­cionamento do indivíduo é prejudicado" (10). Até aí esta­mos frente ao Homem – entidade abstrata, fora de qual­quer contexto.

Uma terceira corrente – a da antipsiquiatria – procura­ria superar esta abstração. Diz Cooper (6): "Esquizofrenia é uma situação crítica microssocial, onde os atos e experiên­cias de uma certa pessoa são invalidados por outros a partir de certas razões inteligíveis culturais e microculturais (usualmente familiais), ao ponto em que esta é eleita e iden­tificada como sendo mentalmente enferma de certo modo, e então confirmada (por um processo de rotulação específi­co, embora altamente arbitrário) na identidade de pacien­te esquizofrênico por agentes médicos ou quase-médicos".

A pessoa eleita teria sofrido um processo de socialização que lhe condicionaria uma "perda global ou parcial de vali­dação consensual de sua auto-percepção e de sua hétero-per­cepção". Negando a doença como processo intra-individual exclusivo e estendendo-a ao grupo, a antipsiquiatria amplia­ria o conceito de normal e patológico, mas, reproduzindo-o, não o questionaria.

II. Os auto-retratos – E O que dizem os interessados? Isto é, as pessoas rotuladas como "doentes mentais"? Aque­las pessoas cujas biografias passam a ser marcadas por um rótulo de origem polêmica (interno/externo; adquirido/ine­rente à sua constituição; aceito/imposto etc.)? Formariam elas uma "quarta corrente"?

– "Maluco é quem agride, mas eu estou quase doida, pois me irrito à toa. Sou até capaz de bater quando irri­tada." (Z).

– "Doida é a que quer pegar, quer avançar no homem […] mulher-homem, isso é doido […] café demais dá loucura, café com leite dá nervoso […] (louco) é ficar bom com cho­que […] quem bate na mãe é maluco […] (sobre a paciente que saía de alta) esta é assim […], assim […], não faz nada, nem a cama fazia." (N).

– "O que tenho é problema de nervos. Tomo remédio já estou boa." (M.)

"Não gosto de estar em casa. Meu pai me chama de doido, eu não gosto." (Ne.).

– "Eu só estava querendo acender velas p'ros mortos, mas N. e M. estão aqui e se me virem vão falar com o dire­tor; vão dizer a ele que estou maluca, que estou querendo botar fogo no hospital […]. (Aquele hospital) é uma carnifi­cina: se o sujeito ri vai para a triagem, se chora vai tam­bém, não é todo mundo que agüenta ver essas coisas." (L.).           

– "Qual é o caso de seus pacientes que a senhora não deixa trabalhar? Os que são agressores?" (In.).

– "Estou tomando remédios e fiquei assim, sem vonta­de de trabalhar, sem vontade de conversar, com as idéias atrapalhadas. Isto foi do tombo que levei, não foi?" (E.)

– "Ela não é doente não, é cachaça mesmo […] aquela lá é que não quer comer; há dois dias não come p'ra fazer charme p'ro marido. (Vovó Marina) não comia de des­gosto porque a família tirou o IPASE dela e a internou como indigente; quando ela veio para cá já era tarde, estava toda queimada por dentro; desgosto; ainda bem que eu estava de alta; se eu estivesse aqui teria ficado maluca." So­bre outra paciente, pergunto se está "fazendo charme": "não, esta é louca mesmo." (X.) "era uma doçura, muito boa. Um dia ela disse que viu o disco-voador e o marido a internou; quem sabe ela viu mesmo?" (o marido) fazia ela descer dez andares de barriga (grávida) para buscar Coca­-Cola para ele. Ela pediu o desquite e ele não quis, por isso a internou." "Ela não é doente, apenas bebe; não se devia internar prostitutas aqui." (H.).

– (T.) aproxima-se furiosa; está no hospital há três dias e ninguém da família sabe; quer uma licença no fim-de-se­mana para avisar a família, pois eles devem estar preocupa­dos, pensando que ela morreu. A médica a entrevistara du­rante duas horas; ficara de voltar naquele dia e não apare­ceu, assim ela não conseguiu licença para tirar a carteira de saúde, a fim de trabalhar. "Não estou maluca, estou é irri­tada."

– "Eu quero conversar com a senhora… é sobre a minha doença. . . escreve tudo porque já levei muito choque e já esqueci." (R.).

– (Es.) contando para mim sua sensação ao ver a au­tópsia da esposa, morta em acidente de trânsito no dia do aniversário do filho caçula: "Ah, doutora, quando vi ali minha companheira de fé, com as vergonhas p'ra fora, fi­quei que nem doido. . . só vi quando o corpo de bombeiros me amarrava."

– (Z.) reclamando do médico recusar-se a tirar uma radiografia do crânio: "A cabeça é minha, como ele é quem sabe se deve pedir a chapa? Tenho vontade de dar uma porrada nele para ver a cabeça dele doer; aí ele vai pedir chapa."

O que podemos inferir desses relatos aparentemente des­conexos?

Em primeiro lugar, que existem esquemas implí­citos permitindo distinguir doente de não-doente, o que é aceito do não aceito, mesmo quando o comportamento é semelhante (como o fato das duas pacientes que não co­miam: uma era "charme" e a outra, doença). Em outras palavras, existem parâmetros que definem o comportamen­to normal distinguindo-o do anormal, podendo este ter uma conotação de patológico ("mulher-homem, isto é doido"), ou não ("ela é cachaça mesmo").

Segundo, o conceito de patológico aproxima-se de algum modo do conceito psicanalítico, porquanto expressa uma exacerbação das pulsões: agressividade e sexualidade ("maluco é quem agride", "doida é quem quer pegar, quer avançar no homem").

Terceiro, esses conceitos estão eivados de ideologia mé­dica, absorvida espontânea ou compulsivamente ("Louco é ficar bom com choque"; "tomo remédio, já estou boa"; "foi do tombo, não foi"?). Aqui deve ser feita uma ressal­va: a tendenciosidade da amostra, já que todos eram pacien­tes internados. Seria preciso ampliá-Ia, incorporando ele­mentos que não tivessem entrado em contato direto com a instituição (o que não exclui o aprendizado, que se faz tam­bém de modo indireto).

Quarto, traduzem, afinal, um conhecimento comum par­tilhado pelo grupo e absorvido pelo indivíduo. Em nenhum momento aquelas pessoas questionavam seu diagnóstico ou a própria situação de internação. Muito menos as atitu­des do corpo clínico em relação a elas (na continuidade, Z. justificará a atitude do médico). E todas possuíam um diagnóstico preciso; havia um rótulo geral bem definido. Aquelas pessoas eram, sem dúvida, "anormais", segundo o discurso oficial, discurso esse por elas assumido e/ou por elas redigido?


Conclusão: A validação do sistema

Não resta dúvida que um tema assim abrangente não cabe nesse espaço. Mas o pretendido não foi esgotar um tema e sim arrumar idéias, a fim de colocar o problema.

Assim, a primeira idéia que me ocorre é a da validação do discurso. Se ouvirmos a "quarta corrente" podemos perce­ber que, ou os pacientes absorvem de algum modo a psico­patologia aprendida formalmente pelo médico e a transmi­tem retraduzida e ampliada, ou essa psicopatologia faz parte da bagagem cultural deles, isto é, é partilhada pelo senso comum. Sendo assim, a validade desse conhecimento e de sua manipulação, sobretudo, deve ser questionada, já que sua proposta é tão-somente referendar o conhecimento co­mum e não discuti-Io. Abre-se aqui um caminho a ser anali­sado: a dicotomia normal/patológico ligar-se-ia a toda uma corrente maniqueísta do pensamento sobre a qual se funda a moral burguesa do bem e do mal. E aqui se introduz, suponho eu, a segunda pergunta: que o discurso é validado nos diz a oficialização de seu uso, mas por quem?

Canguilhem refere-se a uma "classe normativa" que teria conquistado "o poder de identificar a função das normas sociais com o uso que ela própria fazia das normas cujo con­teúdo determinava", posição essa que chamaria de "um belo exemplo de ilusão ideológica" (S). Quem sabe nessa ­ilusão cai Devereux, ao propor um critério de normalidade independente da especificidade cultural, tendo por parâ­metros a maturidade afetiva, o sentido do real, a racionali­dade e a capacidade de sublimar (1)? Como definir tais pa­râmetros? Pois em que critérios nos baseamos para afirmar que morrer em resposta à perda do IPASE (retirado pela família) é imaturidade afetiva? Ou que ver o disco-voador é perder o sentido do real? Ou que "receber santo" tem algo de irracional? Em que elementos nos baseamos para dizer que determinadas situações fogem do real (são anormais) e quem as vive deve ser tratado, e que outras são normais, e os que internam, os que tratam ou levam para tratar são sa­dios, os paradigmas do normal? Haverá, como supõe Devereux, critérios independentes da cultura, do momento histórico, da posição de cada um na sociedade (sua posição de classe)? Esse questionamento torna-se crucial, pois o corpo teórico da psicopatologia clínica, que tende a padronizar com­portamentos em termos de normalidade ou anormalidade, surge em um determinado momento histórico, em uma outra sociedade, dentro de uma determinada classe social e vem normatizar as diversas sociedades do mundo, para esse fim idealmente sem classes.

E eis que, mesmo não tendo parâmetros para conceituar normal e anormal (com sentido geralmente de patológico), ou tendo parâmetros frágeis e contraditórios, altamente subjetivos, o clínicopsi trata. Trata o quê? O desviante da média; o comportamento bizarro; um conflito inte­rior do indivíduo; o grupo social ao qual o médico pode não pertencer; os valores que não são os do médico; o disco-voador, talvez.

Neste ponto, suponho ser possível recolocar o problema. Na verdade, a base conceitual da psicopatologia seria a divisão em categorias de normal e patológico? Há que introduzir, sem dúvida, alguns conceitos prévios e que os fundamentam.

Qual é esta "atividade psíquica real e consciente?" De que real estamos falando? Pois o que nos parece é que real tem conotação de ideal. E um real inexistente, porquanto desvinculado, idealizado, ideológico. Volta-se aqui a dicoto­mia maniqueísta de um bem, e um mal, transcendentes, como é transcendente o próprio real sem sociedade, sem classe social, sem contexto histórico.

A seguir, ou antes, talvez, a realidade de quem. Pois o perigo mais imediato é que, sem uma conceituação do pró­prio objeto da ação clínica – o ser humano – toda discus­são acerca desse objeto fica invalidada. E se o clínicopsi trabalha com um objeto não definido (embora suponha que o esteja) e um objeto abstrato, como irá evitar a tendencio­sidade de sua prática? Quem é este ser tratado por ele? Um ser universal, um ente hegeliano ideal dominado pelo mundo das idéias, ou um ser inserido em um contexto deter­minado, produtor de seus meios de subsistência" e dessas idéias que supostamente dominam? Pois entre o liberalismo vienense de Freud e o anticapitalismo de Cooper estão duas visões do homem. Se lidarmos com um ente ideal, então o nosso discurso não deve ser questionado, pois os termos são indiferentes. Nem é mesmo necessário "a quarta corrente", pois que ela só nos dirá o que já sabemos. Mas se lidamos com um ser determinado, inserido em um grupo social de­terminado, em um dado momento histórico, então é impor­tante ouvir – e respeitar – o discurso de "louco", pois é este o homem "que nos interessa como sujeito e objeto de nosso estudo e de nossa prática. E o seu discurso provavel­mente não será um repetir ideologias impostas, já que está eivado de sua própria ideologia de grupo e reflete as condi­ções que permitem a esse "louco", enquanto membro de seu grupo social, ser agente da história desse grupo, mesmo que um agente externamente invalidado.

Finalmente, o terceiro conceito a ser pensado: o do social. Alienar o louco do seu grupo é, como já vimos, tirar dele uma parte vital de sua identidade e colocar seu discurso ao nível do incompreensível. Porque para Es., vindo do ser­tão nordestino, ao ver sua "companheira de fé" nua, em meio a tantos homens, cortada e manipulada com indife­rença, não havia outra resposta senão a da agressão física, já que seu braço é a única arma, a força de trabalho, que aprendeu a usar. Mas para o clínico, formado em um centro urbano, a arma, o instrumento de trabalho que maneja, é o saber: "furor epilético", justificando uma internação psi­quiátrica que anula a denúncia, abafa o afeto e invalida a resposta. Por outro lado, alienar o louco é tirar do grupo uma parte de sua identidade e podar-lhe um de seus meios de expressão. A leitura ficará assim duplamente incom­preensível.

A ameaça que nos persegue – e é de algum modo expli­citada no discurso dos pacientes – é a de sermos reduzi­dos a uma atitude de guardiões da moral vigente na socie­dade determinada onde nos inserimos, como missionários da ideologia dominante. Reproduzir as relações sociais extra-muros. Reproduzir a ideologia que representa essas relações, poderíamos concluir a respei­to do discurso psicopatológico, onde normal e patológico se in­serem como, em outro campo, se inserem os privilegiados e os sem privilégios, os que formam alianças e os que são delas alijados, os que dominam e os que são dominados.

Assim, se é possível extrairmos algumas conclusões real­mente fidedignas desse artigo, a primeira é a de que, para abrirmos uma discussão que se proponha sincera sobre o problema da definição da loucura é preciso ouvir primeiro a parte mais diretamente atingida pela definição: os loucos. A segunda é a de que, ao "ouvirmos" o louco, e o modo como ouvimos, ao nos posicionarmos assim frente à própria definição de homem, estamos inserindo assumidamente o ideológico no discurso psicopatológico (e ele inexiste em algum discurso científico?). O que nos resta talvez, seguindo o exemplo de Howard Becker, é definirmos "de que lado nós estamos" (4).


Referências Bibliográficas

1. ALEXANDER, F.  Development of the Fundamental Concepts of Psychoanalysis: 4. em ALEXANDER, F. & ROSS, H. (eds) Dynamic Psychiatry. Chicago: The University of Chicago Press, 1952.

2. ALVES, S. R. P.  A Organização de Loucura. Mimeografado. Rio de Janeiro: Biblioteca do IUPERJ, 1977.

3. BACHELARD, G.  O Racionalismo Aplicado. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1977.

4. BECKER, H.  Whose Side Are We On? Xerocado; Rio: Biblioteca do IUPERJ, s/d. .

5. CANGUILHEM, G.  O Normal e o Patológico: 208 e 218. Rio: Forense Universitária, 1978.

6. COOPER, D.  Psychiatry and Anti-Psychiatry: 2. Londres: Tavistock Publications, 1967.

7. DEVEREUX, G.  Essais d'Ethnopsychiatrie Générale: 1 a 3eme editions. Paris: Gallimard, 1970.

8. FREUD, S. An Autobiographical Study. em The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund      Freud. v. XX. Londres: The Hogarth Press, 1959.

9. FREUD, S. Inhibitions, Symptoms and Anxiety. em The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud. v. XX. Londres: The Hogarth Press, 1959.

10. GERARD, M.  Emotional Disorders of Childhood: 168. em ALEXANDER, F. & ROSS, H. (eds). Dynamic Psychiatry. Chicago: The                         University of Chicago Press, 1952.

1 1. JASPE RS, K.  Psychopathologie Générale: 3-4. Paris: Librairie Félix Alcan, 1928.

12. JASPERS, K.  Psicopatologia Geral. 456-457. Rio: Livraria Atheneu S.A., 1973.

13. MARX, K.  EI 18 Brumário de Luis Bonaparte. Buenos Aires: Editorial Claridad,  2ª ed., 1971.                               

14. MARX, K. & ENGELS, F. A Ideologia Alemã (I – Feuerbach). São Paulo: Editorial Grijalbo, 1977.

15. SCHNEIDER, K. – Psicopatologia CIínica: 29 e 35. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1968.

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