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O desafio da Relação Mente/Câncer

Resumo

A partir de um trabalho referente às relações entre mente e câncer, é feita uma apreciação do processo de construção de variáveis relacionadas à esfera da psique. Parto da premissa de que as questões que envolvem a psique se configuram como um "problema mal estruturado". Procuro mostrar que, neste caso, o processo de "operacio­nalização de variáveis", necessário para que se possa estabelecer uma mediação entre idéias abstratas e a realidade, opera uma cisão do objeto de estudo, que decorre de uma desarticulação entre a classe de problema e a classe do método, e resulta em uma certa perda do objeto. Ao final são identificadas algumas questões teóricas que merecem ser consideradas no momento do equacionamento do problema.

Unitermos: medicina psicossomática; depressão; distress; câncer; metodologia.

 

Summary

Psyche and cancer

Resulting from a review of a study on the exísting bibliography which deals with the relationship between the psyche and cancer, an appredation on the process of construction of the variables related to the sphere of psyche is made. We started on the assumption that the questions which involve the psyche are "ilI-structured problems", and tried to point out that, in this case, the process of "operationalization of the variables", necessary to establish the mediation between abstract ideas and reality operates as a scission of the study object. It emerges from a disarticulations between the type of problem and the type of method, which results in a loss of the object. Finally, we identify a few theoretical questions that should be considered when the problem is formulated.
Uniterms: psychosomatic medicine; depression; distress; cancer; methodology.

Qualquer investigação a respeito dos fatores en­volvidos na etiologia do câncer enfrenta pro­blemas decorrentes da complexidade da carci­nogênese, um processo de evolução lenta (da ordem de anos), descrito em função de 'fases' (iniciação, promoção, e progressão) de duração variável, e que en­volve diferentes 'fatores etiológicos' (genéticos, ambientais, imunológicos etc.). Soma-se o fato de que o termo "câncer" designa uma categoria nosológica genérica, que admite ampla diversidade.

Os estudos epidemiológicos que tratam da etiologia do câncer seguem duas orientações principais, uma vol­tada para os 'fatores genéticos', outra dirigida aos 'fatores ambientais'(1,2). Uma pequena proporção dedica-se aos 'fatores psicossociais', categoria que inclui tanto hábitos pessoais ("estilos de vida") que modificam a exposição a carcinógenos ambientais(3,4), quanto distúrbios psicológi­cos, tensões e conflitos afetivos, estados emocionais, além de traços relativamente estáveis da personalidade; conjun­to de variáveis que denominaremos da 'esfera da mente' (ou do psiquismo).

Uma questão antiga

Os fatores relacionados à 'esfera da psique' mais fre­qüentemente imputados no processo de carcinogênese podem ser esquematicamente reunidos em dois conjuntos genéricos e, como observam Cox & Mackey, "não são diferentes daqueles sugeridos pelas pesquisas iniciais nesta área"(5).

O primeiro engloba os estados disfóricos (depressão, tristeza, infelicidade, abatimento, desânimo, desesperança, desamparo, desapontamento) e de ansiedade, além das situações traumáticas envolvendo perda e/ou privação. O segundo reúne variáveis definidas por características pessoais relativamente estáveis que correspondem a 'tipos de personalidade'.

A longa distância que separa a tipologia greco-romana, baseada na teoria humoral, das tipologias do século XX, orientadas pelo pensamento classificatório próprio da ciên­cia moderna, não impede que se encontrem referências a observações de Galeno, de que o câncer do seio seria mais freqüente em mulheres melancólicas (categoria que inclui "caráter sombrio, triste, temeroso")(6) do que nas de tipo sangüíneo(5,7-9). Estudiosos dos séculos XVIII e XIX acre­ditavam que o câncer estava associado tanto à "consti­tuição melancólica" (termo sugestivo da influência do pensamento grego), quanto aos estados depressivos.

Nos estudos publicados a partir da segunda guerra mundial, orientados pelos pressupostos da ciência mo­derna, os sentimentos disfóricos como depressão, tristeza e desesperança continuaram a ser objeto de investigação. Os 'tipos de personalidade' relacionados ao câncer varia­vam de acordo com os pressupostos teóricos que orien­tavam o 'recorte' da realidade, isto é, a construção das variáveis. Alguns refletem a influência da teoria psicana­lítica, outros correspondem a padrões de relacionamento interpessoal(5,8).

A partir dos anos sessenta, os desenhos de estudo e os instrumentos de medida foram progressivamente aper­feiçoados e padronizados, visando aumentar a objetivi­dade, ideal do pensamento classificatório da ciência mo­derna. Ao mesmo tempo as técnicas psicanalíticas e as avaliações de natureza clínica, tidas como excessivamente subjetivas, foram sendo abandonadas.

A construção de variáveis para representar os conceitos de depressão e ansiedade passou a se fazer através da definição de conjuntos de indicadores (itens de 'escalas'), escolhidos arbitrariamente entre diversas manifestações disfóricas, hedonistas e somáticas (humor deprimido, sen­timento de culpa, ansiedade, desamparo, desesperança, infelicidade, tristeza, desânimo, humor disfórico, perda do interesse, queda da atividade social, insatisfação, in­capacidade de rir, perda do prazer, idéia de suicídio, agi­tação, perda da libido, sintomas gastrointestinais, perda de peso, insônia, perda do apetite, entre outros).

A diversidade de parâmetros usados na definição da natureza da variável e de critérios para a escolha dos indicadores resulta numa ampla variedade de 'tipos de personalidade'

Harrower & coIs.(10) empregam um teste de tipo pro­jetivo (o desenho da figura humana) para discriminar categorias de "atitude pessoal em relação ao mundo exterior". Observam, através de estudo prospectivo, que a atitude "de demanda" (figura de braços estendidos) associa-se ao desenvolvimento de hipertensão, enquanto a atitude "ambivalente" ou "em conflito" (figura com um braço estendido e outro levantado) está associada ao desenvol­vimento de câncer.

Morris & cols.(11) classificam os indivíduos, em função da freqüência com que "perdem o controle" em conse­qüência de sentimentos de raiva (grito ou violência dirigida a pessoas e/ou objetos), em duas categorias mutuamente exclusivas; a dos que suprimem e a dos que expressam sentimentos de raiva, sendo a primeira associada ao câncer.

Grossarth-Maticek & Eysenck(12) desenvolveram um questionário visando discriminar padrões de comporta­mento (relação interpessoal) relacionados à tendência para o desenvolvimento de diferentes doenças. Segundo estes autores o câncer esta associado à personalidade do "tipo C"; pessoas que não conseguem lidar com o estresse interpessoal, procuram a harmonia e evitam o conflito; ten­dem a se mostrar pacientes, cooperativas e conciliadoras, e a suprimir a expressão de emoções hostis.

Almada & coIs.(13) estudam a relação entre o câncer e o "neuroticism" ("a tendência para experimentar cronicamente emoções aflitivas negativas, com pouca consideração das con­dições externas da vida"), variável definida por 'traços' (in­dicadores) que incluem timidez, tristeza, irritabilidade, baixa auto-estima, impulsividade, e sentimentos de desamparo.

O reconhecimento das inter-relações entre os sistemas nervoso, endócrino e imunológico, e do papel deste último na promoção e progressão de alguns tumores, estimulou a construção de teorias sobre os mecanismos biológicos subjacentes à relação entre fatores psicossociais e a pro­moção e progressão do câncer(9,14). Estudos de laboratório evidenciavam a importância do valor subjetivo do agente estressor e da possibilidade de seu controle pelo sujeito, na mediação da relação entre estresse e crescimento de tumores em ratos. Tais observações levaram à incorporação do conceito de "coping" aos modelos causais que, além das demandas ambientais objetivas, passaram a considerar a percepção individual subjetiva da situação de estresse.

Autores dedicados ao estudo do "coping"(15-17) distin­guem duas abordagens "opostas" ou "contrastantes". Uma voltada para a identificação de padrões relativamente es­táveis de reação a situações de perigo ou ameaça ("estilos de coping"), determinados por 'traços' da personalidade igualmente estáveis. As categorias que discriminam os diferentes estilos de coping correspondem a qualidades inerentes aos sujeitos, e equivalem às que discriminam "tipos de personalidade".

A segunda abordagem considera um processo dinâmico de resposta a situações particulares de perigo ou ameaça, que se faz em função da estimativa subjetiva das demandas ambientais, do risco envolvido, e de como, a cada mo­mento, o sujeito avalia as respostas possíveis, os recursos disponíveis, e interpreta as contra-respostas do ambiente. Neste caso, as categorias da variável correspondem a "es­tratégias de coping" (negação, aceitação, espírito de luta, fatalismo, enfrentamento, resignação), atitudes que ope­ram como "mediadores das emoções"(15).

A diversidade de pressupostos teóricos que orientam as diferentes maneiras de definir a natureza do objeto (de construir a variável), de escolher os critérios de discrimi­nação das categorias (os indicadores), e de estabelecer os parâmetros para classificar as observações (para medir), dificulta o reconhecimento de afinidades entre os vários fatores da 'esfera da psique', tradicionalmente associados ao desenvolvimento e à progressão do câncer.

No entanto, se admitir-se que estamos diante de fe­nômenos imprecisos, de algo "vago por essência", porque só pode ser enunciado por conceitos vagos(18), será possível reconhecer alguma coisa em comum aos diversos "tipos de personalidade" identificados com uma disposição maior ao câncer. A idéia de que os traços da personalidade são moderadores das emoções(15) e a proximidade, mesmo que vaga, entre as características empregadas na descrição dos tipos psicológicos associados ao câncer e os indicadores que definem os estados disfóricos, sugere que este" algo vago" comum aos tipos psicológicos tem a ver com a disforia.


Uma questão controvertida

Apesar de antiga, a tese de que fatores 'da esfera da psique' interferem no desenvolvimento e/ou na progres­são do câncer suscita controvérsias, e a investigação 'cien­tifica' do assunto tem levado a conclusões divergentes.

Fox comenta os achados de diversos estudos prospec­tivos sobre a associação entre depressão e câncer; observa que com exceção do primeiro, de Shekelle & coIs. (1981), todos os demais (Hahn & Petiti, 1988. Zonderman & coIs., 1989. Linkins & Comstock, 1990) chegaram a resultados estatisticamente não significativos, levando o autor a concluir que "a evidência combinada (da associação entre de­pressão e câncer) é consistente com uma relação nula ou fraca, com riscos relativos em torno de 1,0 ou pouco mais"(19).

Zondermam & coIs.(20) atribuem os achados de Shekelle & cols. ao perfil da amostra estudada (homens entre 40 e 55 anos), e sustentam que seus resultados (obtidos a partir de uma amostra representativa da população adulta dos USA) permitem afastar a hipótese de que a depressão constitui risco de câncer. Andrianopoulos(21) considera tal conclusão precipitada, e argumenta que os estudos sobre câncer em geral não permitem descartar a importância dos fatores psicológicos no desenvolvimento de tumores específicos.

Linkins & Comstock(22) também encontram uma as­sociação fraca entre depressão e câncer, mas admitem que "a mistura de tipos de câncer na população estudada" tem influência nos resultados de seu estudo.

Grossarth-Maticek & Eysenck observam uma forte as­sociação entre personalidade "tipo C" e o desenvolvimento de câncer. Argumentam que a "incapacidade de lidar com o estresse emocional", característica deste tipo, provoca sentimentos de desesperança e depressão. Concluem que "há boa parcela de evidência de que personalidade e estresse estão causalmente relacionados a várias doenças, incluindo o câncer e a doença coronariana"(12).

Pelosi & Appleby divergem frontalmente de tal opinião. Argumentam que nos artigos publicados por Grossarth­-Maticek, Eysenck e seus colaboradores são omitidas informações metodológicas importantes, que a definição dos "tipos" é confusa, que os itens do questionário são grosseiros, e que as medidas das categorias (tipos) não foram validadas. Comentam com sarcasmo, que o risco relativo encontrado (o câncer seria 121 vezes mais fre­qüente nas pessoas do "tipo C" do que nas do "tipo neutro") "é talvez o maior jamais identificado em epidemiologia de doenças não infecciosas", um resultado "simplesmente ina­creditável"(23). Terminam afirmando que a publicação de tais estudos constitui um desserviço à ciência.

Morris & coIs.(11) estudam a relação entre padrões de expressão da raiva e tumor de mama. Seus resultados indicam que pacientes com câncer relatam menos perda de controle conseqüente à raiva (um dos traços do "tipo C" de Grossarth-Maticeck) do que pacientes com tumor benigno.

Harrower & coIs. consideram que a "atitude pessoal em relação ao mundo exterior", identificada pelo teste do desenho da figura humana, constitui "um importante fator na determinação de vulnerabilidades específicas dos dese­nhistas"(10), e que os desenhos são preditores potenciais de estados futuros de doença.

Após extensa revisão bibliográfica, Cox & Mackey con­cluem que "os fatores psicossociais influenciam as reações ao câncer (e as chances de sobrevivência), e podem ter um papel na sua etiologia e desenvolvimento"(5). A revisão feita por Reed & Jacobsen, ao contrário, leva os autores a concluir que "até então uma conexão causal direta entre estresse psi­cossocial e câncer não pôde ser demonstrada"(8).

Os achados divergentes costumam ser atribuídos a problemas metodológicos: uma limitação inerente ao dese­nho de estudo, um viés amostral, uma imprecisão na definição das variáveis, uma deficiência no controle das variáveis intervenientes, ou uma insuficiência na validação dos instrumentos e estratégias de medida.

Hünry reconhece como intrigante o fato de que "com poucas exceções todos os estudos que encontram uma relação entre fatores psicológicos e câncer são baseados em entrevistas clínicas semi-estruturadas, enquanto os resultados daqueles que usam instrumentos psicométricos são geralmente negativos"( 4).

Neste ponto será útil considerar a diferença que Ratcliffe & Gonzales-del-Valle(25) estabelecem entre "método", que denota um procedimento cientifico, e "metodologia", um conceito de um "tipo lógico superior" que tem a ver com os fundamentos epistemológicos e teóricos dos métodos, com a "teoria do método"; à qual interessam os pressu­postos e os valores que servem de base lógica para a pesquisa e determinam como será formulada a hipótese.

Se admitirmos que "o que é conhecido a respeito de qualquer problema depende de como o problema é en­quadrado, definido, ou modelado, e de como a informação foi obtida"(25), isto é, que o conhecimento deve tributos à metodologia, devemos investigar a possibilidade de que os achados divergentes devam-se não a problemas de método, mas a problemas de metodologia.

Um problema de metodologia

O conhecimento científico tem por fundamento a cons­trução de modelos teóricos que permitam estabelecer as mediações necessárias entre idéias, expressas sob a forma de conceitos abstratos, e a realidade(26). Um modelo apre­senta e comunica idéias a partir de uma sintaxe e de uma semântica, isto é, de um conjunto de regras que definem relações entre unidades elementares dotadas de significa­do. A unidade fundamental do discurso científico que viabiliza a construção de modelos é o conceito.

O conceito, no entanto, encontra-se em um nível de abstração (o da teoria) que não permite sua abordagem empírica. Para tal será necessário lançar mão de artifícios como "as quatro reduções" descritas por Almeida Filho(27); transformações sucessivas do conceito abstrato que permi­tem chegar a uma medida concreta. A primeira corresponde à substituição do conceito por uma variável, a segunda consiste na redução da variável a um (ou vários) indicador, elemento que pode ser verificado empiricamente e permite classificar as observações segundo as categorias da variá­vel. A terceira redução se faz pela aceitação de que o indicador é a manifestação do conceito original, e final­mente, desde que o que expressa o indicador é uma medida, esta corresponderá à última redução do conceito.

Ratcliffe & Gonzales-del-Valle falam em "operaciona­lização de variáveis" para referir-se ao processo de "seleção de indicadores objetivos apropriados no lugar de variáveis subjetivas". Observam que "a operacionalização é reque­rida usualmente porque as variáveis que o pesquisador deseja estudar não são empiricamente evidentes (observáveis, enumeráveis, mensuráveis etc.) na natureza. De modo a obter dados quantitativos, os preferidos pela co­munidade científica, o pesquisador é forçado a corroborar um indicador empírico na posição de um substituto para o que ele realmente deseja medir, mas não pode"(25).

Samaja acredita que o processo de redução implique uma perda: "uma das maneiras mais exitosas de reduzir a complexidade de um objeto de estudo empírico é tra­duzi-Io à linguagem e análise de 'variáveis'. Esta lingua­gem permitiu a muitas gerações de investigadores sim­plificar a complexidade de seu objeto de estudo (redu­zindo-o a 'unidades de análise', 'variáveis', e 'valores de variáveis'), mas também sempre nos deixou a sensação amarga de que tal simplificação se conseguia à custa da perda do objeto em si" (28).

Almeida Filho considera que "nem todas as variáveis podem cumprir o percurso da redução", argumenta que a redução do conceito de "classe social", por exemplo, é difícil e envolve uma "infidelidade metodológica ao marco teórico do conceito"(27).

Ratcliffe & Gonzales-del-Vale advertem que o paradig­ma metodológico deve ser congruente e bem adequado à natureza do problema. Consideram que a transformação de uma variável não quantificável em uma variável quan­tificável implica uma "desarticulação entre a classe do problema e a classe do método", situação que configura um "erro sistêmico" ou "de terceira espécie"(25).

A maioria dos estudos sobre a relação entre 'fatores da esfera da psique' e câncer adota pressupostos e pro­cedimentos identificados com o "paradigma do risco" descrito por Almeida Filho(29). Segundo o autor, o conceito de "risco" repousa sobre três pressupostos que "revelam claramente o caráter indutivista da epidemiologia".

O primeiro estabelece "a identidade entre o possível e o provável". A possibilidade de um evento corresponderá à probabilidade de sua ocorrência, dada pela expressão geral P(x)=x/N. Tal pressuposto sugere uma aproximação entre os conceitos de "risco" e de "incidência", e torna imperativa a quantificação do evento.

O segundo "consiste na introdução de um princípio de homogeneidade" que destaca uma dimensão unifica­dora dos eventos, dissimulando suas particularidades singulares. Este pressuposto permite que se definam variáveis a partir de conjuntos arbitrários de indicadores aceitos como manifestação do conceito que enuncia o evento.

O terceiro corresponde ao "postulado da recorrência dos eventos em série, implicando a expectativa de esta­bilidade dos padrões de ocorrência seriada dos fatos". Assume-se que a probabilidade de adoecer P(d) seja mo­dificada recorrentemente por um fator "E" (Exposição), de modo tal que a probabilidade (o "risco") de adoecer entre expostos Re=P(d / E) seja sempre maior do que entre os não expostos Ro=P(d / ñE). A recorrência da associação entre as variáveis dependente (doença) e independente (exposição), medida como 'força' pelo risco relativo RR=Re/Ro, justifica a generalização indutiva que permite afirmar que, se a associação é 'forte', o risco é função da exposição R=f(E).

Segundo Ratcliffe & Gonzales-del-Vale os métodos orientados pelos paradigmas dedutivo e indutivo, onde se inclui o da epidemiologia, são apropriados para lidar com "problemas bem estruturados" (bem definidos e pos­suidores de características precisamente controláveis), mas não se adequam aos "problemas mal estruturados", sobre os quais "há pouca conformidade a respeito da sua de­finição, ou da precisa especificação da sua natureza"(25).


Um objeto mal estruturado

A diversidade de maneiras de descrever o objeto (de construir a variável) reflete a "falta de conformidade" entre os autores a respeito do significado e da natureza dos conceitos que enunciam os fatores da 'esfera da psique'. Vejamos o caso dos conceitos de depressão, ansiedade e distress.

Depressão pode ser entendida como uma "faceta de diferenças individuais da personalidade"(20); como um "sentimento" induzido pela resposta ao estresse característica de certos "tipos" de personalidade(12); como um transtorno psicológico (afetivo) relativamente estável, de­finido por diferentes conjuntos de sintomas (indicadores) disfóricos, hedonistas e somáticos(22,30-32); ou como um transtorno transitório do humor caracterizado pelo predo­mínio de sentimentos hedonístas(33).

Alguns autores definem o "distress" como um transtorno afetivo transitório, que envolve ansiedade e depressão indistintamente(34,35). Edgar & cols.(36) utilizam medidas de ansiedade e depressão como indicadores de "distress". Sutherland & cols.(37) medem o "distress emocional", des­crito como "flutuação transitória do estado afetivo", em função da intensidade com que se manifestam sentimentos de fadiga, ansiedade, confusão, depressão, vigor (falta de), e raiva. Nestes casos, os indicadores (os itens das escalas) equivalem aos de ansiedade e depressão, são a expressão do "distress em si"(38), sugerindo que os concei­tos de "distress", depressão e ansiedade se confundem.

O "distress" conseqüente ao câncer é freqüentemente medido em função do grau de aborrecimento, incômodo, desconforto, preocupação ou aflição, que o paciente atribui a cada um dos itens de uma lista de sintomas disfóricos e somáticos, e de circunstâncias potencialmente desagra­dáveis decorrentes do câncer(38-41). Neste caso os indica­dores correspondem a fontes de "distress", que aqui equi­vale a "reações normais a circunstâncias angustiantes"(38) e se confunde com aborrecimento, incômodo, desconforto, preocupação e aflição.


Um erro de terceira espécie

A maneira de entender o conceito interfere na escolha dos parâmetros que definem a natureza da variável, e na interpretação dos resultados. Cox & Mackay admitem que os achados paradoxais dos estudos que investigam a associação entre câncer e "evitamento" podem ser ex­plicados por "uma falha para discriminar adequadamente entre características da personalidade relativamente fixas, e estratégias de coping determinadas situacionalmente, que podem refletir processos psicológicos diferentes"(5).

Por outro lado há casos em que os parâmetros que definem a natureza da variável devem atender a requisitos impostos pelas características do desenho de estudo. Os estudos prospectivos estão limitados à investigação de distúrbios afetivos crônicos, e de "tipos de personalidade", pois é o caráter estável da variável independente que autoriza a distinção das coortes de sujeitos" expostos" e "não-expostos" a partir de uma única medida, tomada no início do estudo.

Pretende-se que a imprecisão inerente aos conceitos que enunciam os fenômenos da 'esfera da psique' possa ser contornada pela sua "redução" a uma variável definida positivamente, por um conjunto especificado de indica­dores vulneráveis à observação empírica (mensuráveis). A diversidade de conjuntos capazes de definir a mesma variável e o desejo de alcançar maior precisão resultam na descrição de subtipos que encobrem a dificuldade de apreensão do conceito original.

O reconhecimento de especificidades que permitem distinguir "depressão endógena", "depressão ansiosa", "depressão psicológica", "personalidade depressiva", "es­tado depressivo", "humor deprimido", ou, simplesmente, "sintomas depressivos", por exemplo, encobre a impre­cisão que cerca o conceito de "depressão", pois o elemento distintivo consiste em uma qualidade que se agrega a um elemento central comum que permanece mal definido. Trata-se de um exercício de adjetivação que não acrescenta nada de substantivo acerca do conceito original.

O recurso a procedimentos de operacionalização de variáveis não permite contornar a complexidade que en­volve os aspectos psicológicos do adoecer humano. Na verdade, a tradução de conceitos "vagos por essência"(18) em uma linguagem de variáveis implica uma "desarticu­lação entre a classe do problema e a classe do método"(25), que impõe uma dupla cisão ao objeto e prejudica sua apreensão.

A polêmica em torno da exclusão dos "sintomas so­máticos" do conjunto de indicadores empregados para medir depressão em pacientes com câncer(31,32,42,43) ilustra a primeira cisão.

O problema envolve um sujeito único, que exibe um conjunto particular de sinais e sintomas, digamos 5 = {a, b, c, d, e, f}. Ao reconhecer o câncer no conjunto C = {c, d, e, f}, e a depressão no conjunto D={a,b,c,d}, o método permite distinguir duas entidades, e pretende separá-Ias.

No entanto, mesmo que se considere o conjunto "S" como resultado da união entre D e C, não será possível identificar a qual dos conjuntos originais pertence cada um dos elementos comuns a "C" e a "D". Para tal seria necessário abandonar a idéia de conjunto, e considerar que os sinais e sintomas exibidos pelo paciente se confi­guram como um somatório, digamos S=a+b+c+d+e+f, em que cada parcela possui uma origem determinada. Recorrer a tal expediente implica na abstração do sujeito doente, elemento cuja unidade impõe o reconhecimento de "S" como um conjunto.

A segunda cisão se dá entre o sujeito doente e o seu entorno, freqüentemente tomados como unidades inde­pendentes que mantêm entre si uma relação do tipo estí­mulo-resposta. As dificuldades inerentes aos estudos sobre o "distress" e o "coping" ilustram a desarticulação entre problema e método, decorrente da complexidade inerente ao primeiro e da simplificação requerida pelo segundo. O método visa isolar categorias de estímulos (agentes estressores), quando é conferido destaque ao meio, ou de padrões de respostas a estímulos (estilos de "coping"), quando o elemento em destaque é o sujeito. O problema envolve uma interação dinâmica que evolui em função da variação das diversas soluções parciais que o complexo sujeito-ambiente admite a cada momento.

A investigação dos aspectos psicológicos relaciona­dos ao câncer, além das dificuldades creditadas à com­plexidade do processo de carcinogênese e à generalidade que o termo câncer designa, enfrenta dificuldades me­todológicas que envolvem um "erro de terceira espécie", "talvez o erro mais amplamente cometido na ciência hoje"(25).

O método epidemiológico exige a "operacionalização das variáveis", no entanto, os conceitos que enunciam os fenômenos 'da esfera da psique', dada sua imprecisão, não podem ser satisfatoriamente expressos em uma lin­guagem de variáveis. O processo de redução inerente aos métodos inspirados no paradigma do risco opera, na ver­dade, uma simplificação que compromete a compreensão do fenômeno.

Em diversos campos do conhecimento a construção de um "novo paradigma" tem sido apresentada como alternativa para a investigação de fenômenos comple­xos(44). Os modelos inspirados em tais idéias supõem: determinação não-linear, sensibilidades a condições ini­ciais, instabilidade, dinamismo sistêmico, e interdepen­dência estrutural de parâmetros.

Os novos paradigmas têm inspirado propostas tera­pêuticas baseadas numa abordagem psicossomática, que visa ajudar os pacientes a "identificar e resolver os problemas emocionais que estão na raiz de suas enfermi­dades"(45).

Almeida Filho traça o "esboço de um novo paradigma para a epidemiologia"(29) inspirado nos modelos orienta­dos pelas novas abordagens. No entanto, como o próprio autor reconhece, no terreno da epidemiologia a pesquisa orientada pelos novos paradigmas requer um enorme esforço para o desenvolvimento de instrumentos heurísticos que viabilizem tal abordagem. A meu ver a inves­tigação epidemiológica dos aspectos psicológicos envol­vidos na promoção e progressão do câncer depende de tais esforços.


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