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Algo sobre o lítio

O lítio é um elemento da tabela periódica, onde se situa logo abaixo do sódio. Como o sódio e o potássio, o lítio prontamente forma sais. Via de regra não existe em nosso organismo, porém pode entrar em pequenas doses, quando comemos um vegetal ou carne de animal que fez seu pasto em solo pobre em sódio ou potássio. Assim, inadvertidamente o lítio pode entrar no lugar de ambos (o cloreto de potássio é o chamado “sal grosso” dos churrasqueiros). Quando pedimos a medida do lítio sérico (do soro sangüíneo), sabemos que a que aparecer será, praticamente, a do lítio que estamos oferecendo ao paciente. A litemia deve ser monitorada com rigor.
Já ouvimos altas bobagens de colegas, em especial, aqueles que estão ganhando muito dinheiro com uma bobagem maior ainda, e mal intencionada, chamada "medicina ortomolecular". Esses elementos costumam pedir o exame mineralógico de fio de cabelo aos seus pacientes. E se, porventura, a quantidade de lítio que lá surgir for baixa (?!), eles dizem ao paciente que seu organismo está com falta de lítio, e, por isso, está deprimido. Ato contínuo, prescrevem lítio. Com critério diagnóstico, farmacodinâmico e "médico", enfim, de "comadres", absolutamente errados. O catabolismo do lítio é essencialmente de excreção renal, e, portanto, devemos monitorar a função renal em pacientes de risco neste sistema.

No começo do século XX, o brometo de lítio fora usado como um tranqüilizante sedativo, mas o lítio caiu em desgraça na década de 40, quando foi usado de forma descontrolada como um substituto do sódio para pacientes cardíacos, alguns dos quais morreram. Exatamente neste período nefasto, em 1949, o australiano John F. J. Cade, um psiquiatra desconhecido, trabalhando sozinho em um pequeno hospital de pacientes crônicos, sem nenhuma experiência em pesquisa, com técnicas primitivas e equipamento desprezível, descobriu que os sais de lítio constituíam um tratamento específico notável para a excitação maníaca.

A descoberta de Cade é, em geral, caracterizada como acidental. Cade descobrira que a urina de pacientes maníacos era especialmente tóxica para cobaias e procurou as substâncias responsáveis. Achou que uma delas podia ser o ácido úrico e começou a fazer experiências com urato de lítio, não por causa de qualquer propriedade psicoativa do lítio, mas porque o urato de lítio era o sal mais solúvel do ácido úrico. Para surpresa de Cade, longe de ser tóxico, o sal protegia as cobaias contra a urina dos maníacos e também sedava os animais, efeitos que Cade descobriu serem devidos ao lítio. Imediatamente experimentou outros sais de lítio em si mesmo e, quando se mostraram seguros, administrou-os em dez pacientes maníacos hospitalizados, todos os quais se curaram, alguns quase milagrosamente. A descoberta do lítio como um agente antimaníaco resultou da curiosidade e do poder de observação e de dedução deste único homem.

Por causa das mortes de pacientes cardíacos, bem como pela falta de renome de Cade na profissão, o uso do lítio para mania difundiu-se muito lentamente. Mas, no final da década de 60, os médicos nova­mente passaram a considerar o lítio uma droga razoavelmente segura. Sabia-se também que o lítio podia tratar e evitar recaídas do Transtorno Afetivo Bipolar (TAB), mas só raramente surtia efeito para a Esquizofre­nia. Quando a segurança e a eficácia específica para o TAB do lítio foram aceitas, as diferenças de diagnóstico assumiram uma importância de que nunca desfrutaram. Ao mesmo tempo, o resultado farmacológico podia guiar o diagnóstico.

Esse raciocínio era um círculo perfeitamente vicioso: já que o diagnóstico era necessário para prever a resposta à medicação, esta deveria confirmar o diagnóstico presumido. Parecia, quase sempre, que o lítio tratava a doença maníaco-depressiva e nada mais; e que nenhuma outra medicação tratasse o TAB. Ou seja, o lítio ajustava-se a um modelo de farmacologia [uma droga/uma doença], um modelo tão esteticamente agradável a ponto de ser irresistível. A resposta ao lítio confirmou o modelo nosológico de Kraepelin para a Psicose Maníaco-Depressiva (PMD ou TAB) e fez com que os psiquiatras norte-americanos expandissem o seu uso do diagnóstico. O lítio havia realizado uma extraordinária "disse­cção farmacológica", definindo para o mundo inteiro as fronteiras de uma determinada doença.

O sucesso do lítio desencadeou uma explosão de diagnósticos psicopatológicos precisos. Em poucas décadas, os psiquiatras norte-america­nos passaram de apenas dois diagnósticos, neurose e esquizofrenia, para dezenas.

O lítio e o modelo [uma droga/uma doença], teve enorme in­fluência nas mentes dos médicos. O lítio fez parecer que os medica­mentos iriam ser divisores – definidores de doenças. Mas, infeliz­mente, este desejo não se confirmou com o tempo. A maioria dos remédios subse­qüentes englobava muitas dessas condições, por exemplo, a fluoxetina, o primeiro antidepressivo Inibidor Seletivo da Recaptura da Serotonina a trazer resultados bastante positivos e com poucos efeitos colaterias. Dentro de dois anos após seu lançamento, ela se mostrou útil em depressão, TOC, síndrome do pânico, distúrbios alimentares, síndro­me pré-menstrual, abuso de substâncias, distúrbio de déficit de atenção e tantas outras.

O firme vínculo entre uma droga e um diagnóstico tornou-se um modelo ideal ao qual nem mesmo o lítio se aplicaria mais. Com uma medica­ção disponível eficaz, os psiquiatras norte-americanos tornaram-se diagnos­ticadores tão vorazes de TAB que hoje somente metade dos pacientes que recebem este diagnóstico responde bem ao lítio, e duas ou três outras drogas estão em uso comum para a doença. E o lítio está agora sendo usado para tratar outras formas de transtorno.

Os medicamentos, é cada vez mais reconhecido, alteram os siste­mas neuroquímicos. Eles não tratam doenças específicas. E a prolife­ração de doenças tornou-se tão perturbadora que a pesquisa de ponta envolve tentativas de elucidar vínculos entre elas.

TOC e Distimia, por exemplo, são classificados na psicopatologia contem­porânea como entidades distintas, uma relacionada à ansiedade e a outra à depressão; mas um movimento contrário, baseado em parte em observações dos efeitos das drogas, caracteriza-as como distúrbios relacionados. Nossa confusão em determinar sobre qual distúrbio o medicamento está atuando em determinado paciente sugere que a especi­ficidade do diagnóstico pode ter suas limitações. Em especial em pacientes levemente perturbados ou quase normais, as síndromes que deveriam ser distintas se sobrepõem. Este anuviar de fronteiras constitui um efeito não-esperado – humanístico – de se ouvir as drogas: a resposta positiva a drogas pode enfatizar a banalidade, bem como a futilidade de tentativas de categorização mecânica. Os pacientes compartilham algo muito parecido com a "neurose", o termo guarda-chuva da psicanálise para os levemente perturbados, os quase normais (os normóticos), e para aqueles com praticamente nada de errado (psiquiatras, seus filhos e esposas!).

O que é particularmente digno de nota sobre a indefinição de fronteiras é a sua origem. Durante décadas, o impulso da psiquiatria biológica – não somente por causa do lítio, mas em resposta à evidência de varreduras cerebrais pelas neuroimagens, estudos genéticos e pesquisas em neurotransmissores – tem sido resguardar o modelo de [doença / dis­tinta de desvio mental] e de minar o conceito de espectro. Os mais ponderados, podemos ter previsto que um dia o pêndulo balançaria para o outro lado, o psicodinâmico, mas não. O novo desafio a distinções entre doenças, e entre saúde e doença, viria de um dos frutos da psiquiatria biológica, a droga terapêutica. Prescrever o fármaco e ouvir o que a sua resposta tem a nos dizer.

Há tempos que o lítio vem sendo substituído por novos estabilizadores de humor. Fármacos usados na terapêutica da epilepsia se mostraram com esta propriedade. Os sais do ácido valpróico são, hoje, os mais usados, os valproatos. Estes chegaram para ficar.

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