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Perdas e Danos

Procurei fazer uma análise sob a ótica da Psicanálise do filme "PERDAS E DANOS", o qual me pareceu adequado para esse intento.

Desejo dar início a esse trabalho declarando a admiração que tenho pela atriz principal do filme, Juliette Binoche, a qual venho acompanhando o trabalho, já há algum tempo, desde sua participação no filme "O paciente inglês", o qual lhe rendeu o Oscar de melhor atriz coadjuvante. Nesse filme, contracena com o notável Jeremy Irons. Como referência para os cinéfilos de plantão, recomendo também "A liberdade é azul" e "Chocolate", neste último, contracenando com Jonhy Depp.

Jeremy Irons interpreta um ministro de Estado, casado e com dois filhos; um rapaz e uma garota de uns doze anos. A esposa diz ao ministro que o filho está de namorada nova, ao que ele responde que o filho só quer as garotas para transar. Aqui já temos um primeiro interrogante: que idéia esse pai faz de seu filho? Será que não estaria ele projetando no filho, um desejo dele, mas que a
ele estava obstaculizado pelo casamento e posição política? Parece que não estava podendo reconhecer no filho, a capacidade de amar, de se apaixonar e de, como ele, constituir família. Quando se encontra em um compromisso político, a namorada do filho vai até o local e se apresenta a ele. Pela excelente interpretação dos dois atores, fica patente a incrível atração que permeia esse primeiro contato entre eles.

Ao passar em casa apenas para um drinque, o filho traz a namorada e apresenta para os pais e eles acabam se cumprimentando como se nunca tivessem se visto. Aqui a revelação da presença, entre eles dois, de um pacto de silêncio sobre a relação que já estava instalada anteriormente. Na seqüência, temos um telefonema que a namorada do filho dá a ele, fornecendo-lhe o seu endereço. Ele comparece e, sem trocarem palavra, dão início a um intenso envolvimento sexual. Sendo ela, a namorada de seu filho, onde teria ido parar uma esperada censura da parte dele? O filho volta a casa dos pais, com a namorada, para fazerem uma refeição juntos. Fica claro que a mãe do rapaz não se sente muito à vontade na presença da namorada do filho, chegando a verbalizar, quando foram embora, que não confiava nela. Teria a mãe do rapaz e, ao mesmo tempo, esposa do ministro, intuído algo a respeito, sem poder entender claramente de que se tratava na verdade? Nada declarado, mas o gestual, a mímica, poderia ter falado mais que as próprias palavras.

Chega um final de semana, onde o ministro terá um compromisso de trabalho em Bruxelas e a convida para ir com ele, ao que ela responde ser impossível, uma vez que irá com o seu namorado, seu filho, a Paris para passarem o final de semana. Claramente insatisfeito, ele viaja para o compromisso e, num recesso ocorrido, acaba pegando um trem e vai até Paris. Em lá chegando, liga para o hotel, onde o filho e a namorada estão no quarto ainda dormindo. Ele telefona para o hotel e pede para chamá-la e que ela se encontre com ele em poucos minutos. Ela deixa o namorado, ainda dormindo no hotel e vai se encontrar com o pai dele, aliás, seu amante. Acabam  dando vazão ao desejo em local público, sendo que depois ela volta para o hotel, e ele para Bruxelas. No próximo encontro, ele diz a ela que deixe o namorado, portanto seu filho, e que ele vai deixar a esposa também. Ela é frontalmente contrária à idéia,  dizendo que ele tem uma boa mulher e uma vida boa e lhe pergunta o que ele ganharia com essa atitude. Ele responde que lhe ganharia, quando ela novamente contesta dizendo que ele não precisa ganhar aquilo que ele já tem. A trama vai se desenvolvendo, até um dia em que num almoço em família com a presença, inclusive do avô materno, o filho anuncia que tinha pedido a namorada em casamento e que ela havia aceitado o seu pedido. Como isso ocorreu na casa do avô, onde passavam o final de semana, após o jantar despediram-se e se foram para os seus respectivos quartos, tendo ficado reservado para ela um quarto especial da casa. Pela madrugada, ele vai até o quarto dela para estarem novamente juntos, mas ao sair encontra sua filha mais nova no topo da escada, a qual tinha ido buscar um copo d'água. Pai e filha olham-se detidamente e ele sem nada dizer no momento, volta para o quarto onde dormia a esposa. Num momento de um novo encontro, ela conta a ele que havia tido um irmão, o qual a queria só para ele e que quando a viu sendo beijada por um filho de amigos de seus pais, recriminou-a meio que lhe dizendo que ela só pertencia a ele. Naquela noite, ela teria se isolado no seu quarto, e após alguma insistência dele para que ela o deixasse entrar, ele se foi e ela dormiu.

Pela manhã, ao ouvir um choro e tendo ido ver o que estava se passando, viu que o irmão se havia suicidado, cortando os pulsos. Aqui fica claramente patente que entre ela e o irmão, havia um relacionamento incestuoso, tendo levado o irmão, provavelmente a entrar em surto, que culminou com a sua morte. Ela passou a ter então, somente a mãe, da qual vivia separada. Por ocasião do pedido de casamento, vai com o namorado e os pais dele, na casa de sua mãe. Durante a refeição, a mãe dela menciona a imensa semelhança de feições entre seu namorado e seu irmão morto, além de que, quando o pai do rapaz, seu amante, vai dar uma carona para a mãe dela, esta lhe diz que percebeu claramente o interesse dele por sua filha e que ele não se colocasse entre a filha e o namorado.

A mãe dela, aparentemente deixa pistas, no desenrolar da trama, de que de alguma forma "sabia" da relação entre seus dois filhos. Depois da pressão que exercera sobre ele a mãe de sua amante, e, depois de refletir um pouco, ele telefona para ela e pede-lhe que ela apenas o escute ao telefone, sem dizer nada, dizendo que era melhor que tudo ficasse terminado entre eles, que pensava ser o melhor para todos. Passados alguns dias, ele recebe um presente em seu gabinete. Ao abrir a caixa, encontra o endereço de um flat e as respectivas chaves, obviamente enviados por ela. Abandona o trabalho imediatamente, dirigindo-se ao local, onde encontra um aposento com uma cama de casal e poucos móveis, num prédio em reformas. Parece sentir uma grande alegria pela retomada do relacionamento. Nesse ínterim, o filho e a namorada vão discutindo os detalhes do casamento e da música que embalaria a cerimônia.

Ao marcarem o primeiro encontro no flat, ambos se dirigem para lá, só que ao entrar, ele esquece a chave pelo lado de fora da porta. Teríamos assistido aqui a um ato falho? Um encontro super-secreto, mas que deixa uma brecha para ser descoberto? Já estamos na reta final da trama. Vemos os dois na cama, amando-se intensamente, como se aquela fosse a primeira vez, e na seqüência, podemos observar a chegada do filho dele e namorado dela, na entrada do flat, o qual portava um papel com o endereço nas mãos. Vai subindo as escadas, passa pelos trabalhadores responsáveis pela reforma do prédio e, finalmente chega até à porta do quarto, onde estavam nada mais, nada menos, que o seu pai e a sua namorada, amando-se com toda a intensidade. Detém-se alguns minutos na porta do apartamento, de onde pode ouvir gemidos e sussurros de prazer.

Enchendo-se de coragem, abre a porta, entra e depara-se com aquela que possivelmente tenha sido, para ele a pior cena de toda a sua vida. Permanece por alguns instantes a alguns metros, da cama onde estavam seu pai e a sua namorada, ou melhor, sua noiva, nus, suados e praticamente esgotados pela intensidade do amor que tinham acabado de viver. O rapaz vai andando para trás, sem dizer palavra e acaba por não ser contido pelo beiral do andar, caindo por uns três andares. Ao chegar ao solo, bate fortemente a cabeça e vem a falecer.

O pai sai do quarto nu em busca do filho e ao ver que estava morto, fica abraçado com ele até a chegada da ambulância e da polícia. Responde as perguntas do policial, sem nada esconder, mas houve uma pergunta para a qual não teve resposta para fornecer ao policial: para onde teria ido a sua amante, a qual abandonou o local, logo após o acidente. Ao chegar em casa, encontra a esposa toda machucada e ela lhe responde que a dor era tanta que havia batido em si própria. Ela chega a tirar a roupa na frente dele, lhe perguntando se aquilo para ele, não havia sido o bastante. E numa curiosa afirmação lhe diz que cada pessoa tem só um amor na vida e que o dela tinha sido o seu filho, agora morto e, que o dele, marido havia sido a amante e quem será que tinha sido o amor da amante?

Aqui, podemos notar a verbalização sobre a existência de uma escolha de objeto de uma mãe em relação a seu filho ou, em outras palavras, objetivando a utilização de uma terminologia mais técnica, de uma catexia libidinal, de um investimento libidinal da mãe, em relação ao filho. Este fato nos parece ter sido recíproco, uma vez que o filho chegou a declarar em alguns momentos que, se havia sentido algo nocivo a ele, na relação familiar, aquilo tinha vindo pela vertente do pai, deixando a mãe isenta de qualquer crítica. Ao separar-se da esposa, ele vai na direção à casa da mãe da amante e pergunta por ela. A mãe dela lhe diz que tentou avisá-lo, o que o fez realmente e quando ele já estava indo embora, volta e diz que acha que a amante está lá. Ao abrir a porta do quarto, realmente ela estava lá e eles apenas se olham detidamente.

Finalmente, ele pede demissão do cargo de ministro de Estado e, na última cena o vemos andando, aparentemente, em outra localidade geográfica, acabando por chegar num quarto, algo parecido com uma pensão. Coloca-se sentado em uma cadeira, tendo na parede em frente a ele, a ampliação de uma foto que o filho lhe dera e onde estava a amante, ladeada por ele e pelo filho. Se nos ativermos por alguns momentos, naquilo que Freud, insistentemente, declarou como sendo o núcleo central de toda neurose, a saber, a conflitiva edípica ou mais propriamente o Complexo de Édipo, podemos notar que no filme em questão, conseguimos abordar essa conflitiva sob vários aspectos, na verdade de maneira multifacetada. De um lado, na família do ministro, havia uma opção declarada por parte da mãe, em relação ao filho, em detrimento da filha, bem mais nova. Na família da personagem principal da trama, uma relação profundamente incestuosa entre ela e o irmão, a qual fica significada sobremaneira, pela quase declarada anuência da mãe dela frente a esse estado de coisas. Uma transferência erótica por parte dela em relação ao namorado, o qual possuía uma grande semelhança física com relação a seu irmão morto, morte essa que foi o mesmo destino do namorado. Uma mera coincidência?

Nada foi dito, ao longo da trama sobre o pai da personagem, o que nos permite levantar a hipótese de que sua escolha em relação a um homem mais velho poderia ter ocorrido também na vertente da busca por um pai. Só que um pai com um plus, ou seja, um pai-amante. Mas não seria essa a situação nuclear que estaria na base da conflitiva edípica, onde a menina estaria na busca de um pai amante, obviamente no sentido simbólico e não real. Claro que essas considerações não esgotam as possibilidades de análise do filme, desde a ótica do Complexo de Édipo, isso para nos atermos a uma análise só desde este prisma. Na verdade, esse filme acaba nos brindando como uma encenação de um tipo muito comum no tocante às relações humanas, sobretudo as familiares.

Queremos deixar algumas portas abertas para que, em um outro momento, se possa voltar a esse trabalho, e falarmos por exemplo, sobre o poder político entendido no sentido fálico, dos matizes histéricos pertinentes à personagem principal, da onipotência enquanto defesa, da problemática expressa em termos de fálico versus castrado, na relação entre o ministro e a sua esposa, por exemplo, da relação de ambivalência afetiva entre pais e filhos, dramatizada pela relação entre o político e seu filho, bem como da amante com a sua própria mãe, de uma rivalidade fraterna, não explícita, porém implícita entre os irmãos, da tentativa de negação das possibilidades do filho construir uma relação, que não fosse apenas transar com as namoradas, como o contraponto da sua relação, aparentemente falida, mas sem que fosse admitida entre ele e a esposa, etc.

O título do filme nos parece extremamente bem escolhido, uma vez que ele é inerente às relações humanas, quer seja do ponto de vista inter, como intrasubjetivo, ou seja, não existe nenhuma possibilidade de ganho, sem que este implique em perdas. A criança que começa a andar ganha a liberdade para ir atrás da bola do outro lado da sala, mas em contrapartida perde o colo. Devo confessar que encerro esta primeira aproximação do filme em questão, ficando com uma curiosidade em aberto. Como teriam sido o pai da personagem, sua relação com a mãe dela, bem como sobre as características de personalidade do irmão dela que acabou por se suicidar. Contudo, aqui só podemos fazer hipóteses, uma vez que não se tem como saber. O que não é de todo mau, uma vez que nos incita a refletir, a criarmos hipóteses, enfim, a desenvolver um raciocínio clínico.

Trata-se de um desafio no melhor sentido do termo, e são desafios iguais ou maiores do que este, com os quais temos que lidar em nossa clínica do dia a dia. Muito embora tenha me esmerado ao máximo, para percorrer um fio condutor que percorre toda a trama, quero recomendar que os leitores deste trabalho assistam ao filme e que possam se permitir serem tocados pelas situações nele apresentadas. Tenho a certeza de que será uma viagem muito interessante.                                              

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