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Psicanálise – Para o Nosso Tempo

Como colocá-la em um mundo febrilmente acelerado, onde as emoções não são exatamente uma prioridade, onde o tempo é ontem e o porvir chega a ser desnecessário? Como instrumentar um método que prescreve tão-somente uma técnica? O que é atual em sua prática e quais serão as reformulações necessárias?

Desde a perspectiva metodológica, acredita-se que a Psicanálise continua totalmente pertinente, porque tudo aquilo que lhe serviu de fundamento fala, na verdade, do que descreve a nós, humanos, enquanto essência e como seres pulsionais. Mas é correto dizermos também que ela é, à toda hora, “acusada” de não ser ciência ou, ainda, de parecer muitas vezes tomar o lugar da fé, ocupado antes pela religião. Sabemos que entre a psicanálise e as outras ciências há um profundo corte epistemológico, o que, muitas vezes, provoca nos observadores a angústia ante o desconhecido, a incapacidade de situá-la em modelos científicos muito específicos, talvez limitados e/ou limitantes. Seria tal a sua busca ? Ou isso não passa de um grande equívoco plantado pelas mentes reducionistas dos que postulam os fundamentos da ciência positivista, eivadas pelo rigor epistemológico que não percebe a ciência da dialética como leitura apropriada de seu objeto de estudo, enquanto corte profundos e revolucionários, inclusive na formulação do que seja ciência?

Diz Marie Langer (in “Questionamos à Psicanálise e suas instituições”):

“Freud e Marx descobriram igualmente, por detrás de uma realidade aparente, as verdadeiras forças que nos governam: Freud, o inconsciente; Marx, a luta de classes”.

O excepcional constructo teórico formulado por Freud impôs ao mundo mudanças não somente em suas grandes questões de saúde psíquica, mas também em tudo aquilo que o constrói mediante atos cotidianos, na intimidade dos lares, na construção das relações mais próximas e mais significativas. Sua contribuição legou, inclusive, evolução para a ciência da Psicologia, destacando-lhe um lugar privilegiado na compreensão dos fenômenos que envolvem o comportamento humano.

Luiz Alfredo Garcia-Roza afirma, em seu livro “Introdução à Metapsicologia Freudiana”, vol II:

"A bruxa metapsicologia: é desta forma que Freud se refere à metapsicologia. A Bruxa, a feiticeira. E Freud, mais do que ninguém, acreditava na bruxa, posto que ela existe. Em um sentido mais amplo, o termo metapsicologia designa o conjunto da elaboração teórica de Freud, a produção de modelos conceituais afastados da experiência, ficções teóricas a partir das quais a própria experiência é radicalmente transformada”.

Estamos aqui empreendendo a tentativa de refletir sobre o que há de mais revolucionário no interior da Psicanálise, trazer à luz a reflexão sobre sua grande capacidade de transmutar seus objetos em outros, seus alvos modificados e modificadores.

Percebe-se hoje uma linha marcadamente reducionista no seio da própria Psicanálise, que pretende conduzi-la a um movimento unívoco, negando-lhe justamente sua marca de maior relevância : a possibilidade de leitura que abrange tudo o que respeita ao humano. Guardando-a em postulações únicas e cartéis fixos e fechados em si mesmos, como uma matemática pretensamente exata do absurdo humano.

Como tendência reducionista, tão antiga quanto a própria psicanálise, vejam o que escreve A da Silva Mello, um dos médicos que teve participação bastante ativa nos primórdios da divulgação da Psicanálise no Brasil, em sua obra “Ilusões da Psicanálise”:

"Não é demais repetir que se encontra isso em desacordo com tudo que à ciência cumpre estabelecer, havendo sido o próprio Freud o primeiro a modificar as suas hipóteses no sentido de melhorá-las ou aperfeiçoá-las. O caráter de sectarismo e o ritual para os discípulos têm muito das seitas religiosas: a mesma intolerância, as mesmas fronteiras fechadas, o mesmo 'noli me tangee', que constitui ao mesmo tempo a sua força e a sua fraqueza”.

Se devemos nos precaver ante propostas irresponsáveis e um tanto esotéricas que tentam agregar-se (integrar-se – integrativas) à Psicanálise e também à Psicologia, por outro lado, devemos temer com igual rigor a tendência a fechar-se em si mesma, negando-se arbitrariamente a empreender novos estudos e a colocar em teste suas afirmações teóricas. Há um caminho do meio, um caminho de equilíbrio – com certeza ele existe, devemos abrir nossas mentes para novas modificações e manter o bom-senso para afastar tudo que não cabe dentro desta, enquanto reconhecível por seu método. Este, nosso orientador, que deverá necessariamente nos guiar como uma bússola guia o navegante em sua jornada. Igualmente poderá dizer-se que fará a Psicologia e suas diferentes linhas científicas de abordagem. Questionar, mudar, atualizar-se, evoluir em suas proposições teóricas e técnicas, como costuma empreender toda ciência madura. Uma homenagem à bruxa, à qual Sigmund Freud se referiu – que, embora ciência, a realiza quase que de forma mágica. Desprezamos a falta de seriedade no trato do tema, assim como entendemos necessário evitar o sectarismo autoritário.

Talvez possamos pensá-la dentro desse aspecto abordado pelo psicanalista Luiz Alfredo Garcia-Roza (“Introdução a Metapsicologia freudiana”, vol I):

"Trata-se, ao contrário, de introduzi-lo na metapsicologia freudiana, isto é, de juntos freqüentarmos a cozinha da bruxa".

E, a partir desse novo questionamento, é que vem surgindo a dúvida a respeito da validade do uso da psicanálise no mundo atual, tão conturbado, violento, apressado, esquizóide, desligado de suas emoções, essa validade deverá então, estar representada em sua prática de forma indelével. Nesse perfil social que traçamos entre o fast-food e o descartável, como inscrever um modelo metodológico de intervenção que requer reflexão e uso de um longo período de tempo? Estaria a Psicanálise condenada ao esquecimento e ao sarcasmo social? Transformada apenas em alvo de chistes e ironias? Tão importante em seu aparecimento e vítima de seu método que apesar disso inscreveu para sempre uma nova ordem familiar/social?

São questões sobre as quais alguns dedicados pesquisadores vêm debruçado-se, objetivando compreender e avançar em suas tentativas de reinscrever a teoria psicanalítica em um modelo científico que a perpetue como possibilidade de intervenção e não como a um modelo histórico ultrapassado. Longo é o caminho a ser percorrido em tal sentido, mas pensamos que, nesse momento, uma das questões prioritárias diz respeito ao debate sobre a esterilização que a Psicanálise vem sofrendo em seus conceitos mais revolucionários. Revê-los e refletir sobre sua validade frente ao sujeito psíquico inserido nessa tal pós-modernidade. Tarefa essa nada fácil de empreender, contudo acreditamos que valerá o risco.

A Psicanálise vem sendo capturada pelo discurso social e está se transformando, paulatinamente, em algo muito semelhante ao que S. Freud descreveu em seu artigo intitulado "Psicanálise Silvestre", de 1910 (Obras completas – Imago – vol XI). Uma das principais causas da pauperização de sua teoria decorre da forma como se dá sua transmissão aos seus novos adeptos. Seguindo a tendência social, cada dia mais se reduzem os requisitos para a Formação do psicanalista. Não é de todo improvável que, num breve futuro, possamos assistir ao golpe de graça que determinará seu falecimento mediante a “ministração” de cursos rápidos via caixa postal. E isso não é um chiste; antes, coloca-se como uma triste constatação de que a categoria dos psicanalistas trancou-se amedrontada em seus guetos, recusando-se a lidar com um real que está dilacerando e matando aos poucos o saber psicanalítico no que tange a compreensão coletiva quanto aos seus postulados. Cuidamos com rigor das apresentações em modelo acadêmico e científico e a deixamos ao sabor de feras devoradoras no restante de nossa realidade. Haja vista, por exemplo, o que tem sido feito dela nos novos meios de comunicação ou no modelo páginas de Internet – se, por um lado, um espaço democrático de pensamento, por outro, um campo fértil para a propagação de equívocos. E o que dizer das formações oferecidas? Cartéis empobrecidos defendendo a aplicação parcial de conceitos, de acordo com o interesse logístico da linha escolhida, sem rigor quanto ao importante aprendizado teórico necessário para o manuseio do método e técnica à ela relacionados. Se sem divã não se tem um psicanalista, sem conhecimento teórico mais dificilmente o formaremos. E o conhecimento ao qual nos referimos inaugura-se, necessariamente, na obra de Sigmund Freud.

Que proposta poderia construir-se em contraposição à essa tendência? Como resguardar sua utilização face ao avanço desenfreado daqueles que a querem usar como um produto de consumo ou meros caça-níqueis? As Instituições criadas por Freud diante dessa preocupação há muito se afastaram de tal função, trancadas em um elitismo e um isolamento suicida. Rigor científico e transmissão de seu saber são questões cruciais que, hoje, nos são colocadas. Como não perdermos esse espaço tão necessário de propagação popular de seu saber e, ao mesmo tempo, não desfigurá-la por completo, vulgarizando-a em tal inserção? Questões urgentes que demandam que iniciemos a responder.

Por outro lado, teremos ainda o grande desafio de transformar sua possibilidade técnica em algo mais diversificado e que corresponda ao que, na realidade, já está sendo operado por muitos psicanalistas atuantes. Pouco ou nada se fala a respeito. A produção de textos nessa linha da pesquisa técnica é incipiente perante a necessidade que se impõe. Não abordamos quase nada em variações da técnica freudiana, ou mesmo da utilização de técnicas importadas de outras correntes e que podem ser utilizadas confortavelmente aliadas à leitura da psicanálise e responsavelmente dirigida por um psicanalista durante o percurso de uma análise. Falaremos muito e sempre dessas questões nos textos dessa coluna, como forma de suscitar perguntas, e não como uma tentativa de respondê-las – coisa que é tarefa de muitos.

"Sua obra, Sigmund Freud a construiu não medindo os astros, os crânios ou os grandes fluxos econômicos, mas escutando o inaudível, o vergonhoso e o incoerente dos seres humanos. E, em primeiro lugar, de si mesmo. Inventou uma obra teórica a partir de sua própria intimidade. Como um poeta ou um romancista, ele fala da trama de seus dias e de suas noites, de tudo que é geralmente considerado” insignificante “e aí procura, sabendo as pistas de um outro mundo cuja hipótese ele cria: a realidade psíquica, a realidade do inconsciente (…)” (A vida cotidiana de Freud e seus pacientes – Lydia Flem)


*No próximo texto abordaremos a conceituação de alguns mecanismos teóricos e técnicos; e, dentre eles, os principais “Mecanismos de Defesa do Ego”.

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