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É preciso crer, para ver

Contrariando o dito popular conhecido como o "teste de São Tomé", isto é, é preciso ver para crer, podemos dizer que desde um ponto de vista psicanalítico, o que ocorre é que é preciso crer para ver.

Pretendo com essa abordagem, desenvolver um olhar sob a ótica da psicanálise sobre certas crendices populares, fomentadas culturalmente há décadas e décadas.

 Quando alguém se propõe a procurar uma cigana para leitura das mãos, uma leitora de cartas para desvendar o destino que terá pela frente, uma vidente que lhe falará sobre o seu porvir, notará em todos esses casos, que as pessoas, em questão, só o fazem num tipo de estado dissociado de consciência, o que significa que já se encontram pré-dispostas a ouvir tudo aquilo que lhes será dito por essas "mentes brilhantes" e poderosas, que tem uma linha direta com o além.

O mecanismo psíquico que embasa tais condutas é a idealização, a qual seria um denominador comum em todas essas "buscas".

Nesse tipo de mecanismo, o sujeito atribui ao outro um poder, do qual o outro, a partir de agora ficará investido para este sujeito, sendo que suas palavras serão como que sentenças inquestionáveis e não passíveis de qualquer crítica.

Trata-se aqui daquilo que Freud atribuiu ao estado de enamoramento, onde o enamorado ficaria num estado de empobrecimento do ponto de vista libidinal, uma vez que um quantum dessa energia seria investido no objeto amado. Daí, a existência da máxima psicanalítica, onde as libidos de ego e de objeto ocorreriam numa relação inversamente proporcional, isto é, quanto maior a libido de objeto, menor é a libido de ego e vice-versa.

Algo muito próximo desse fenômeno ocorreria quando atribuímos a alguém o poder de saber mais de nossas vidas do que nós mesmos. Fenômeno similar encontraremos na situação analítica, a qual, numa terminologia lacaniana, por exemplo, poderemos dizer que o analisando coloca o analista no lugar do Sujeito Suposto Saber, o que acabaria por criar uma condição sine qua non para o estabelecimento do processo transferencial.

Aqui temos a oportunidade de observar uma relação de poder nos seus aspectos político-sociais.  Wilhelm Reich discorre brilhantemente sobre esses fenômenos em seu trabalho "Materialismo Dialético e Psicanálise" (versão em espanhol, já que desconheço a existência de uma tradução para o português).

Mas, o que me importa aqui colocar como questão é que tipo de movimento humano é esse que nos faz atribuir a um semelhante um poder maior sobre nossas vidas do que nós mesmos, que, aliás temos sobre ela a escritura definitiva e intransferível? Na eleição dos nossos líderes políticos e religiosos, podemos constatar com todas as nuances a existência desse fenômeno. Recordo-me perfeitamente, e acredito que isso deva estar fresco na memória de muitos, a eleição do presidente da República, o Sr. Tancredo Neves, o qual não chegou a assumir, tendo falecido pouco tempo antes da posse.

Aquela ocorrência tomou vulto de comoção nacional, uma vez que foram depositadas nele todas as fichas, uma espécie de eleição daquele que seria o "Salvador da Pátria". Com a sua morte pudemos notar a prevalência de um sentimento quase que de orfandade nacional.

É sabido pelos estudiosos em Sociologia, que os grandes movimentos populares legítimos acabam não atingindo seus objetivos quando as pessoas delegam a sua defesa para um procurador, o qual não faz parte do movimento, enfraquecendo-o, conseqüentemente, por não estar implicado nos montantes afetivos e intelectuais que os originaram.

Um procurador, por mais que possa empatizar com a causa, não faz parte dela originariamente. Mas, o que verificamos, na verdade, é que as pessoas acabam por achar que os seus representantes invariavelmente farão melhor do que elas próprias.

É claro que aqui, não estou me referindo às questões de ordem técnica, como por exemplo, no caso de um advogado que possa ser consultado no quesito dos trâmites legais para essa ou aquela ação, mas me refiro, isso sim, à singularidade dos sentimentos envolvidos nas questões, que não podem ser repassados ou transferidos para quem tenha o domínio da técnica.

Aqueles que como eu se dedica à psicanálise clínica, sabem perfeitamente que quase invariavelmente aqueles que nos consultam, nos atribuem todo um conhecimento sobre eles, o qual a priori não possuímos, se isentando de qualquer responsabilidade ou implicação naquilo que poderiam e teriam a dizer sobre si mesmos.

Esbarramos aqui no modelo médico, ou melhor, em quase   numa desubjetivação do paciente, delegando ao médico-analista, todas as orientações sobre as melhores condutas a serem tomadas, só que sobre as suas vidas.

Os pacientes transformam-se quase que em "pacotes", os quais serão manipulados pelos mais diversos profissionais de saúde. Imaginemos um paciente que necessite de uma cirurgia. Faz todos os exames pré-operatórios e, no momento da cirurgia, tem que fazer uma entrega de si mesmo aos cuidados da equipe cirúrgica. Receberá uma anestesia geral e a equipe fará todas as manipulações que se fizerem necessárias para a cura do paciente.

Aqui me refiro a este estado de "anestesia", sem que tenha sido anestesiado a que muitos pacientes se entregam, deixando implícita e, muitas vezes, até explícita a mensagem: "Você que sabe sobre mim, faça tudo o que for necessário para a minha cura".

É a essa forma de viver "anestesiado", sem estar, que se propõe esse trabalho. Quando pensamos no uso e abuso das medicações psiquiátricas, nota-se que as mesmas, bem como seus prescritores, só vêm a contribuir para a manutenção desse estado de coisas. Lembro-me de uma paciente em análise a qual me dizia que se quisesse simplesmente ficar de bom humor, bastaria tomar a medicação "X", à qual chamava de pílula da felicidade, mas que entendia que tão logo parasse de tomar, tudo voltaria à estaca zero e que por isso mesmo havia procurado uma análise para entender o significado dos seus conflitos mais íntimos.

Contudo, o que se verifica é que essa fala do tipo que fora proferida por esta paciente vai ficando cada vez mais rara, até porque os próprios médicos, com raras e honrosas exceções, sejam de que especialidade for, prescrevem toneladas de medicações antidepressivas e ansiolíticas, visando uma melhora imediatista das condições do paciente, e visando também conseguir um marketing pessoal perante o paciente e seus familiares ao conseguir, de forma relativamente rápida, uma melhora do estado geral do paciente, melhora essa, que em termos de tempo, uma abordagem psicoterápica poderia perder de longe.

Contudo, penso que o que deve ser observado é a artificialidade dessa proposta, se constituindo, muitas vezes, numa compra e venda de ilusões, bem como na manutenção desse estado anestésico, o qual impossibilita o sujeito de entrar em contato com seus próprios sentimentos e emoções, o que certamente poderia lhe facultar um maior conhecimento e aproveitamento de suas potencialidades humanas.

É notória, na história da humanidade, a situação onde um pesquisador ministra uma medicação para um grupo e placebo para outro, e que consegue obter resultados muito próximos entre os dois grupos, o que vem só ratificar a idéia de que "se você crer, então você verá". Fazem aqui tomar vulto o caráter de sugestionabilidade do ser humano, sobre o qual, os hipnólogos de plantão, deitam e rolam, dando verdadeiros shows na televisão, lotando platéias pelo mundo afora.

A título de obtenção de um rigor técnico na utilização da terminologia, vou me valer aqui da definição, contida no Vocabulário de Psicanálise, obra conjunta de Jean Laplanche e J-B Pontalis, obra de referência obrigatória para o estudo da Psicanálise. Dizem os autores sobre o mecanismo da idealização: "Processo psíquico pelo qual, as qualidades e o valor do objeto são levados à perfeição. A identificação com o objeto idealizado contribui para a formação e para o enriquecimento das chamadas instâncias ideais da pessoa (ego ideal, ideal de ego)".

Deixo aqui registrados estes termos e a referência bibliográfica acima citada, para aqueles que tenham um interesse num aprofundamento maior sobre essas questões.

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