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Delírio Sensitivo-Paranóide de Auto Referência

A questão de uns cinco anos atrás, recebi um encaminhamento de uma ex-aluna da faculdade, me solicitando urgência para que eu visse um rapaz, o qual vinha a ser irmão de uma grande amiga sua. Esse rapaz morava em uma cidade do interior de São Paulo e, realmente ligou para marcar um horário. Pela urgência a mim solicitada, procurei marcar para o mais breve possível, o que veio a ocorrer depois de uns dois dias.

Me solicitou o primeiro horário da manhã, uma vez que depois do nosso encontro, ele teria que voltar para a sua cidade, porque  tinha compromissos de ordem profissional. Chega pontualmente no horário marcado, senta-se e me diz que o que o havia trazido até mim, era o fato de que tinha uns trinta e cinco anos e, que mais ou menos depois dos cinco anos de idade, começou a achar que cheirava profundamente mal.

Agregou que não estava mais aguentando conviver com essa situação e que, na verdade não sabia mais o que fazer, já tendo chegado até a pensar em "fazer uma besteira". Lhe perguntei sobre as providências que já havia tomado em relação a essa situação , ao que me respondeu que a vida toda vinha passando por médicos de todas as especialidades que eu pudesse imaginar, tendo inclusive ele próprio perguntado a vários médicos se não seria importante que ele pudesse estar consultando um psicólogo. Me disse que todos acharam que isso não se fazia necessário, e que parecia se tratar de algum distúrbio relacionado às glândulas sudoríparas. Trás uma lembrança , ainda do tempo da pré escola, onde invariávelmente percebia que a menina que se sentava atrás dele, ficava se abanando com o caderno, o que para ele lhe dava a certeza de que ele estaria cheirando muito mal.

Para piorar a situação, sua atividade profissional lhe demandava à manipulação de carnes, frangos ,  etc, os quais eram vendidos em seu comércio. Referiu-se sobre a sua impossibilidade de poder convidar uma môça para irem ao cinema, uma vez que "sabia" que ela não iria agüentar o seu mal cheiro. Quando saia de casa e se dirigia para o trabalho, se quando lá chegasse, encontrasse pessoas na porta de seu comércio e conversando , tinha a plena convicção de que , quando ele se aproximasse, eles iriam parar de falar em função de seu mal cheiro.  Se alguém, por ventura coçasse o nariz quando estivesse próximo a ele, ocorria a certeza imediata que era para disfarçar, por não estar agüentando o seu cheiro. As vezes pensava que poderia gostar de ir pescar com alguns conhecidos, sim porque amigos ele não tinha. Em seguida desistia da idéia, por achar que , em lá chegando eles não aguentariam o seu mal cheiro.

Esse estado de coisas se repetia quando tinha que enfrentar uma fila de banco, para tratar das finanças de seu negócio. Era só alguém se abanar que ele chegava muitas vezes a ir embora, procurando voltar numa hora de movimento menor. Fez referência a um fato , a meu ver de substancial importância: a única pessoa que ele tinha certeza de que não sentia o seu mal cheiro, era a sua mãe, com quem aliás morava. Já não tinha mais pai e seus irmãos estavam "espalhados" por aí.

Exatamente nesse momento, me surgiu a idéia de lhe perguntar como é que ele estava se sentindo ali comigo, ao que me respondeu que curiosamente , não estava tendo a sensação de que eu estivesse sentindo o seu mal cheiro. Podemos notar que , mesmo me oferecendo uma resposta negativa, reafirma a existência do seu mal cheiro.

Eu tinha, então, diante de mim alguém que me referia toda uma vida de sofrimento e que me dizia que já tinha até pensado em fazer "alguma besteira". Sua expressão era a de quem, mais do que desesperado, estava absolutamente desesperançado quanto a qualquer possibilidade de resolução de seu problema, até porque como me havia afirmado, já havia feito toda uma verdadeira romaria, indo de médico em médico. Me disse também que chegou a ficar feliz quando a sua irmã lhe ligou, uma vez que havia conversado com a amiga psicóloga, minha ex-aluna, e que esta lhe havia indicado para que viesse falar comigo.

Reiterou que por várias vezes ele mesmo havia sugerido isso aos médicos, mas que uma vez que eles não concordaram e, não tendo ele nenhuma referência de profissionais da área, acabou não procurando por ninguém até então.

Depois de tê-lo ouvido por mais ou menos uma meia hora, ficou claro prá mim que de nada adiantaria prolongar aquele nosso encontro, uma vez que eu tinha diante de mim , alguém que precisava ser medicado e, que essa medicação já estava atrasada uns trinta anos!. Muito bem, perguntei a ele se ele dispunha de condições de marcar uma consulta particular com um médico que eu lhe indicaria. Me disse que sim, que apesar de não ter uma situação financeira muito favorável devido a grande concorrência que os supermercados da região tinham imposto ao seu negócio, mas que daria para tomar essa providência. Expliquei a ele que essa consulta se fazia necessária, uma vez que ele estaria com a sua percepção alterada e, que depois de tanto sofrimento se impunha que pudéssemos tratar disso de forma adequada. Disse a ele também que eu iria querer continuar a vê-lo, mas que naquele momento se impunha mais a urgência da consulta e da instituição da medicação adequada, a qual eu tinha claro que seria da família dos neurolépticos ou anti-psicóticos.

A reação dele foi de alguém que parecia ter tirado um enorme peso das costas, no sentido de que alguém, finalmente, parecia que havia entendido do que ele precisava. Assim nos despedimos e ele foi então à sua consulta médica-psiquiátrica. O amigo a quem indiquei esse paciente, me ligou logo após tê-lo visto, me dizendo que lhe havia medicado e marcado um retorno para dali a uns quinze dias. Foi ele que me deu como diagnóstico, o título desse artigo.

Voltei a ver o paciente na semana seguinte, o qual embora tivesse inalterada à sua percepção delirante, pelo menos me pareceu mais calmo e confiante. Procurei ouví-lo sem grandes expectativas de grandes revelações, uma vez que para mim estava bastante claro, que ele estava plenamente envolvido com a sua problemática, pela qual tinha vindo me procurar . Tive a oportunidade de vê-lo por mais ou menos mais um mês e foi quando ele me disse que estava ficando muito cansativo comparecer, uma vez que tinha que sair da sua cidade na noite anterior à sessão, viajar por umas quatro horas de carro, dormir na casa da irmã, vir à sessão e retornar para a sua cidade logo após.

Me disse inclusive que , quase havia se metido num grave acidente por ter "cochilado" no volante. Estando eu sabendo de que estava fazendo uso de uma medicação muito apropriada, porém "pesada", e reconhecendo que realmente para aí estar tinha que desenvolver uma atitude muito fatigante, lhe propus que se tivéssemos que escolher entre o uso da medicação e a sua freqüência num processo de análise, que eu lhe estava indicando que, de forma alguma parasse com a medicação e com o controle psiquiátrico, mas que quanto a mim, eu me colocava à sua disposição para um contato futuro. Lhe sugerí também , que pudesse se informar na sua cidade sobre clínicas ou mesmo profissionais que pudessem lhe proporcionar um acompanhamento psicoterápico. Passado um tempo, ao encontrar com o profissional para quem eu o havia indicado e, tendo eu perguntado por ele, este me disse que o havia visto recentemente e que ele já tinha conseguido ir pescar com alguns conhecidos e que continuava vir , de tempos em tempos, para fazer um acompanhamento psiquiátrico. Me tranqüilizou no sentido de ter me assegurado que as idéias delirantes estavam já bem menos intensas, bem como bem mais espaçadas, o que vinha lhe possibilitando a abertura para o que seria uma vida social, a qual era inexistente até então.

Eu, particularmente nunca mais ví o paciente, mas pude ficar com a sensação do dever cumprido, uma vez que pude ser sensível ao seu sofrimento interminável, e pude encaminhar a situação de maneira feliz. Sempre que me lembro desse paciente, como agora que escrevo esse texto, continuo me perguntando: por que será que tendo ele mesmo sugerido a vários médicos, a importância de que pudesse procurar um psicólogo, todos , sem exceção lhe fecharam essa porta, insistindo sempre em exames mirabolantes, cada vez mais específicos e que não chegavam a absolutamente nada? Mesmo que não acreditassem na importância de uma abordagem psicoterápica, o que revela uma extremada "miopia", em termos de um diagnóstico diferencial, que mal essa procura poderia fazer ao paciente?

Não é tão infrequente, na clínica, que o paciente traga o seu sofrimento, mas que traga também alguns indícios de caminhos por onde devemos percorrer em busca de alguma luz para os seus problemas. Lembremos que foi o famoso caso de Anna O. ( Elisabeth Papenheim), paciente de Freud, a qual teria lhe dito algo mais ou menos assim: " Caro doutor, por que não deixa que eu lhe fale sobre aquilo que eu quiser?" Freud,como um homem de ciência, sempre muito atento aos detalhes, como também o foi Alexander Fleming, na descoberta da penicilina, afastou simplesmente a sua cadeira e se propôs a ouvir aquilo que a paciente tinha a lhe dizer. Criava-se, assim, o método da associação livre.

Deixo aqui registrada a minha enorme satisfação em saber que aquele paciente, que para todos, segundo ele, cheirava mal, pôde ao longo do tempo, se permitir sentir de sí próprio e das outras pessoas, bem com o da natureza, o cheiro da vida na sua plenitude, as vezes mais gostoso, as vezes menos, mas ainda assim, o cheiro da vida !

One thought on “Delírio Sensitivo-Paranóide de Auto Referência”

  1. Muito bom, adorei o texto, podemos refletir quantas pessoas passam por situações iguais ou semelhantes? Qntos casos, N motivos, qntos trasntornos, qntas vidas que acabam sofrendo por não terem a ajuda de um profissional humanizado, ou alguém que tenha um olhar holístico que possa acolhe-las e direcioná-las quando necessário. É lamentável, perturbador e até exasperante pensar que pessoas sofrem por egoismo e falta de humanização. Penso que os profissionais de saúde deveriam ter um olhar mais cuidadoso com a saúde mental de seus clientes. Aquele ditado clichê, porém de grande valia: Qndo a mente não pensa, o corpo padece!

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