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Sua Majestade – O bebê

Em "Introdução ao Narcisismo", trabalho de Freud de 1914, o autor se refere à criança como sendo "his majesty – the baby". O que me proponho no desenvolvimento deste artigo, é que possamos refletir sobre essa afirmação, tendo como pano de fundo a contemporaneidade.

Se fizermos uma volta ao tempo em que esse trabalho foi escrito por Freud, império austro-húngaro, início do século passado, poder-se-á fazer uma comparação entre aquela época e os dias atuais. O modelo onde os casais se dividiam entre as tarefas do trabalho profissional, que ficava a cargo do marido, e os afazeres domésticos, dos quais se encarregava a esposa, além do cuidado com os filhos.

No filme "Freud, além da alma", onde Montgomery Cliff interpreta Freud magistralmente, podemos ouvir a esposa de Freud, Marta Bernays perguntar ao seu marido, ainda pouco ilustre, se ele era o único médico em Viena a falar daquela forma com suas pacientes, ao que Freud responde que muito provavelmente sim. Esse episódio ocorre, uma vez que Freud adentra a seu escritório de trabalho e surpreende a sua esposa lendo as suas anotações.

Constituíam um casal de classe média, onde a divisão de tarefas que mencionei acima ficava bem evidenciada. Freud trabalhava muito, e sempre teve a preocupação de não conseguir dar a Marta aquilo que na sua fantasia, ele achava que lhe faria bem. Com um início de carreira profissional muito árduo, teve por vezes que contar com a ajuda de Joseph Breuer, o qual, mais velho, era amigo de seu pai e que tinha prometido a este, no seu leito de morte, que ajudaria ao seu filho. Aliás, esta "ajuda" acaba por ficar formalizada em "Estudos sobre a Histeria".

Pois bem, pousando um pouco a nossa nave de viagem no tempo, nos nossos dias atuais, tentaremos nos posicionar, sendo necessário para isso, que possamos calibrar as nossas lentes para podermos visualizar a realidade atual. Afinal, estamos falando de apenas cento e poucos anos!  O homem continua saindo de casa para trabalhar, mas a novidade, e sei que nem mais se trata de uma novidade, é que a mulher passou a sair em busca do mercado de trabalho também.

Na grande maioria dos casais notamos que ambos trabalham fora e que têm que providenciar alguém para se ocupar da ou das crianças da família, acabando por sobrar muito pouco tempo para os próprios pais estarem com os seus filhos.

Contudo, como meu interesse aqui é falar prioritariamente dos filhos e, mais especificamente, da tal condição de "sua majestade – o bebê", o que podemos notar é que quanto mais esse bebê vai crescendo, mais acaba por ver o seu "trono" colocado em risco. "Trono" fantasmático, o qual está inserido num "reinado" mais fantasmático ainda. E, quantos "tronos fantasmáticos" foram se sucedendo, para que chegássemos nesse "reinado atual"?

Ou seja, por quanto tempo o homem tem vivido esse engodo originário? Engodo esse que vem sendo transmitido, gerações após gerações, e a pergunta que nesse momento não quer calar é: seria possível quebrarmos o elo dessa cadeia, impossibilitando a sua perpetuação, ou pelo menos diminuindo em muito, os seus efeitos deletérios?

Em um outro trabalho de peso, "Totem e Tabu", Freud analisa, nas sociedades primitivas, o "banquete totêmico", assim como a fantasia de incorporação do "pai da horda primitiva", o qual, aos olhos dos filhos, era o detentor de todas as mulheres da tribo. Toda essa abordagem analítica tinha como objetivo, entre outras coisas, enfocar a "lei da proibição do incesto", a qual seria central para a análise da conflitiva edípica.

Ainda em sua obra, Freud tem a oportunidade de nos chamar a atenção para o fato de que o pai que propaga a lei da proibição do incesto, não o faz por uma arbitrariedade, mas sim por ser, ele também, nada mais, nada menos, do que um "porta-voz da cultura". Essas considerações nos levariam à análise dos conceitos de endogamia, exogamia, etc.

Notamos que, cada vez mais, se enfocarmos os nossos jovens, esses demoram  mais para sair da casa dos pais e aqui seria um grave erro interpretarmos esse fato, apenas como uma dificuldade dos mesmos em partir para a exogamia, por questões referentes à manutenção de uma endogamia edípica. Há que se levar em conta as dificuldades sócio-econômicas, as quais perpetuam quase que indefinidamente um modelo perverso de tratamento da subjetividade humana.

Mas, onde foi parar  "o nosso bebê"? Será que teríamos nos esquecido dele? Para mim, a resposta é não! O que me parece ter ocorrido, é que o bebê, que,  sendo cada vez mais "esquecido", foi o "bebê-majestade", assim como acabou quase que esquecida, a "família real", da qual o "bebê-majestade" foi oriundo. Se tomarmos, sobretudo, as famílias menos abastadas nos pareceriam que essa "imagística da realeza", caberia no máximo em livros de contos de fada para o entretenimento das crianças, às quais já, na sua realidade cotidiana, levam uma vida extremamente longe da mesma.

Como um último aspecto que eu gostaria de abordar nesse trabalho, enfoco a "agenda" das crianças. Em um completo antagonismo com a situação da realeza, onde os nobres se dedicavam ao seu próprio deleite, notamos que as crianças de hoje acabam tendo uma agenda a cumprir quase que comparável a de um "executivo", não sobrando quase tempo para o seu deleite.

Os pais trabalhando cada vez mais, acabam entendendo que estão fazendo o melhor para os seus filhos. Mas, aqui cabe a pergunta: melhor para quem mesmo? Para os pais, só numa camada mais rasa de análise! Para os filhos, numa camada mais rasa quanto a dos pais. Mas, então isso tudo interessa a quem mesmo? À manutenção de uma sociedade de consumo transtornada cada vez mais no sentido de um consumismo que só interessa aos detentores do poder sobre os objetos de consumo. Consumo de bens, consumo de conhecimentos, redundando, infelizmente, no consumo do ser humano, exaurindo suas forças, e condenando-o à extinção, mas não enquanto extinção da vida, mas sim enquanto à extinção do prazer. Prazer de estar com os pais, prazer de brincar na rua com os amigos, prazer de ter férias, etc. Penso que a única maneira de se tentar quebrar o elo de uma corrente insana, na qual estamos todos mergulhados, seja o caminho para a conscientização das nossas reais necessidades, sendo estas tanto inter, como intra-subjetivas. Em caso contrário, talvez chegue o dia em que não se possa mais ter a consciência de que o bebê de quem esquecemos, foi o bebê-majestade, uma vez que já teremos perdido a consciência de ter perdido a nós mesmos.

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