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A Odisséia de um Adolescente

Recebi certa vez uma ligação em meu consultório de uma mãe querendo marcar um horário para o seu filho adolescente. Perguntou-me se eu queria que ela viesse antes, para me colocar "a par" do que se tratava. Respondi-lhe que em minha maneira de trabalhar, eu preferia ver seu filho primeiro e depois certamente eu iria querer falar com ela e com o seu marido.

Aparentemente, acatou minha proposta sem nada questionar. No dia e horário marcados, o garoto compareceu e foi logo me dizendo que ali estava por insistência dos pais. Essa é uma atitude típica que costuma pautar o primeiro contato com o paciente adolescente. Uma outra variação comum é aquela onde ali estaria por uma solicitação da escola. Na minha experiência no atendimento de adolescentes, raramente encontrei um que dissesse que ali estava por iniciativa própria, no máximo, dizendo que o haviam encaminhado e que ele até achava que, de repente, poderia ser uma boa.

O que pretendo marcar é, que não devemos ter a expectativa nessa faixa etária, que as pessoas assumam a procura por conta própria e não estou aqui me referindo aos aspectos econômicos envolvidos, mas sim na quase impossibilidade interna de se apropriarem de uma tomada de decisão de forma geral.

Em relação às questões referentes ao relacionamento, nos aspectos sociais, afetivos, sexuais, etc., me respondeu que tinha sim alguns amigos, e que costumava encontrá-los, sobretudo, quando viajava com os pais para a praia, o que acontecia com relativa freqüência, e que, segundo ele, isso lhe proporcionava um grande prazer. Quanto às meninas, me disse que por enquanto tinha só amigas, principalmente as da escola e as do prédio onde residia.

Falou que a mãe é que ficava responsável, na divisão de tarefas, pelo controle do comportamento dos filhos, ficando o pai, como o depositário das queixas da mãe, quando chegava em casa à noite após o trabalho. Falou com um ar queixoso que quando vinham as notas da escola e que ele, com certa freqüência, tinha ido mal em algumas matérias, isso gerava muita polêmica, a qual se arrastava por dias, com os pais batendo sempre na mesma tecla. No seu modo de ver, a mãe fazia muito carnaval em relação a isso, e o pai embarcava na mesma canoa.

Ele tinha um irmão mais novo dois anos e me disse que, no geral, se davam bem, a não ser por aquelas briguinhas tão comuns entre irmãos. Ou seja, tirando essa questão com as notas, a qual se referiu, parecia segundo sua própria análise, viver numa família normal. Quando chegávamos quase ao final do tempo dessa entrevista, me disse que também se chateava muito com os pais, uma vez que eles lhe impunham castigos, em relação à questão das notas. Exemplifica que numa dessas notas vermelhas, ao chegarem à praia, os pais pegaram uma prancha de surf que lhe haviam dado, e deram para um primo menor.

Um outro aspecto importante que eu quero levantar é que, via de regra, os adolescentes acabam por assumir uma postura defensiva nos primeiros contatos, perscrutando-nos e ao ambiente; alguns chegando mesmo a perguntar se ali algo está sendo gravado, etc. Isso teria origem, a meu ver, pela sua própria desconfiança generalizada nessa etapa da vida, além do fato de que, pelos pais estarem pagando pelo seu atendimento, se o profissional não irá assumir uma atitude pedagógico-adaptativa, fornecendo aos pais com certa freqüência, "relatórios" sobre os conteúdos das sessões e podendo contar a eles inclusive, algum "segredo" que ele tenha mencionado, como por exemplo o consumo de drogas, etc.

Depois de ter avisado o entrevistado, ofereci então um horário para que os pais pudessem comparecer e foi o que ocorreu. A minha sensação era de expectativa frente a esse encontro, uma vez que achava que havia "muita fumaça para pouco incêndio". Porém, procurando seguir um conselho muito sábio do criador da Psicanálise, conselho esse que fora proferido quando ele falava sobre o mecanismo do deslocamento, a saber: nessas situações, devemos procurar onde está o verdadeiro foco, para o qual corresponde tanta fumaça, uma vez que certamente ele existe.

Os pais compareceram e era visível o estado de tensão que os possuía. A mãe começa a falar e, novamente aparece a questão das notas ruins que o filho vem tirando na escola e o quanto isso a preocupava. Quanto ao filho mais novo, afirmou que esta questão estava mais tranqüila. Observo que o pai acompanha o relato da esposa sem nenhuma interferência, até o ponto em que eu solicito que ele se pronuncie, uma vez que eu gostaria de saber a sua opinião sobre aquela situação. Ele ratifica a preocupação da esposa, dizendo que teme que o filho venha a perder o ano.

Não sendo eu professor de reforço escolar, fiquei ouvindo atentamente para tentar entender o que, de fato, os teria trazido até mim. Quando o marido arrisca discordar um pouco da esposa, afirmando que ela é muito preocupada, e que ele já é mais tranqüilo, ouve da esposa a afirmação de que ele era tranqüilo sim, e que só estava faltando comer a gravata. Criou-se ali um ponto de atrito, atrito esse que foi o primeiro sinal  de que ali, eventualmente, poderia residir o verdadeiro incêndio, ou pelo menos, grande parte dele.

Depois de certo silêncio, mutuamente acusatório, a mãe passa a me revelar dados de substancial importância. Declara que o garoto havia sido adotado e que apresentava também um sério problema de audição, devido a ter ficado exposto a uma alta dosagem de gentamicina (antibiótico), ainda na infância. Parecia que, a partir dessa declaração, as portas puderam ser abertas e o pai me chama a atenção para um episódio que passaria a me contar, sobre o qual havia feito o "diagnóstico" de uma conduta extremamente anormal por parte desse filho. Disse que o filho há muito estava pedindo uma barraca de camping, e, que depois de conversarem resolveram lhe dar uma de presente, até porque ele havia afirmado que estava tudo bem na escola. Numa noite muito fria, ouvem um barulho no quarto do filho e, quando abrem a porta e entram, percebem a seguinte cena: o filho havia aberto todas as janelas do quarto, montado a barraca de camping, entrado no saco de dormir e estava dentro da barraca. Isso foi o suficiente para acender o alerta vermelho, sinalizando, para os pais, uma atitude extremamente inadequada. Nesse momento, ambos me interrogam sobre o que eu acho do que acabaram de me contar.

Lembrando-me da prancha de surf, a qual lhe pertencia e que, por ter tirado notas baixas, os pais lhe tomaram e deram para um primo menor, eu lhes respondi que certamente o que eu tinha para dizer, não era o que eles estavam esperando ouvir, mas que ainda assim eu tinha uma opinião a respeito. Disse-lhes que o garoto havia me contado o episódio da prancha e que me parecia que sabedor de que não traria notas boas para casa, antes que pudessem lhe tomar a barraca, havia tentado usá-la dentro das condições de que ele dispunha, ou seja, no seu próprio quarto. Acrescentei que como se costuma dizer: até eu que sou mais bobo, muito provavelmente teria feito o mesmo. Acho que não preciso dizer que houve um silêncio total, a partir do qual acrescentei que eles deviam estar se perguntando como eu, com aquela afirmação de empatia com o garoto, poderia cuidar dele? Expliquei também que eles sabiam que não tinham vindo procurar um psicopedagogo, para que o mesmo talvez pudesse tornar seu filho melhor adaptado. Mas será que ele estaria feliz? Será que esse sistema instituído de recompensa e punição já não se teria mostrado falido?

Procurei lhes dizer que compreendia as suas inquietações quanto ao desempenho escolar do filho e que, talvez fosse realmente interessante procurarem por um reforço escolar para ele, mas que ali comigo iríamos ter que tratar de tantas outras coisas, como, por exemplo, a sua adoção, da qual embora ele soubesse, isso não queria dizer que fosse algo tranqüilo para ele. Parecia-me claro também que o nível de cobrança em relação a ele era infinitamente superior ao do outro filho, e que eu ficava me perguntando se não seria importante também para eles, poderem contar com um foro profissional privilegiado, para estar discutindo essa entre outras questões, como por exemplo, estariam eles pagando todo esse preço de preocupação, por terem adotado alguém, que originariamente não tinha sido fruto deles?

Procurei dar-lhes como exemplo, uma metáfora que para mim faz muito sentido, sobretudo quando falamos de questões inerentes ao âmbito familiar. É bem comum encontrarmos nos banheiros das casas, principalmente aqueles que são utilizados por mais de uma pessoa, aqueles cestos de se colocar a roupa suja. Dessa forma, se todos lá colocam as suas roupas sujas, por que teríamos que pinçar as roupas sujas de um só elemento, acusando-o de não cuidar bem das suas roupas? Sabemos que quem trabalha com psicoterapia familiar, está habituado com o termo P.I., que significa, paciente identificado. O qual desempenha o papel de depositário daquilo que poderíamos chamar folcloricamente de "loucura familiar".

Para finalizar, chegamos ao acordo que o garoto daria início ao seu processo de análise, tendo afirmado os pais, que por questões financeiras teriam que postergar o seu próprio atendimento. Fiquei me perguntando se essa anuência sobre a análise do filho, não estaria confirmando o "peso" que este representava para eles? Entendo que a minha suspeita demonstrou ser procedente, uma vez que depois de uns três meses do início dessa análise, os pais solicitaram que fosse suspensa, alegando que o garoto estava se tornando cada vez mais "intratável" e, aqui, intratável por quem? Quem não o estaria tratando? Assim, acusei o recebimento do recado que eles me estavam dando e, ratifiquei que eles continuavam procurando por aquilo que seria "uma psicanálise adaptativa". Infelizmente, por questões óbvias, não pude acompanhar mais esse garoto em sua odisséia particular.

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