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O Paradigma da Complexidade e a Relação Cérebro/Mente

Resumo

A concepção de "complexidade" é apresentada, a partir da noção de "estado central flutuante" e das idéias de Morin sobre o cérebro como uma "máquina hipercomplexa". Por fim, a partir do ponto de vista de Stengers, são discutidos aspectos epistemológicos da noção de "complexidade".

"O verdadeiro problema é este: como é que essa parte da realida­de que começa pela consciência pode ajustar-se àquela outra par­te que é descrita pela física e pela química?"

Niels Bohr, apud Edgar Morin

 
Bateson propõe, em 1979, critérios para definir "processo mental", este autor postulou, como o primeiro deles, que "a mente é um agregado de múlti­plas partes ou componentes interatuantes" (BATESON, 1987). Esta é uma das concepções essenciais para o conceito de complexi­dade. Os demais critérios seriam: (2) a interação entre as partes do espíri­to é provocada pela diferença; (3) o processo mental exige energia colateral; (4) o processo mental exige cadeias de determinação circu­lares (ou mais complexas); (5) no processo mental, os efeitos da dife­rença devem ser considerados como transformações (isto é, como versões codificadas) da diferença que os precede; (6) a descrição e a classificação destes processos de transformação revelam uma hie­rarquia de tipos lógicos imanentes aos fenômenos.

Na ótica do primeiro critério, o biólogo Jean-Didier Vincent aponta a idéia de um "estado central flutuante", que se­ria definido por duas proposições:

(1) todo o organismo vivo, desde o nascimento até a morte, está em estado de não-equilíbrio;

(2) a reação de um organismo a um es­tímulo é dependente de e modulada por […] um estado central definido como a condição reativa total, num da­do momento, de um neurônio, de um conjunto funcio­nal de células, de um elemento subcelular no interior do sistema nervoso, ou deste último considerado como um todo.

Assim, ocorrem mudanças com a hora do dia, com o dia do ano, com os anos que fazem envelhecer e com os milhares de acontecimentos da vida cotidiana. O organismo vivo é, ao mesmo tempo, o todo e a parte dos conjuntos e subconjuntos que o constituem. As mudanças em fun­ção de: materiais e gases transportados pelo sangue, hor­mônios, íons, acidez, temperatura, anticorpos, micró­bios e toxinas, estado de nutrição de células, órgãos e tecidos, informações que chegam ao cérebro, posição do corpo no espaço, recordações, passar do tempo e por aí vai.

O estado central – representação do mundo – é uma projeção em que se fundem três dimensões:

1ª. corporal: definida pelos dados físico-químicos do meio interno (meio interior e meio cerebral), aos quais se sobrepõe o estado das peças, músculos, tecidos e órgãos que constituem o organismo;

2ª. extracorporal: representação que o indivíduo tem do mundo, tanto do espaço sensorial recebido pelos ór­gãos dos sentidos, como do espaço do movimento perce­bido por receptores especializados que indicam a posição dos diferentes segmentos do corpo, estado de tensão dos músculos, ângulo das articulações etc.;

3ª. temporal: ocupada pelos vestígios acumulados durante o desenvolvimento do indivíduo, desde o nasci­mento até a morte. Provém do determinismo genético que põe em ação os programas centrais, ordena a matu­ração e o envelhecimento e também da contingência his­tórica que integra os acontecimentos da existência.

Para materializar esse estado central, temos de con­ceber um cérebro flou – somatório dos humores, hor­mônios e mediadores em ação no sistema nervoso. "O estado central é, ao mesmo tempo, a árvore e a flores­ta" (VICENT, 1988). Essa concepção está de acordo com a questão posta por Vaz ao discutir que devem ser leva­dos em conta dois níveis de descrição do sistema nervo­so:

1º. pertencente ao domínio estrutural, em que se demarcam os componentes do sistema nervoso e suas in­ter-relações recíprocas – ou seja, uma unidade decompo­nível em seus elementos;

2º. referente ao domínio das interações, em que tais interações se constituem num todo (como uma unidade singular), a ponto de condicio­nar a conduta do organismo portador de tal sistema ner­voso (VAZ, 1991).

É, ainda, importante assinalar a corres­pondência da noção de cérebro flou com a idéia do chi da medicina oriental. Segundo Capra, esse conceito des­creve padrões de fluxo e flutuação do organismo e suas interações com o meio. Implica numa descrição qualitati­va de um padrão dinâmico resultante de processos e inte­rações (CAPRA, 1990).

Uma ampla e consistente abordagem da complexida­de em relação à Relação Cérebro/Mente, ou Corpo/Mente foi desenvolvi­da por Morin. A partir do paradoxo-chave: "o que é um espírito (este é o termo empregado, em vez de "men­te") que pode conceber o cérebro que o produz e que é um cérebro que pode produzir um espírito que o conce­be?"

Morin assinala que não se pode isolar um do ou­tro e nenhum dos dois da Cultura. Ao comentar os aspec­tos biológicos da disjunção, cita Piaget: "A uma certa profundidade, a organização vital e a organização men­tal constituem uma única e mesma coisa" (MORIN, 1987) .

Isso decorre do fato de o corpo possuir dezenas de milhares de milhões de células, que realizam interpoli­computações que resultam na produção dessa realidade corporal. Além disso, o aparelho neurocerebral é consti­tuído por grande quantidade de neurônios (trinta a cem mil milhões) e de sinapses que viabilizam computações voltadas para o domínio cognitivo.

Dessa forma, a ativi­dade cognitiva do cérebro animal pode ser vista como uma "megacomputação" de computações. No caso hu­mano, há uma complexidade organizacional de tal ordem que viabiliza a transformação de computações em "cogi­tações", mediante a linguagem e a lógica. Simultanea­mente, o computo se torna cogito quando atinge a refle­xividade do sujeito que pensa seu pensamento, pensan­do-se a si próprio, quando tem consciência da sua cons­ciência.

O espírito emerge com a linguagem, o pensa­mento e a consciência. Para Morin, o espírito seria "um complexo de propriedades e qualidades que, provindo de um fenômeno organizador, participa dessa organiza­ção e retroage sobre as condições que o produzem" (MO­RIN, 1987). Isso só pode ser concebido a partir de:

(a) um todo organizador maior que os seus elementos constituti­vos;

(b) o desenvolvimento de qualidades emergentes com a capacidade de retroação sobre o que a produz;

(c) uma atividade recorrente cujo produto se torna produtor da organização que a produz (MORIN, 1987).

Quanto à noção de psiquismo, estaria referida ao aspecto individual-subjetivo da atividade do espírito. Es­taria vinculada à idéia de "ego", à identidade pessoal – incluindo os aspectos afetivos, oníricos, fantasmáti­cos da atividade espiritual.

Para conceber o cérebro como uma "máquina hiper­complexa", Morin descreve algumas características neu­rofisiológicas importantes:

1ª. Os dois hemisférios cerebrais – Conforme os es­tudos de Sperry, o hemisfério direito se relaciona com emoção, intuição, aspectos concretos (entoação da voz, cores), apreensão das formas globais, orientação espa­cial, aptidão musical. Já o esquerdo está referido à aná­lise, abstração, lógica, tempo seqüencial. O esquerdo se­ria dominante nos homens, o direito, nas mulheres. Mas a dominância varia também conforme os indivíduos e num mesmo indivíduo, conforme as contingências. Des­sa maneira, haveria um constante diálogo de complemen­taridade/antagonismo dos dois hemisférios – importan­te aspecto em termos de complexidade (MORIN, 1987).

2ª. O cérebro triúnico – McLean elaborou uma teo­ria de regionalização cerebral, de acordo com elementos filogenéticos. Assim, haveria:

* o paleocéfalo (herança reptiliana), constituído pelo hipotálamo – sede da agres­sividade, do cio, das pulsões primárias;

* o mesocéfalo (herança dos mamíferos antigos), com o siste­ma límbico – aspectos da afetividade e da memória de longo prazo;

* o córtex, com os hemisférios cerebrais que se hipertrofiam no homem (o neocórtex) – lugar das aptidões associativas, lógicas e estratégicas. Assim, haveria uma unidade triunitária, que permite encarar o cérebro como complexo.

Não ocorreria uma hierarquia entre as instâncias, mas sim uma atividade instável, com complementarida­de, antagonismos.

3ª. A concepção modular – O cérebro estaria cons­tituído por mosaicos de módulos polineuronais (também chamados de grafos). Cada módulo teria uma autonomia relativa e possuiria competências e especializações próprias. Estariam intimamente conectados com outros módulos, de modo a permitir a ocorrência de inter-retro­computações que viabilizariam a emergência dos fenôme­nos perceptivos e inteligentes.

4ª. Os "hormônios" cerebrais – Há dois feixes hor­monais: o MFB (Medial Forebrain Bundle) – sistema catecolaminérgico (dopamina e noradrenalina), de estimu­lação à ação; feixe de recompensa e reforço que atuaria no hipocampo; e o PVS (Periventricular System) – siste­ma colinérgico, de incitação à fuga ou à defesa que atua­ria na amígdala. Assim, haveria uma inter-relação dos dois feixes no processo de formação das idéias, das per­cepções que teriam correspondências psicoafetivas, que, por sua vez, poderiam ser desencadeadas, também, por estímulos externos.

O cérebro seria, então, um complexo de sistemas complexos com uma multiplicidade de instâncias que se encadeiam e se combinam através da: * unidualidade bi­hemisférica, * unidualidade triúnica, * poliunidade inter­modular, * unidualidade dos feixes hormonais.

Para entender o funcionamento complexo, Morin elaborou três princípios, todos interligados: (1) o dialógi­co; (2) o recorrente; (3) o hologramático.

(1) O princípio dialógico refere-se à idéia de intera­ção, isto é, à associação complexa de instâncias, conjun­tamente necessárias à ocorrência, funcionamento e desen­volvimento de um fenômeno organizado. No caso cere­bral, percebe-se esta propriedade nos diversos níveis cita­dos anteriormente. Além disso, haveria uma dialógica análise/síntese ligada à dialógica digital/analógica, im­prescindíveis aos processos perceptivos.

(2) O princípio recorrente diz respeito à noção ciber­nética de retroação, isto é, operações circulares, em que os "efeitos" rebatem sobre as suas "causas". Mas, a noção de anel recorrente é mais ampla: tratar-se-ia de uma retroação reguladora. Seria o processo no qual, os produtos são simultaneamente produtores dentro do mes­mo processo, de modo que os estados finais são necessá­rios à origem dos estados iniciais, desde que haja energia disponível (o segundo critério de Bateson para o surgi­mento do fenômeno mental).

(3) O princípio hologramático (que inclui as modali­dades holoscópica e holonômica) baseia-se na técnica de produção do holograma – imagem física projetada no espaço, a três dimensões, provocando a sensação de espessura. Cada ponto do holograma reproduz pratica­mente todo o objeto, em dimensão menor. Assim, o prin­cípio hologramático seria enunciado da seguinte manei­ra: o todo está inscrito na parte que está inscrita no to­do. Dessa forma, a complexidade da organização total precisa da complexidade organizacional de seus elemen­tos singulares, que por sua vez precisam, recorrentemen­te, da complexidade organizacional do todo. Essas idéias foram desenvolvidas por Jacob e por Koestler ao conce­berem, respectivamente, os conceitos de "integron" e de "holon" (JACOB, 1985; KOESTLER, 1978).

Morin considera, ainda, três modalidades desse prin­cípio:

* hologramática, propriamente dita – o todo, de certo modo, está inscrito nas partes inscritas no todo;

* holonômica – o todo governa as partes que o governam;

* holoscópica – operadora da representação total de um fenômeno (a memória, por exemplo, está registrada hologramaticamente, de modo que as representações se­riam estabelecidas a partir de computações armazenadas).

Desse modo, o princípio hologramático incorporaria os dois outros princípios (dialógica e recorrência) – o todo constituído desde partes interatuantes e retroagin­do sobre essas partes para controlar suas interações (MO­RIN, 1987).

Em suma, o funcionamento da máquina hiper­complexa cerebral consistiria de dialógicas, recorrências, interações, como se houvesse a implicação de cada ele­mento ou etapa do conjunto em todo processo, de mo­do que a resultante fosse construída a partir das interfe­rências entre todos os elementos e etapas desse processo.


Complexidade: Aspectos Epistemológicos

Stengers, na obra "Quem tem medo da Ciência?", reunindo os seminários proferidos durante sua vinda ao Brasil, em 1989, apresentou uma série de idéias sobre a "complexidade". Afirma que a noção de complexidade é "perigosa", do "ponto de vista da política dos sabe­res" (STENGERS, 1990). Essa autora aventa a possibilida­de de tratar-se de um modismo que pode encerrar uma "armadilha": estabelecer uma nova visão do mundo que, se, por um lado, ultrapassaria as visões tradicionais da Ciência, por outro, sustentaria a visão de mundo de que as ciências podem trazer a verdade para a história (por exemplo, a idéia de progresso linear seria substituída por conceitos como "caos", "instabilidade", "desconti­nuidade" etc.), de modo que, assim, a Ciência permane­ceria mantendo seus interesses diante de sua capacidade "desveladora" das realidades, encaradas em sua comple­xidade "real" (STENGERS, 1990).

A partir do par "operador-conceito", Stengers dis­cute o par "simples-complicado". Para ela, o "concei­to, na medida em que explica porque o operador tem êxito, define igualmente um mundo onde, de direito, as categorias às quais o operador recorreu são pertinentes" (STENGERS, 1990). Dessa forma, a complexidade põe em relevo os riscos que o conceito corre em relação ao ope­rador. Para Stengers, um operador, ao mesmo tempo e indissociavelmen­te, define uma prática de medida e um objeto, uma prática de me­dida que define seu objeto e um objeto que legitima uma prática de medida.

Diz ela: "Será que é a mesma coisa só que mais complicada ou devemos pensar em termos de complexi­dade?" Os encaminhamentos para tentar responder con­duzem a dois usos da noção de complexidade:

(1) de problematizar "a relação entre a operação prá­tica (de definir) e o conceito que parecia autorizar tal operação (a definição do sistema enquanto permite dedu­zir seus diferentes regimes de atividades possíveis)." Este uso está baseado nas ciências experimentais. Tem como resultado por em questão "o risco da experimentação" e o problema da pertinência dos conceitos que ela deter­mina (STENGERS, 1990);

(2) de discutir a posição de quem estabelece as questões nas ciências. Ou seja, "todo o método afirma a diferença entre aquele que coloca as questões e aquilo sobre o que eles a colocam" (STEN­GERS, 1990). Isso conduz ao problema de indivíduos hu­manos colocarem questões a seu próprio respeito. Assim, respostas a tais questões passam a ser políticas, uma vez que haveria uma resposta "objetiva", "que deve supos­tamente definir o que é o indivíduo, e à qual o indivíduo deve supostamente ser submetido, enquanto que ele colo­ca o mesmo problema" (STENGERS, 1990).

Para Stengers, a complexidade não constitui nem "nova visão do mundo", nem "novo tipo de teoria". Mas, sim, refere-se a uma questão "prática": ela surge quando há um encontro "empírico" que demanda um questionamento do poder atribuído aos conceitos. Mais ainda: constitui o modo de problematização do "novo", sob a forma de chamar a atenção para o problema da pertinência dos novos problemas e para as definições de nossas posições quanto àquilo que interrogamos. Ou seja, tanto a problemática do "novo", como a problemá­tica das relações entre ciências e poder (STENGERS, 1990).

Mas, no que se refere ao problema "mente/corpo" – objeto de nosso artigo é importante mencionar uma indagação da própria Stengers, em obra anterior, ao co­mentar o fato de que a "psicossomática faz parte dessas zonas obscuras da ciência em que se tenta conhecer sa­bendo ao mesmo tempo que isso provoca uma mutilação causada por modelos errados, os quais, como provém de outras ciências, não são adequados a esse gênero de disciplina.

Assim, como conseguir manter uma interrogação rigorosa e ao mesmo tempo moldá-Ia segun­do as exigências do que temos de compreender?" (STEN­GERS, 1987). Nessa mesma obra, originária de um coló­quio chamado "As Vias do Conhecimento", organiza­do em 1984 pela Universidade de Tsukuba, no Japão, Stengers indaga-se (e aos japoneses) acerca da pertinên­cia do conceito oriental do chi.

 Em suma, para o estu­do do problema "mente-corpo", a complexidade se cons­titui num valioso instrumento heurístico. De acordo, por­tanto, com a proposição stengeriana anterior do redimen­sionamento dos conceitos em função de sua eficácia. E, também, diga-se de passagem, redimensionamento dos modelos explicativos disponíveis. No caso em foco, am­bos se fazem absolutamente necessários para viabilizar uma abordagem mais satisfatória (do que as disponíveis) dos fenômenos psicossomáticos, nos quais o problema "mente-corpo" inevitavelmente desemboca.

Referências Bibliográficas

1. BATESON, G Natureza e Espírito. Lisboa: Publ. D. Quixote, 1987.

2. CAPRA, F Sabedoria Incomum. São Paulo: Cultrix, 1990.

3. JACOB, F A Lógica da Vida. Lisboa: Publ. D. Quixote, 1985.

4. KOESTLER, A Janus: A Summing Up. Londres: Pan Books, 1978.

5. MORIN, E O Método IlI. O Conhecimento do Conheci­mento. Europa-América, 1987.

6. STENGERS, I Multiplicidade, razão e sentido. Em: Abordagens do Real. Lisboa: Publ. D. Quixote, 1987.

7. STENGERS, I Quem Tem Medo da Ciência? Ciências e Poderes. São Paulo: Siciliano, 1990.

8. VAZ, N Com o Olhar de um Biólogo. Conferência pronun­ciada no 8º Seminário de Educação em Saúde: Natureza e Cultura. Vida e Sociedade, Rio de Janeiro, novembro, 1991.

9. VICENT, J-D (1988). Biologia das Paixões. Lisboa: Europa-América, 1988.

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