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Transexualismo Masculino em Jacques Lacan

1. Introdução  

Ao considerarmos que a possibilidade que é dada à criança de se situar como homem ou mulher está ligada à simbolizado de lei e da castração, estamos reconhecendo que a criança é levada ao jogo das identificações por causa da metáfora paterna. Podemos assim, considerar, como formulou Lacan, que a falta do significante Nome-do-Pai, pode levar a perturbações ao nível da identidade sexual.

Se a identidade sexual do sujeito, está sujeita à função fálica, então a especificidade anatômica e biológica será um caráter secundário. Assim poderemos dizer que nos sentimos como pertencente a um gênero: feminino ou masculino. Poderemos supor, segundo Lacan, que nossa anatomia sexual, é constituída do real de nossa anatomia sexual e da identidade sexual, resultante da elaboração psíquica, à partir desse real, dependendo da relação do sujeito com o falo.         

A relação com o falo, é antes de tudo, a relação com o real da diferença dos sexos, que possibilitará a vinda do objeto fálico. Portanto, a identidade sexual, será obtida ao fim de um trabalho imaginário, que poderá resultar numa inadequação entre a anatomia do sujeito e sua identidade sexual. Para tentarmos compreender a identidade sexual dos transexuais, além da referencia citada, será preciso, segundo Joel Dor, salientar a questão da atribuição fálica e da dinâmica da circulação do falo. A teoria da sexuaçào desenvolvida por Lacan, é de fundamental importância para a análise da identidade do transexual.

2. A sexuação segundo Lacan        

Se o inconsciente, exerce influencia na identidade sexual, não será a anatomia do sujeito que determinará essa identidade. As fórmulas expressas por Lacan, em sua tábua da sexuaçào, elucidará o problema da identidade sexual:

 

 

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$xÆx

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 $xÆx

 

"xÆx

  _   _

 "xÆx

                       

Ao tomarmos as fórmulas, acima expressas, duas a duas, teremos o sentido da identidade sexual masculina e feminina. As duas da esquerda, representam a identidade masculina e as duas da direita, a identidade feminina.

Se a problemática vivida pela criança durante o édipo, fosse apenas ter ou não ter o falo, poderíamos recorrer as proposições universais afirmativas e negativas: "xÆx, "xÆx, mas a existência da castração e do pai simbólico, vivida também no édipo, torna impossível tal simplificação. É devido a tal impossibilidade, que Lacan modifica a simbolização da lógica formal e introduz outra duas fórmulas.

A proposição universal, "xÆx, significa que “todos os homens estão submetidos à castração”, sendo conseqüência da existência do pai simbólico, do qual Freud nos fala em Totem e Tabu, como sendo quem tinha todas as mulheres, o homem não submetido à castração, enquanto não havia a proibição do incesto. Ao matar esse déspota, os filhos, após uma refeição canibalesca, arrependidos, instituem a lei da proibição do incesto”. Assim, todos os homens estão submetidos à castração porque existia ao menos um que não estava submetido a ela, conforme a proposição particular negativa  $xÆx. A exceção, impõe a regra e a função paterna é suporte da lei. Encontramos então, um conjunto universal onde, todos, sem exceção estão submetidos à castração; mas a existência do pai simbólico institui um fantasma de gozo absoluto, não submetido à castração, um gozo inacessível e proibido.

As fórmulas da direita, expressam a identidade feminina. Percebemos que nenhuma expressa a universalidade. Lacan diz: “não toda mulher está inscrita à função fálica”. Não podendo dizer que $xÆx, no caso das mulheres, como podemos fazer no caso dos homens, afirmamos que para as mulheres a função fálica não é limitada como para os homens. As mulheres, não têm o que limita o lugar de seu gozo como absoluto e proibido, pois a ausência do “ao menos uma” torna impossível a universalização.

Enquanto estamos autorizados a utilizar a expressão “o homem”, não podemos faze-lo para “a mulher”, daí podemos concluir que se para o homem o gozo do Outro é impossível, este impossível não funciona como proibição no caso das mulheres, mas diz respeito a uma relação particular, um gozo suplementar é aberto, é o que Lacan denomina “o mais de gozar”. A criança para aceder ao processo de identificação, para poder conquistar uma identidade sexual masculina ou feminina, precisa simbolizar a castração, o que só acontecerá, se o pai der prova do que lhe é atribuído: a posse ( suposta) do falo.
 

3. Transexualismo Masculino         

A ambigüidade fantasmática que o sujeito nutre em torno da confusão pênis/falo, culmina, no transexualismo em seu mais alto nível. considerando a importância da atribuição fálica em relação à determinação da identidade sexual, e a  prova dos efeitos da ausência do significante Nome-do-Pai, no imaginário dos psicóticos, que com freqüência têm delírios de feminização, podemos pensar, talvez, a identidade transexual como uma identidade entre os limites das perversões e das psicoses.

Essa ambigüidade, vai engendrar uma identidade sexual total mente quimérica. Lacan, em suas observações clínicas, inicialmente situou o transexual masculino na vertente dos processos psicóticos e o transexual feminino, na dos perversos. Tal discriminação, no decorrer do texto de Lacan, não se fixa como uma discriminação estrutural ou mesmo nosográfica.

Uma primeira discriminação entre os transexuais e os homossexuais (travestis ou não) parece apoiar-se no critério do sentimento de identidade. Tantos os homossexuais e os travestis “bancariam as mulheres”, conservando ao mesmo tempo o sentimento de permanecerem homens, quanto, para os transexuais, não seria nada disso.

Um segundo elemento de distinção significativo parece ser a relação que esses diferentes sujeitos mantém com o pênis. Os homossexuais e os travestis gozam de maneira evidente com seu órgão, ao contrário dos transexuais que vivem  a presença de seu pênis com o maior horror. De fato, os transexuais sentem-se mulheres e vivem como mulheres. Isto explica porque o transexual não se sente jamais em uma posição homossexual quando mantém relações com homens. Os homens agradam-no enquanto ele próprio investe-se como um parceiro feminino. Também não se considera um travesti quando se veste de mulher.

Além desse sentimento de identidade feminina, existe um outro traço característico da identidade transexual, a saber a ligação bastante específica que eles mantiveram com sua mãe durante sua infância. Ainda que tenham sido “crianças a quem o sexo masculino foi atribuído sem equívoco desde o nascimento e jamais tenha sido colocado em dúvida, apresentam desde a mais tenra infância um comportamento feminino. De modo que tudo se passa realmente como se, assim como assinala Catherine Millot, “a essência do transexual é sua mãe.

Um dos primeiros estereótipos da relação mãe/filho é a permanência de uma relação próxima ao nível do corpo, que rapidamente adquire o perfil de um “corpo a corpo”, incessante. A criança e a mãe não se deixam nunca, nem para dormir. A criança, sempre próxima do corpo materno, tem necessidade de voltar a ele sem cessar para ser tocada. Qualquer separação corporal é quase impossível. Essa proximidade é amplamente   favorecida pela inconseqüência do pai, quase inexistente tanto para um quanto para outro, que permanece radicalmente extrínseco a esta simbiose mãe/filho.

Assim, mãe e filho partilham um amor recíproco em nada ameaçado: a criança é tudo para a mãe e a mãe é tudo para a mãe e a mãe é tudo para a criança. É interessante lembrar que a mãe dos homossexuais mantém um tipo de relação próxima análoga com seu filho, não é menos verdade que no quadro das perversões a mãe sempre captura seu filho em uma dependência de sedução erótica, ao mesmo tempo que lhe faz a ameaça de castração  de um lugar simbólico que ela própria usurpou.

O transexual seria precisamente aquele que não conseguiria ultrapassar a feminilidade primordial. Essa teoria, descrita por Stoller, supõe que a identidade do gênero sexual constituir-se-ia de várias etapas. A primeira diz respeito à da feminilidade primordial qualquer que seja o sexo da criança, tão assegurada quanto mantida pela relação simbiótica que existe necessariamente entre a mãe e a criança nos primeiros meses de sua vida. A criança não pode, portanto, deixar de se identificar com sua mãe, que dela se ocupa assegurando-lhe a satisfação de suas necessidades.

A segunda etapa é a que leva ao núcleo da identidade de gênero. Constituir-se-ia por causa das interferências do meio sobre a criança que contribuem para designar a criança como menino ou menina. Seria neste estágio que se iniciaria a masculinizado psíquica da criança desfazendo progressivamente a relação fusional da criança com sua mãe. Esse núcleo de identidade de gênero constituiria “um fundo inalterável que perdurará através de todas as vicissitudes das identificações posteriores”. Seria portanto em relação a esse núcleo que a criança situar-se-ia infalivelmente como homem ou como mulher.

Quanto à terceira etapa, seria, propriamente falando, o momento edipiano que se distinguiria radicalmente dos anteriores pela intrusão da dimensão do conflito desenvolvido pela criança em relação à mãe e ao pai. Todavia, apenas confirmaria, ainda que a paralisando, a identidade de gênero adquirida no estágio anterior. Tudo isto faz supor de modo explícito que somente a segunda etapa constitui um momento crucial face à identidade sexual.

A origem do processo transexual resulta, então de uma persistência da relação simbiótica mãe/filho que apesar de tudo se prolongaria sem que nada viesse, no decorrer das etapas seguintes, questionar esta identificação originária com a mãe; em outras palavras, sem que nada venha induzir e expressar de um modo determinante um núcleo de identidade de gênero masculino.Esta teoria sexual presta-se a inúmeras críticas fundamentais. Uma linha fundamental de argumentação refere-se à questão do falo e da castração no contexto dessa teoria.

A unidade com a mãe é um fantasma que se constitui retroativamente, sobre o fundo de uma perda, de uma separação sempre já efetuada. É preciso supor falta e castração referindo-se ao desejo da mãe para que a criança seja investida pela mãe como sendo seu falo e devendo ser mantida como tal. Esta concepção rejeita a idéia de simbiose. Por outro lado, toda identificação com o falo supõe o Outro ao qual a criança dirige suas solicitações. Neste procedimento ela encontra inevitavelmente a dimensão da falta. A mãe não pode deixar de aparecer originariamente como este Outro, introduzindo por isso mesmo a criança na alteridade que ela não deixará de recusar elaborando o fantasma da onipotência materna. Ora, a identificação com essa onipotência. É diante do fracasso, da insuficiência de uma identificação imaginária que eles reclamem uma sanção real, visto que são solicitados a seu lugar de homem. Ainda que o transexual aspire a adotar o aspecto da feminilidade, sempre há nisso algo da ordem da aparência e da farsa. Ele é essa farsa, isto é, invólucro e exigência de transformação corporal. Em outras palavras, para o transexual, trata-se menos de ser uma mulher que ser a mulher. Essa idealização não tem limite já que deve se inscrever sobre o corpo com a preocupação de perfeição extrema que deve manter uma aparência sempre sujeita a estas normas de pureza moral. De resto, é um fato estabelecido que um bom número de transexuais recusam qualquer relação sexual enquanto não tiverem se transformado em mulher: nem relações com mulheres quando casados, nem relações homossexuais com homens. A única coisa que parece importar é antes de tudo a aparência de ser mulher, a mulher ideal com a qual eles sonham, a isso acrescentando a exigência do ser sem sexo. Não há fantasmatização mais bem realizada do que procurar encarnar a posição angélica, isto é, dA Mulher capaz de assemelhar-se a um Nome-do-Pai, como já vimos anteriormente.

Parece manifesto que o transexual não se encontra portanto de modo algum subtraído aos imperativos da castração e da problemática fálica. Mostra-se todavia mais próximo disto sobre o modo da psicose que o da neurose. O transexual não faz a pergunta: “O que é uma mulher?” Ele já sabe a resposta é aquilo que ele quer ser. O transexual subtrai-se de saída a essa oscilação imaginária, por estar cativo do real de sua anatomia sexual. De modo que a única castração à qual ele parece ter acesso   é a castração cirúrgica que consiste na supressão do órgão.

Se não se vê desenrolar-se para ele a problemática fálica tal como governa a relação com o sexo e a identidade sexual que disso resulta paras o sujeito, é porque não tendo acesso ao significante fálico, a questão de sua identidade sexual permanece ligada ao plano da anatomia. Ele é portanto cativo da dimensão do ser, de onde está a proximidade com os processos psicóticos. Essa proximidade dos transexuais masculinos com as psicoses não deixa de se aparentar ao que Lacan designava “o empuxo à mulher” na psicose.

A esse respeito as teses de Lacan permitem talvez elucidar um pouco mais este parentesco do transexualismo masculino com as psicoses: se tomarmos o Outro enquanto não castrado, o ao menos um que tinha todas as mulheres, ele pode encontrar-se identificado com o pai da horda primitiva , portanto com o pai simbólico. Por menos que A mulher exista, ela funcionaria como este Nome-do-Pai, referente de um gozo tão absoluto quanto proibido, e poderíamos enunciar a este respeito: $xÆx

Por outro lado, sabemos que a identificação a um tal Outro onipotente constitui precisamente a identificação fálica arcaica da criança; se nada vier intermediá-la, permanece disso cativa, vítima do mecanismo próprio à indução dos processos psicóticos. Nestas condições, como essa captura na identificação fálica pode levar um sujeito a querer tornar-se mulher, como o faz o homossexual, mais do que induzir aos processos psicóticos?

 

Algumas teses de Lacan, nos permite formular uma hipótese explicativa em relação ao transexualismo masculino: Algo viria a limitar o gozo do Outro, no sentido em que o significante A mulher poderia funcionar como o significante Nome-do-Pai. Esta hipótese, se apoia na aplicação do algoritmo metafórico do nó borromiano Lacaniano.

O nó borromiano é uma figura composta de três anéis entrelaçados de tal modo que se um se partir, os outros dois estarão livres. Lacan utilizou-o para tentar metaforizar como no inconsciente encontram-se ligados pelo sujeito o simbólico, o Real e o Imaginário. A propriedade do nó borromiano pode com efeito, ser estendida a um número indefinido de anéis sem perder seu caráter fundamental: a quebra de um libera todos os outros. Assim Lacan utiliza um nó de quatro anéis para mostra como no édipo o anel Nome-do-Pai prende os três registros citados. Nestas condições, se o anel Nome-do-Pai chega a faltar, o entrelaçamento dos três registros não pode ter consistência.

No caso dos transexuais,  a carência do Nome-do-Pai, seria substituída por um significante que manteria contudo a estrutura introduzindo um limite, neste caso, A mulher impossível/ Todavia, esse quarto elemento A mulher jamais conseguiria senão manter o imaginário e o Simbólico, o Real continuaria livre. É por essa razão que o pedido de correção cirúrgica no transexual homem viria como uma intervenção que permitisse o Real do sexo a se ajustar ao Imaginário e ao Simbólico. por essa correção e essa substituição , a psicose seria evitada.

Todo o problema é saber se a retificação cirúrgica tem ou não virtudes terapêuticas. A correção cirúrgica muitas vezes, não se mostra muitas vezes como benfazeja nos transexuais senão na medida em que dissipa o temor de serem desmascarados como mulheres. Ela não resolve a questão do gozo mortífero que continua a atormentá-los. No mais das vezes, até mesmo catalisa a descompensação desses sujeitos. É uma intervenção cuja perspectiva terapêutica limita-se, de fato, a satisfazer a reivindicação delirante de um sujeito.

Eticamente, o problema aumenta com toda a questão jurídica da troca legal de identidade. O mínimo que podemos dizer, é que a situação jurídica dos transexuais é complemente ambígua. Seria certamente desejável uma medida jurídica consistente para neutralizar a atividade descontrolada dos cirurgiões. Toda a questão resume-se em se decidir por quais medidas jurídicas. Ou reprimir a intervenção e proibir por medida jurídica a troca de sexo, ou autorizá-la. Parece que a tendência atual é para a segunda opção; isto por causa do caráter supostamente terapêutico da intervenção retificadora. A opinião dos juristas permanece suspensa, de um certo modo, a essa apreciação terapêutica plena de conseqüências. Tanto mais plena quanto tudo se passa como se, a longo prazo, não houvesse diferença real entre os transexuais operados e os outros. Em outros termos. a cirurgia aparece como uma medida no máximo paliativa, mas não curativa de um problema que é essencialmente de ordem psicopatológica.

 

4. Bibliografia

   

Dor, J. Introdução à Leitura de Lacan – O Inconsciente Estruturado como Linguagem, Artes Médicas, 1986.

 

Freud, S. Totem e Tabu, Obras completas, v. 7, 3a. ed., RJ: Imago, 1990.

 

Lacan, J. Mais ainda, 2a. ed., RJ: Zahar, 1985.

 

______, Quatro conceitos fundamentais em Pasicanálise,  2a. ed., RJ: Zahar, 1985.

 

______, A relação de objeto, 2a. ed., RJ: Zahar, 1995.

      

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