RedePsi - Psicologia

Artigos

A Areia Movediça

Desde muito pequeno, assistindo a filmes na televisão, pude me deparar com aquelas cenas horríveis e assustadoras do sujeito que caía na denominada "areia movediça". Mas o que tinha de tão assustador nesse tipo de areia? É que, quanto mais o sujeito se mexia para tentar sair, mais ele ia afundando, correndo sério risco de morte, se o socorro não chegasse a tempo de retirá-lo dali.

Então, o que de melhor ele tinha a fazer era não se mexer, ficar o mais imóvel possível, como única chance de receber socorro e de se salvar. Ocorre que, passado um tempo, relativamente longo sem se mexer, e o socorro não tendo chegado, é natural que o sujeito entre num processo de desespero crescente, e que comece a se debater para tentar escapar de um destino praticamente certo, a morte.

Refletindo sobre essas questões, me propus a desenvolver um paralelo com uma série de situações de vida, nas quais nos vemos numa perfeita metáfora da "areia movediça". Ocorrem-me algumas situações, a saber, a daquele sujeito que se encontra numa situação de trabalho, absolutamente extenuante e falida, uma vez que é mal remunerado, não estabelece uma relação de empatia com os superiores e colegas, enfim, que não consegue tirar um mínimo de prazer naquilo que faz, ficando a cada dia mais desmotivado.

Por outro lado, é um pai de família, onde várias pessoas dependem dele e, consequentemente desse emprego. Num primeiro momento,   ele vai agüentando o infortúnio, meio que "sem se mexer", aguardando por "socorro". Os dias vão se passando e nada de novo acontece a não ser sua angústia que vai aumentando cada vez mais, até chegar ao limite do insuportável, fazendo-o errar nas suas atribuições e ser demitido, ou, de forma desesperada, pedir demissão sem ter nenhuma outra perspectiva em vista, o que vai desafogá-lo de um lado, mas vai colocá-lo num problema de ordem econômica, na administração das necessidades familiares, etc.

Uma outra situação que me ocorre é a daquele jovem que está cursando uma faculdade, a qual claramente corresponde ao desejo dos pais, para que o filho possa realizar. Ainda que, num primeiro momento, o sujeito até simpatize com a idéia de cursar aquela faculdade, lá pelo segundo ou terceiro ano, se desilude e pensa em parar e se dedicar a uma outra escolha que corresponda a uma opção sua.

Como frustrar o desejo dos pais em relação a ele? Como entender que mudando de área, não mudará conseqüentemente o sentimento dos pais em relação a ele? Aqui passa também por um primeiro momento de "paralisia", até chegar a hora em que ou ele toma sua decisão, correndo os riscos a ela inerentes, ou sucumbe, afundando-se na "areia" da frustração.

Penso também na situação que observamos freqüentemente na clínica, daqueles casais que se encontram numa relação, onde desde há muito deixou de existir para ambos o brilho dos primeiros anos, mas que, ou em nome dos filhos, ou da situação econômica, ou mesmo de não quererem ou poderem abrir mão daquilo que um dia foi um sonho acalentado com muita energia e que, uma vez rompido, significaria uma "derrota", tendo repercussões diretas no narcisismo de cada um dos participantes do casal.

Na verdade, o que podemos observar em todos os exemplos citados, e haveria muitos mais, é aquilo que numa frase muito feliz, afirmou um psicanalista de nosso meio: "O ser humano prefere a tragédia conhecida, ao eventual sucesso, porém desconhecido".

Essa parece ser uma questão atávica no ser humano, uma vez que remonta há séculos de existência. Voltando à "areia movediça", penso que poderíamos considerá-la a partir da noção de conflito, o qual em Psicanálise ocorre sempre entre os famosos dois "D", ou seja, o Desejo e a Defesa.

Quero aqui aproveitar para ressaltar a esse respeito uma ponte possível com as denominadas afecções psicossomáticas. Ainda dentro da noção de conflito, temos, por um lado as cadeias representacionais, ou cadeias de pensamentos, às quais originalmente, estariam ligadas quantidades afetivas correspondentes. Notamos que numa situação de conflito, rompe-se a unidade PALAVRA-AFETO, ficando a Palavra recalcada e o afeto na qualidade de energia livre, mas apenas num primeiro momento, uma vez que essa energia irá ligar-se a outras cadeias representacionais, pelo mecanismo do deslocamento, o qual pode ser definido como a transmutação dos valores psíquicos, ou, pelo mecanismo da conversão, pode incidir no próprio corpo do sujeito, dando lugar às manifestações psicossomáticas, como gastrites, úlceras, dermatites, herpes, hipertensão arterial, distúrbios músculo-esqueléticos, etc.

O trabalho de uma análise, nesses casos, seria reconduzir o afeto para o lugar de onde "nunca deveria ter saído", como bem tratou de sublinhar Freud, já nos Estudos sobre a Histeria e outros.

Quando o indivíduo fica "paralisado" na "areia movediça", ele está represando um montante afetivo considerável, que no caso em questão nos parece ter a ver com a angústia de morte, e se o "socorro" não vem, ele fica entregue a Eros, que clama pela vida e que vai fazer com que ele, talvez pereça, porém lutando pela vida e pela possibilidade de viver.

Se tomarmos os exemplos citados e pensar em tantos outros pelos quais passamos ao longo da vida, nos parece até admissível ficar parados num primeiro momento, contudo é preciso que nos debatamos em busca do nosso próprio socorro, isto é, que não deixemos que a nossa angústia nos paralise e que, apesar dela possamos lutar para obter da vida àquilo tudo a que temos direito, até porque o "socorro" externo acaba se localizando no patamar de uma miragem, como o oásis no deserto.

Claro é que, podemos nos machucar muito mais ao tentar criar mecanismos para que não nos machuquemos. Acaba-se por se fazer tanta assepsia, que  acabamos por não criar anticorpos. Isso tanto vale para a saúde física quanto para a saúde mental.

Espero ter podido levantar alguns pontos de reflexão, para os quais me coloco à disposição.

Acesso à Plataforma

Assine a nossa newsletter