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A psicopatologia forense às voltas com a simulação do suspeito

Resumo

Simulação em clínica psi forense tem sido um tema desprezado pela pesquisa. À medida que a sociedade exige maior precisão nas avaliações periciais psico-forenses, cresce a relevância do tema para os clínicos que militam nessa área. Ademais, a testagem neuropsicológica constitui-se, na atualidade, em ferramenta de importância tanto na detecção e avaliação quanto na documentação de simulação. Este artigo apresenta uma revisão do assunto, incluindo dois casos periciais a título de ilustração.

Introdução

Apesar de ser matéria conhecida desde os primórdios da história, mencionada inclusive pela Bíblia (quando David, estando nas mãos do rei de Gath, escapa da perseguição de Saul através da simulação de loucura, babando e arranhando a porta com suas unhas), simulação tem sido desprezada pela pesquisa psicoclínica contem­porânea. Com relação aos principais tratados psiquiátricos, apenas mais recentemente o tema tem sido abordado com alguma profundidade. É possível que isto se deva, em parte, ao apogeu da influência da corrente psicanalítica, que tendia a ver simulação como uma forma de doença mental. Exemplificando, para Eissler, simulação seria "sempre um sinal de doença, freqüentemente mais grave do que um transtorno neurótico, pois diz respeito a uma parada no desenvolvimento em uma fase precoce". De forma contrastante, Wer­tham assinalou haver "uma superstição estranha, inteiramente infundada, inclusive entre clínicos psi, acreditando que se alguém simula loucura, deve possuir algo errado mentalmente, como se um homem são, ameaçado pela cadeira elétrica, não fosse agarrar-se à primeira oportunidade que aparecesse". Na Classificação Internacional de Doenças (ClD-10), simulação está listada como "condição não-atribuível à doença mental", en­quanto que no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Diseases (DSM-IV) encontra-se sob a rubrica "condições adicionais que podem ser foco de atenção clínica". Portanto, inequivocadamente, ela não deve ser vista como doença, e sim como um comportamento. Mas deve ser ressaltado que se trata de um diagnóstico altamente específico, inicialmente vinculado à criminalidade e ao meio militar e, mais recentemente, a compensações financeiras.

Definições

Deve-se distinguir simulação (fingir sintomas que não existem) de dissimulação (disfarçar ou minimizar sintomas existentes). Já o exagero grosseiro e consciente de sintomas existentes pode ser denominado simulação parcial. Denomina-se metassimulação a perseverança em exteriorizar sintomas ou síndrome já sofridos anteriormente. Atribuir sintomas atuais a uma causa remota, sa­bidamente sem relação com os mesmos, constitui falsa imputação. Simulação oportunística consiste

em explorar evento fortuito ou condição médica (e não apenas determinado sintoma).

Já o transtorno factício, com status de enfer­midade, implica uma necessidade intrapsíquica de manter o papel de doente. Apesar de nem sempre ser fácil, deve-se fazer esta distinção, levando-se em conta, em especial, o sofrimento efetivamente apresentado pelo paciente. Para alguns autores, este transtorno, relacionado a motivações in­conscientes, levaria o indivíduo a uma carreira hospitalar, enquanto que a simulação, tipicamente, conduziria à carreira forense, na esfera judicial. A eventual existência de um transtorno factício, com motivações neuróticas e inconscientes, não deve fazer o examinador crer que a simulação não existe ou que é um diagnóstico discutível em si mesmo, como querem fazer crer alguns autores. Por outro lado, consideramos que as eventuais impli­cações legais decorrentes do comportamento de simulação, apontadas por esses mesmos autores, em face das variadas legislações, fogem ao escopo do presente trabalho, não devendo, a meu ver, novamente nortear a conduta de examinadores do Campo Psi.

São cinco as razões principais que levariam um indivíduo à simulação de doença mental:

1 – criminosos tentando evitar punição por pre­tensa insanidade quando do cometimento do crime;

2 – tentativa de evitar convocação para serviço militar, de obter liberação de deveres militares ou, ainda, de evitar participação em combate;

3 – busca de ganhos, compensações ou benefícios por pretensos danos psicológicos;

4 – busca de acesso a drogas psicotrópicas ou transferência para hospitais psiquiátricos, com o fim de facilitar fuga ou obter mais conforto, por parte de presos;

5 – acesso à internação psiquiátrica para evitar detenção ou, ainda, para obter uma cama e três refeições.

O aspecto do ganho é importante. Para Helio Gomes, "ninguém finge desinteressadamente; aquele que agisse assim não seria simulador, mas um verdadeiro psicótico".

Prevalência e clínica da simulação

Não temos dados exatos sobre a prevalência de simulação de doença mental, tanto na clínica psi em geral quanto em psicopatologia fo­rense. A literatura registra números que variam de 1% a 5% na clínica e de 10% a 20 % no meio forense.

Classicamente, simulação é descrita como sen­do relacionada a personalidades desmotivadas ou desajustadas, tais como anti-sociais ou imaturas em geral, ou ainda ao uso/abuso de álcool/drogas. Freqüentemente há história de instabilidade, al­coolismo, histórico criminal e problemas militares. Evidentemente, é raro de ser detectada em indiví­duos com histórico de adequação, competência e sucesso.

Simuladores são atores, representando suas psicoses da forma como as compreendem. Se­gundo Störring, devido ao fato de (o simulador) desconhecer a diferença entre sintomas e síndro­me, ele fingiria sintomas isolados, muitas vezes reunindo-os indiscriminadamente, de tal sorte que o seu conjunto não corresponderia a uma doença – como, por exemplo, lacunas inverossí­meis de memória paralelamente a uma adaptação adequada às situações de vida. O contato prévio com doentes mentais, seja devido a internações psiquiátricas prévias por razões fortuitas, seja devido à presença de familiares enfermos, pode facilitar a simulação.

O leigo tende a equiparar comportamento estranho e inesperado à loucura. Assim, com fre­qüência, simuladores acreditam que quanto mais bizarramente se comportarem, mais psicóticos parecerão. Contrastando com enfermos esquizo­frênicos, quase sempre relutantes em discutir seus sintomas, os simuladores, com facilidade, chamam a atenção para sua doença. Certo simulador afir­mava ser um insano lunático na ocasião em que levou a cabo o assassinato de seus pais, estando sob a influência de alucinações que "me ordena­ram matar em meu estado demente".

Também, de forma diversa do que crêem muitos simuladores, que referem o início súbito de idéias delirantes, estas se desenvolvem no curso de várias semanas. Os simuladores freqüentemente comportam-se de forma inconsistente com seu alegado delírio, que parece ter para eles impor­tância infinitamente menor do que o verdadeiro eixo que constitui na vida de genuínos pacientes esquizofrênicos.

Na simulação de alucinações/delírios, Resnick propôs os sinais a seguir, que indicariam a presença de simulação.

Alucinações:

. contínuas, ao invés de intermitentes;

. vagas ou inaudíveis;

. não-associadas a delírios;

. expressas de forma artificial;

. ausência de estratégias para diminuir as aluci­nações auditivas;

. relato de obediência a todas as alucinações imperativas.

Delírios:

. início ou término abruptos;

. inclinação a chamar a atenção para as idéias delirantes;

. condutas inconsistentes com o delírio;

. conteúdo bizarro, mas sem transtornos no pensamento.

Os sintomas relacionados à forma do pen­samento esquizofrênico, como interrupções, incoerência, neologismos e descarrilamentos, são de simulação bastante difícil, sendo, portanto, ra­ramente encontrados nesta situação. Dificilmente também simuladores apresentarão os sintomas característicos da esquizofrenia residual, que são empobrecimento da afetividade e volição, concretude de linguagem, pensamento bizarro e perseveração. Por outro lado, na simulação de psicose, simuladores freqüentemente incluem deficiências na memória ou na cognição.

Nas outras síndromes psiquiátricas, Ingenieros lembra a simulação de melancolia, com tristeza, redução da psicomotilidade e recusa de alimentos, que têm por objetivo despertar a piedade dos juízes. Simulando depressão, um indivíduo pode recusar alimentos por meses e chegar à alimenta­ção por sonda. A face melancólica simulada, no entanto, não incluirá a testa caracteristicamente franzida, especialmente na ausência de observa­dores. Ademais, faltará a flutuação circadiana dos sintomas, bem como os correlatos somáticos da depressão, como a constipação. Os movimentos corporais podem ser voluntariamente lentificados, mas faltará a inclinação de tronco e cabeça, bem como a flexão de joelhos e cotovelos observadas na depressão melancólica.

Já o mutismo apresenta problemas especiais. Abrir mão de falar por períodos prolongados não é um sacrifício simples e geralmente relaciona-se à ameaça de graves sanções ou, ainda, a importantes compensações. Deve-se lembrar que, no estupor depressivo, o mutismo se acompanha de inibição motora universal. Já na catatonia, a pseudoflexibili­dade de cera é de difícil manutenção por períodos prolongados.

Contemporaneamente, especialmente após a guerra do Vietnã, o transtorno de estresse pós-traumático (TSPT) constituiu-se em diag­nóstico bastante suscetível de compensações e reparações. Ele se baseia no relato individual de sintomas subjetivos, sendo o amplo acesso aos cri­térios diagnósticos, tanto do DSM-III-R quanto do DSM-IV, e um facilitador adicional de eventuais fraudes. Uma abordagem sugerida é a avaliação da personalidade prévia: um indivíduo ajustado e bem-sucedido dificilmente se inclinaria à simu­lação. Simuladores tenderão a um mau histórico social e empregatício, sendo o perfil de dificul­dades atuais uma mera continuidade do que já se verificava anteriormente. Por outro lado, uma incapacidade para o trabalho, conseqüente à enfermidade, possivelmente coexistirá com capa­cidade preservada para atividades recreacionais ou de lazer, o que não se observa no TSPT genuíno. Também uma tenacidade persistente na manuten­ção da demanda legal coexistirá com a (alegada) depressão e incapacitação geral. Freqüentemente nota-se que informações sobre disfunção sexual ou pesadelos são de difícil obtenção junto a simula­dores. Com relação aos pesadelos, pacientes com TSPT genuíno tendem a variar o tema, ao contrário do que geralmente se supõe.

Uma última questão deve ser destacada. No estudo de Anderson & cols., inúmeros simuladores relataram sentir que não deveriam dar respostas corretas aos quesitos, tendendo a empregar para­respostas (vorbeirden). Por outro lado, autênticos pacientes com demência tendiam a respostas verdadeiramente disparatadas. Esta observação, inclusive, tem levado diversos autores a propor a Síndrome de Ganser como sendo uma forma de simulação.

A entrevista com o simulador

Uma série de dicas é sugerida pelos autores para utilização na entrevista com suspeitos de simulação. Para Resnick, a hipótese de simulação deve ser aventada na avaliação de qualquer pacien­te. Evidentemente, a conclusão definitiva deve levar em conta o todo do exame, e não perguntas ou avaliações isoladas: não há, enfim, teste ou exame que seja patognomônico de simulação.

Fato freqüente na entrevista com simuladores é a presença de contradições, seja nos seus relatos sobre a doença, seja no confronto de sua versão com outras evidências ou, ainda, entre sucessivos relatos. Quando flagrados em uma contradição, simuladores tendem a irritar-se ou, então, a rir embaraçados.

Freqüentemente, simuladores respondem a perguntas sobre detalhes de sua enfermidade com um não sei, o que significaria que simples­mente não sabem o que responder. Devemos acrescentar que se trata, também, da mais simples resposta para quaisquer perguntas. Além disso, simuladores podem repetir as perguntas formu­ladas, responder lentamente ou, ainda, manter longos silêncios, numa tentativa de ganhar tempo para pensar em possíveis respostas. Outro erro habitual, como ainda ressalta Resnick, é a crença de que nada deve ser lembrado corretamente, resultando daí a variante não me lembro, aplicada com freqüência a questões como próprio nome, idade ou endereço, especialmente no início do exame.

Não raro, simuladores tentam controlar as entrevistas, comportando-se de forma bizarra ou francamente intimidadora. Nesses casos, o clínico deve evitar a tentação de encerrar a entrevista precocemente, pois o tempo está a seu favor através, por exemplo, do cansaço, que diminui a capacidade de manter posturas falsas. Não raro, simuladores acusam o entrevistador de considerá-Ios farsantes, comportamento bastante improvável em psicóticos autênticos. Seja como for, é contraproducente, como já foi assinalado por Kretschmer, tentar desmascarar o simulador, pois tal manobra está fadada ao fracasso.

Perguntas sobre sintomas improváveis de­vem ser feitas no intuito de observar se haverá endosso aos mesmos. Por exemplo, "você já acreditou que automóveis podem pertencer a uma seita religiosa?" Em minha prática, tenho empregado a pergunta "quantas patas tem um cachorro?" com o intuito de facilitar a avalia­ção (vide caso 2). Sugere-se, enfim, mencionar quaisquer sintomas facilmente imitáveis, mas não-presentes no exame. O seu surgimento ulterior seria sugestivo de simulação.

Testagem neuropsicológica, tendência à resposta negativa e simulação

No contexto de uma avaliação neuropsicoló­gica, simulação é a "produção voluntária de mau desempenho, com o propósito de obter ganho ou benefício externo reconhecido". Já a tendência à resposta negativa (TRN) é a "produção de escores mais patológicos ou deficientes do que seria espe­rado, com base no nível de aptidão do indivíduo".

A TRN pode associar-se a fadiga, desinteresse, es­tados ansiosos ou depressivos.

Ou seja, a caracterização de simulação, do pon­to de vista neuropsicológico, exigiria a obtenção de informações adicionais relacionadas à situação motivacional do examinando.

Para Pankratz, deve-se suspeitar de TRN em testagem neuropsicológica quando houver:

. presença consistente de respostas quase corretas (para-respostas);

. marcante discrepância entre os escores obtidos e os esperados, com base no background indi­vidual;

. respostas bizarras ou improváveis a itens dos testes;

. diferenças inexplicáveis entre resultados de testes similares;

. presença de comportamentos inconsistentes com os resultados obtidos em testes.

A atitude do paciente durante a realização dos testes pode ser ilustrativa. Sinais de esforço exagerado, associados a resultados muito ruins, podem ser um indicativo de simulação. Estudos com simuladores voluntários indicaram a presença de lentidão e hesitação exageradas.

A literatura registra diversos testes neuropsi­cológicos específicos para detecção de simulação. Desses, cito o teste rey de memória para itens, que consiste em 15 itens apresentados em matriz com três colunas e cinco linhas. Nele, o examinando será advertido de que terá dez minu­tos para memorizar e reproduzir, posteriormente, o máximo de itens. É teste simples, pois os itens estão distribuídos de forma lógica, consistindo em números, cores ou figuras geométricas. Ele deve ser apresentado previamente a quaisquer outros testes de memória para que sua simplicidade não se torne óbvia. Em minha prática, tenho utilizado o teste da cópia do desenho, simplificação do Ben­ton visual retention test, e que consiste na cópia, pelo examinando, de figuras geométricas simples (triângulo, quadrado e círculo). Na ocorrência de simulação, verifica-se, com freqüência, a presença de distorções espaciais grosseiras, encontradas apenas em quadros demenciais avançados.

Vou citar a seguir, à guisa de ilustração, dois casos de avaliação pericial psiquiátrico-forense efe­tuados na Penitenciária do Estado no decorrer dos últimos anos, envolvendo simulação. Diversos dados, além dos de identificação, foram alterados, visando a preservar o sigilo.

Caso 1

I.L.C., branco, sexo masculino, brasileiro, natural do Rio de Janeiro, engenheiro, 58 anos, casado, católico, residente em Campo Belo.

A ação visava a restabelecer aposentadoria por invalidez, concedida e posteriormente cancelada após exame de revisão efetuado por junta médica que concluíra pelo diagnóstico de simulação ["si­mulando doença" (sic)].

Refere parto normal, a termo, com desenvol­vimento intelectual e psicomotor sem anormali­dades. Era criança peralta, tendo sido apelidado de diabinho. Na escola foi aluno regular, não repetindo ano e completando o nível superior (é engenheiro). Poucos amigos na infância. Refere medo de escuro e de lugares fechados, que afirma persistir até os dias de hoje.

Seus padecimentos se iniciaram quando, tra­balhando em uma indústria química, foi escalado para a brigada anti-incêndio, considerando tal situação estressante (relata que não suportava nem o ruído da sirene). Passou a apresentar "medo de ir ao centro e sistema nervoso embolado". Relata também "medo das pessoas (…) era como se elas estivessem me perseguindo". Procurou tratamento com psiquiatra, que recomendou seu afastamento do serviço, o que, posteriormente, resultou em sua aposentadoria. Nunca sofreu internações psiquiá­tricas. Realizou, porém, inúmeros tratamentos psiquiátrico-psicológicos em consultório particular.

Inicialmente, foi diagnosticado como apresen­tando esquizofrenia, predominando as manifesta­ções paranóides. Posteriormente, como portador de esquizofrenia esquizoafetiva, síndrome de Cotard, síndrome de Capgras e esquizofrenia in­diferenciada de curso contínuo. Por fim, o clínico que recomendou sua aposentadoria descreveu a presença de irritabilidade, intolerância a toda e qualquer dificuldade, ansiedade e fácies de sofri­mento e esquizofrenia esquizoafetiva.

Porém o exame realizado por perito previden­ciário constatou: "ótimo estado geral, esbelto, (…), lúcido, globalmente orientado, não evidenciando sintomas produtivos e alterações do humor mar­cantes". O examinando pediu "para abrir a porta da sala de exame, pois não gosta de lugares fe­chados" (sic). Concluiu: "Não há invalidez". Alguns meses após novo exame, encontrou-o "lúcido, orientado, pensamento coerente, boas condições de higiene e nutrição, pragmatismo preservado", concluindo com o diagnóstico "simulando doen­ça". Finalmente, o terceiro exame constatou "condições físicas e mentais bem preservadas, o que contradiz (…) descrições do problema. Lúcido, orientado, pensamento organizado, juízo crítico e de realidade presente, sem distúrbios psicóticos, (…), atenção mantida, sem qualquer distúrbio cog­nitivo, esmaecimento afetivo. Não há invalidez". Diagnóstico: síndrome depressivo-reativa.


Exame psíquico

Encontro o examinando na sala de espera, recostado em uma cadeira, com os olhos cerra­dos, aparentemente cochilando. Assim que foi chamado, prontamente levantou-se e dirigiu-se à sala de exame. Mostrou-se cooperativo, apesar de, por vezes, demorar-se nas respostas ou, ainda, de­monstrar certa rispidez, transparecendo irritação. Ao falar de seus hobbies, diz gostar "de mexer no quintal", passando a fazer pequena explanação sobre as mudas de pau-d'água que vira no pátio do hospital. Relata que, por vezes, acha que "tem pessoas com cacos de vidro querendo passá-Ios" nele. Em certo momento da entrevista, afirma en­fático, "haver outras pessoas na sala". Ante a nossa surpresa, insiste, olhando em volta com os olhos arregalados. Ao lhe perguntarmos onde estavam tais pessoas, diz com convicção: "Ali", apontando para um ponto aparentemente ao acaso da sala. Ao mudarmos de assunto, não dá mais importân­cia a esta questão. Sabe a data e o local onde se encontra, fala de forma clara e coerente, modula seus afetos no decorrer da entrevista.

Por vezes, o examinando expressa revolta contra a previdência, afirmando: "Eu não tenho mais paz", chegando a ameaçar: "se suspenderem minha apo­sentadoria, eu me mato". Salvo o episódio narrado anteriormente, não há outras evidências de que vê ou ouve algo diverso de mim. Questionado, diz que, em época anterior, "parecia que as pessoas me perseguiam" (sic), mas não fornece detalhes ou mesmo aparenta maior preocupação com esta questão. O examinando faz longos silêncios, per­manecendo cabisbaixo, ou responde às perguntas formuladas de forma brusca e um tanto intimida­dora. Fala de seu medo de lugares fechados, que o levou a mudar-se para a zona rural. Diz que, para vir à entrevista, enfrentou dificuldades, pois não faz uso de transportes públicos nem se desloca de sua casa ou nela permanece só.

Diagnóstico

. CID-10: agorafobia (F 40.0) + episódio depres­sivo moderado (F32.1) no passado.

. DSM-IV: agorafobia sem história de transtorno do pânico (300.22) + transtorno depressivo          não-especificado (311).

Nas respostas aos quesitos, foi indicada a inexistência de invalidez.

Comentário

No caso, ficou evidente ao exame a simulação de quadro psicótico, apesar da presença de quadro psicopatológico de feitio fóbico de longa evolução como pano de fundo. Os sintomas alucinatórios inconsistentes, dissociados de um quadro deliran­te, bem como a atitude global, teatral e psicopato­logicamente inconsistente, além da boa evolução sem sinal de deterioração, incluem elementos que possibilitam o diagnóstico. Ressaltem-se os longos silêncios, bem como as respostas ríspidas, que vi­sam a intimidar o examinador. Ficou evidente, em suma, a inexistência de quadro esquizofreniforme que justificasse a invalidez.


Caso 2

J.C.L., pardo, sexo masculino, brasileiro, natural da Bahia, desempregado, sem religião, casado, 59 anos, residente em São Paulo.

A ação requeria a equiparação do examinan­do a ex-pracinhas (ex-combatentes da 2ª Guerra Mundial), tendo em vista sua participação em operações bélicas na região da Faixa de Gaza como membro do Batalhão Suez das Forças de Paz da Organização das Nações Unidas (ONU), na década de 1960, participação esta da qual ter-­lhe-ia advindo alienação mental, sendo requerida perícia psiquiátrica pelo juízo.

Não houve possibilidade de se obter informa­ções relativas a parto e desenvolvimento. J.C.L. diz não se lembrar se foi à escola, posteriormente diz ter estudado. A esposa ignorava se J.C.L. estudou, alegando haver ele sido criado por tios. Segundo ela, ele devia ser alfabetizado, apesar de ter "letra ruim" (sic). Quando o conheceu, com 26 anos, era um jovem normal, trabalhando em uma serralheria, onde varria e ajudava a carregar. Lá trabalhou por oito anos. "Agrediu o homem, foi mandado embo­ra. Era nervoso quando via brigas, queria separar." Não conseguiu outros empregos.

A esposa relata que J.C.L. já era nervoso, mas ela não percebia. Há 15 anos, começou a apre­sentar crises piores, chegando a jogá-Ia no chão (sic). Certa feita pendurou-se em seu pescoço, deixando-a com hematomas. "Quando escutava tiro lá onde moramos, gritava: João! me jogava no chão, e se jogava sobre mim."

J.C.L. nunca realizou tratamentos psiquiátricos re­gulares nem sofreu qualquer internação psiquiátrica. Já foi atendido em uma emergência por neurologista (sic), que lhe receitou calmantes. A esposa informa fornecer-lhe medicamentos, a seu critério, que conse­gue "com um conhecido", quando está em crise. Não porta quaisquer receitas médicas consigo. Quando lhe pergunto se tem conhecimento do diagnóstico psiquiátrico de seu marido, diz: "Sei lá, não entendo. Para mim ele é maluco".

Exame psíquico

O examinando comparece acompanhado da esposa, de seu advogado e de um amigo. O segundo dirige-se a mim, informando estar ali "a pedido do juiz", pois o examinando seria pessoa violenta e sua presença poderia ser necessária (sic). Tranqüilizo-o, dispensando sua presença na sala de exame. Entrevisto o examinando na presença de sua esposa e a sós. Adicionalmente, entrevisto a esposa.

Apresenta-se em regular estado de higiene, mas com vestes surradas e sujas. Traja camiseta com nome de candidato eleitoral, jeans e chinelos. Seu desleixo contrasta com o grupo que o acompa­nha. Mostra atitude pouco colaboradora e pueril, aparentando grande dificuldade em se expressar verbalmente, tremendo e gaguejando. Evidencia, porém, atenção (e compreensão) ao que se passa a sua volta, malgrado o ar de alheamento que mantém por todo o exame.

É conduzido e amparado por seus acompa­nhantes, como se impossibilitado de deambular desassistido ou, mesmo, de permanecer sentado de forma estável. Continua, no entanto, sentado em sua cadeira. Aponto-lhe o nome impresso em sua camiseta e pergunto-lhe se votou nas eleições. Responde quase inaudível: "Não sei o que é isso". Pergunto-lhe como se sente, diz: "É tonteira". De repente, treme muito e descalça os chinelos com os pés. Digo-lhe para calçá-Ios, pois o chão está frio, no que ele acede. Pergunto-lhe sua idade, diz: "65". Fala não saber onde mora. Pergunto-lhe se conhece a pessoa que está a seu lado e ele diz: "É a Ângela. Ela cuida de mim", em tom pueril. E prossegue: "João é amigo, ele gosta de mim, é meu colega". Mostro-lhe uma nota de um real e lhe pergunto o que é. Diz: "É papel". Subitamente, em meio a tremores, pega a nota e faz menção de colocá-Ia na bolsa de sua esposa. Pergunto-lhe se ele foi do Corpo de Pára-Quedistas, diz: "Não sei". Pergunto-lhe se é ex-combatente, ele sorri e faz mímica, como se empunhando uma arma, ri, esboça uma gargalhada. Diz: "É exército, eu gosto do exército". Muda então sua expressão, sacode­-se na cadeira, treme acentuadamente e deita-se no solo, em um simulacro de queda. Advirto-o, educada, mas firmemente, para não voltar a fazer aquilo, pois teria de suspender o exame, o que atra­saria nossa tarefa. O examinando volta a sentar-se, subitamente refeito, silencioso e esfregando suas mãos. Pergunto-lhe se já escutou vozes, responde que sim: "Chamam meu nome, eu vou ao portão, eles querem me pegar". Pergunto-lhe se isto acon­tece também dentro de casa. Responde: "Dentro de casa não, o portão está fechado". Pergunto se já lhe tentaram fazer algo. Responde: "Eu corro para dentro de casa e fecho a porta". Pergunto-lhe se recebe algo do exército. Nega com a cabeça, em seguida diz: "Não".

Pergunto-lhe quantas patas tem um cão. Res­ponde: "Au, au, au" (três vezes). Pergunto-lhe, então, quantas patas tem um gato. Segue-se um longo silêncio, no decorrer do qual o examinando contempla sua mão esquerda com a fisionomia crispada, contando nos dedos, contorcendo-os e tremendo, como se fazendo grande esforço. Passados dois ou três longos minutos, diz em tom de voz baixo: "Três, três, três". Digo-lhe, então: "Pense bem, esta pergunta é muito importante". Volta a ficar em silêncio, tremendo e contemplando as suas mãos e enquanto as torce finalmente repe­te: "Três, três, três", passando a rir teatralmente, quase gargalhando. Pergunto-lhe, então, o que um cachorro e um gato têm em comum. Diz: "Eles brigam", e ri. Pergunto-lhe se tem colegas, diz: "O João é meu amigo, diz que é para eu ficar quieto que eu ganho pirulito". Pergunta-me, pue­ril, se vou lhe dar um pirulito. Pergunto-lhe se já esteve internado. Responde: "Só durmo em casa". Pergunto o que costuma fazer em casa. Diz: "Eu durmo, dormindo ninguém me pega". Pergunto­-lhe se já almoçou, sorri em silêncio, fazendo com as mãos a mímica de se alimentar. Pergunto-lhe se sabe escrever. Diz: "Sabia, agora não sei mais não". Entrego-lhe uma caneta e lhe peço para copiar figuras geométricas simples. Permanece por longo tempo contemplando o papel, treme intensamente, contorce a caneta nas mãos, como que vacilando, faz diversos trejeitos, porém não a deixa cair. Finalmente, esboça um círculo canhestro e imperfeito, pouco mais do que um garrancho.

Exames complementares

Aplicação parcial do teste do desenho (cópia e desenho espontâneo, descrito anteriormente).

Resultado: evidenciada incongruência entre nível cognitivo/intelectivo (resultado esperado) e graves dificuldades construccionais verificadas no resultado obtido.

Ademais, dos autos do processo constava do­cumento com a assinatura do examinando, com letra firme, clara e legível, incongruente com o resultado do teste de cópia do desenho.

Assim, concluiu-se pela presença de simulação de resultado deficitário.

Diagnóstico

CID-10 – simulação – Z 76. 5

DSM-IV – simulação – V 65. 2

Comentários

Os elementos que indicam simulação são inúmeros: a atitude pueril, incompatível com o passado laborativo e militar do examinando; os sintomas neurológicos (ataxia/abasia, tremores, queda) inconsistentes, somando-se às idéias per­secutórias mal caracterizadas; as crises descritas, um arremedo caricato do que seria um transtorno de estresse pós-traumático; a inexistência, enfim, de elementos que configurem qualquer síndrome psiquiátrica consistente. A presença de para-res­postas comprova a compreensão dos quesitos formulados. A testagem efetuada confirma a incon­sistência do que é apresentado. Ademais, a atitude psicológica do examinando, avaliada através dos conteúdos expressos verbalmente, evidencia uma postura claramente defensiva e dissimuladora. O comportamento e os relatos dos acompanhantes complementam a atitude simulatória.


Conclusões

Simulação em psicopatologia clínica, ao contrário do que tradicionalmente davam a entender os tratados, é possibilidade que nunca deve ser desprezada, constituindo-se, inclusive, em ocorrência relativa­mente freqüente na prática psico-forense.

O estudo especializado e sistemático do tema possibilitará o municiamento do profissional da área com estratégias de abordagem que facilitarão a veracidade e a precisão na sua tarefa cotidiana de avaliação forense.

(*) Artigo apresentado por mim, em Simpósio da Justiça de São Paulo, como perito criminal, em nov/2006.

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