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Histórico e discussão do diagnóstico histeroepilepsia

Resumo

Faço uma revisão histórica do conceito de histeroepilepsia (leia-se hístero-epilepsia). Após descrever alguns casos clínicos, apresento algumas considerações psicopatológicas defendendo a existência e a autonomia da entidade.

A histeroepilepsia, ao contrário da histeria, não é mais psicogenicamente desencadeada pura e simplesmente. O paciente passa a "sofrer" sua doença como na epilepsia e não apenas "vivê-Ia" como na histeria. É, portanto uma "verdadeira" doença mental, no sentido dado a esta por H. Ey, pois aqui o "Homem é tocado em sua liberdade".

Clínica

Desde que Landouzy, em 1846, descreveu sob o termo de histeroepilepsia, ataques convulsivos histéricos se apresentando sob a forma de ataques epilépticos, uma confusão se criou em torno deste termo, muitas concepções surgindo longe da descrição inicial. Em uma revisão, Matarazzo resume algumas questões nosológicas:

a) a hipótese de histeroepilepsia é aceita como implicando a concomitância ou a associação de duas doenças de natureza diferente. Já Charcot distinguia a histeria e epilepsia com crises mistas e com crises distintas. Sommer admitia que logo as duas afecções são associadas, é sempre com a epilepsia que se inicia e sobre esta vêm-se ajuntar os fenômenos histéricos. Moebius só admite o termo histeroepilepsia como um diagnóstico de espera.

b) Ziehen admitia formas de passagem entre a histeria e a epilepsia, que se poderia denominar histeroepilepsia. Biswanger, Hoche, Margulier admitiam a existência de "formas mistas", formas de passagem ou casos limites. Petran sustentava a existência da histeroepilepsia. Kraulis encontrou um número muito elevado de epilépticos nos colaterais de pacientes histéricos, e Luxenburger encontrou, nas famílias de epilépticos, um número oito vezes maior de histéricos que no grupo controle.

c) Todavia, a maior parte dos autores se recusa a aceitar a noção de histeroepilepsia. De acordo com Bratz e Falkenberg, o termo histeroepilepsia foi empregado por certos autores como sendo uma espécie de metade histeria e metade epilepsia nos casos de diagnóstico difícil. Para estes autores se trata, nos casos de associação, sobretudo de uma neurose adicional à epilepsia, sendo epilepsia e histeria duas afecções completamente diferentes. Esta distinção entre as duas doenças foi igualmente aceita por Lugaro e Gruhle. Este último autor, em caso de associação de uma afecção epiléptica orgânica e de fenômenos neuropáticos, emprega o termo histerização. Para F. Matarazzo, o termo histeroepilepsia é impróprio e não pode nada mais que criar confusões. Nos casos de combinação poder-se-ia admitir uma combinação sem interferência ou com interferência (histerização epiléptica ou mecanismo psicógeno interferindo no desencadeamento da crise).

Para alguns, a crise motora epiléptica é também uma crise expressiva tendo além do mais um valor de expressão simbólica; esta parece ser a opinião de muitos psicanalistas.

Dublineau descreve um "terreno convulsivo": "… conhece-se desde há muito as similitudes de sintomas entre a histeria e epilepsia tétrade da infância (enurese, convulsões, terrores noturnos, sonambulismo); dificuldade freqüente de diagnóstico baseado sobre os sinais da crise, associação clássica da histeria com epilepsia, terreno psíquico do tipo: cóleras, misticismo, estados oniróides disestésicos, teatralismo, mitomania. Em muitos casos, tudo se passa como se o indivíduo interpretasse seus sintomas, inclusive a crise, em função do tipo de base. A crise seria, portanto, tanto mais "epiléptica" quanto mais marcados fossem os componentes epilépticos. No mais, a variabilidade das crises no curso da evolução poderia ser compreendida como conseqüência de fluências psico-humorais às quais o sujeito reage mais diversamente que às instâncias fixadas em uma forma somática".

Fitzgerald admite que as diferenças são bem mais numerosas que as semelhanças entre as duas afecções. Não obstante, observa certas aproximações entre histéricos e epilépticos de um ponto de vista temperamental, apesar de que diferem quanto ao caráter e à personalidade total. Os traços de semelhança se encontrariam quase que exclusivamente nos doentes cujas crises epilépticas se iniciaram em uma idade precoce.

Kerahmann assinala modificações eletroencefalográficas nos casos situados nas fronteiras com a epilepsia. Em 114 portadores de manifestações sincopais, encontrou em 745 "disritmias" bilaterais síncronas, entre as quais 33% apresentavam ondas lentas a 3hz e pontas; em 11% variantes do ritmo a 3hz; em 30% disritmias a 6c/s. Álcool, fadiga, distúrbios gástricos e vômitos foram associados a estes quadros que denominou "encéfalo-síncopes".

Gastaut por sua vez nos lembra que um epiléptico pode perfeitamente possuir um traçado normal. Kasserer & cols. descrevem um caso de um paciente que em seguida a uma emoção violenta faz uma amaurose que se acompanhava de uma indiscutível "disritmia" lenta. Vercolleto observa que: a – certos sujeitos começam com uma síncope vasovagal (de Nisll e Arnell) e continuam por uma crise epiléptica; b – ­alguns destes pacientes são, do ponto de vista da personalidade, muito próximos dos pacientes histéricos.

Mommes afirma que de seis doentes que serviram de base à descrição da grande crise de Charcot, cinco eram epilépticos temporais. Gastaut pensa que estes casos de histeroepilepsia em sua maioria são pacientes acometidos por lesões perifalciformes da circunvolução hipocampal e da superfície inferior do lobo temporal.

Marchand e Ajuriaguerra pensam que muitos quadros classificados como tal, tratam-se de crises epilépticas "psicastênicas" de Oppenheim ou de epilepsias afetivas de Bratz, classificáveis dentro dos círculos convulsivos com a ajuda de exames paraclínicos.

Algumas entidades "nosológicas" dão conta da dificuldade de delimitação entre as crises epilépticas e histéricas, tais como os ataques vasovagais de Gowers, as síncopes de Nisll, as crises simpáticas diencefálicas de Penfield, as crises vasomotoras sincopais de Schulte, as crises do tronco cerebral de Pette, epilepsia estriada de Von Bogaert, epilepsia-catalepsia de Baruk etc. Alguns "acessos epilépticos" afetivamente desencadeados também vão no mesmo sentido.

Sutter lembra que alguns adolescentes epilépticos apresentam crises neuropáticas durante os episódios intercríticos, no seio intrafamiliar, com o objetivo de chamar a atenção ou de exprimir uma agressividade em direção ao meio. Estas crises diferenciam-se das epilépticas por seu teatralismo, por uma finalidade dos movimentos, ausência de micção, de mordida de língua e de ferimentos durante as quedas. Esta semiologia diferencial pode complicar-se em alguns casos de confusão pós-crítica, com agitação, gesticulação e delírios amnésticos que lembram os estados "crepusculares" histéricos.

Em nosso país, Saide(18), em um quadro didático apresenta algumas características diferenciais entre as duas afecções: na histeria, teríamos: um aspecto multiforme das crises, componente expressivo das mesmas, influenciáveis pela sugestão, perda gradual ou parcial da consciência, queda cautelosa, pupilas que reacionam por um piscar incessante, falta de mordedura da língua, ausência de sono pós-crítico, duração longa e repetida, ênfase dramática, cefaléia ulterior eventual e anterior ao ataque; já na epilepsia, teríamos: um desencadeamento da crise independente da situação, aspecto uniforme e elementar dos paroxismos, curso inalterável, perda súbita da consciência, queda brusca, pupilas arrestivas em midríase, mordedura da língua em metade dos casos, sinal de Babinski presente, sono terminal, duração de um a quatro minutos, amnésia e despreocupação posterior à cefaléia posterior. Para Ey (cit. por Saide(18) tanto a histeria como a epilepsia são doenças mentais por desorganizarem a consciência do ser; uma de modo mais agudo e outra de modo crônico (histeria).

Para Alonso Fernandez, só em casos em que a alternância entre crises histéricas e epilépticas parte da histerização epileptógena da personalidade, deve-se aplicar o diagnóstico de histeroepilepsia.

Aggernaes(1) (cit. Alonso Fernandez) fala de estados crepusculares mistos nos quais intervêm mecanismos histéricos e comiciais.

Para Marchand (1943), quando se supõe que a histeria convulsiva aparece depois do acesso epiléptico e o agudo global corresponde a uma histeroepilepsia, trata-se quase sempre de uma epilepsia pura; de outro modo, quando se supõe a transformação de crises histéricas em comiciais, deve pensar-se que já as crises iniciais eram epilépticas.

Paim(15) cita que no auge do domínio das idéias da escola constitucionalista, negou-se inteiramente a existência da histeroepilepsia. Esta atitude negativista se baseava no fato de que as qualidades por eles arroladas como próprias da histeria não coincidiam com as que eram atribuídas à epilepsia. A imaturidade emocional, a instabilidade afetiva, a sugestibilidade exagerada, a tendência à fantasia, à mitomania e à dramatização representariam traços de personalidade histérica, incompatíveis com os da constituição epiléptica, onde dominam a pobreza da fantasia, o estreitamento da ideação e a viscosidade afetiva. Paim continua: "Atualmente, não se coloca em dúvida a existência de certa correlação entre muitas manifestações nitidamente histéricas e determinados sintomas diencefálicos. A catalepsia subtalâmica quase não se diferencia da catalepsia histérica ou da catalepsia provocada pela hipnose. Alguns casos que determinam desregulação neurovegetativa súbita e de origem hipotalâmica, são semelhantes aos que precedem, acompanham ou seguem as crises histéricas". A este respeito, diz Von Bogaert: "A comparação dos estados pós-encefalíticos e histéricos mostra certa analogia do conteúdo e forma de apresentação; verifica-se nos dois grupos de enfermos uma sugestibilidade anormal e a labilidade neurovegetativa, freqüentemente do mesmo tipo. Tem-se observado, nas duas séries, uma participação importante dos fatores afetivos, tendência à iteração, ao contágio por vizinhança dos doentes, ao ritmo e à ausência de sistematização morfológica e certa analogia dos paroxismos motores. Em um ou outro caso parece tratar-se de fenômeno de desinibição que libera dispositivos de estruturas inferiores. Não se deve esquecer que as patologias orgânica e funcional utilizam em suas manifestações as mesmas vias e os mesmos centros. Sem duvida, é fácil verificar que certas supressões de função não resultam em destruição, mas de incapacidade de sinergia entre sistemas funcionais".

Richer(17) diz que na crise de histeroepilepsia é possível observar os mesmos fenômenos que se observam na epilepsia: 1 – tetanização súbita dos músculos de todo o corpo, acompanhada de espasmos viscerais e perda do conhecimento. 2 – convulsões clônicas dos músculos tetanizados. 3 – resolução geral e estertor. Do ponto de vista do observador não prevenido, poderá considerar como um quadro de verdadeira epilepsia aquilo que, na realidade, guarda apenas algumas aparências. Para Richer, a histeroepilepsia, clinicamente, é indistinguível da grande crise histérica de Charcot.

Charcot (cit. por Richer(17) admitiu que, na histeroepilepsia, observa-se uma segunda fase caracterizada pelas atitudes passionais ou de pose plástica. Nestes casos, a enferma guarda uma lembrança precisa de todos os acontecimentos e a sua descrição está em completo acordo com o que foi observado. Durante esta fase, a paciente se mostra insensível às excitações exteriores.

Mattson, entre 388 epilépticos, encontrou 34 com crises concomitantes de histeria. Ramani, entre 380 admissões em uma unidade especial para epilépticos, encontrou 31 pacientes com crises histéricas associadas.

Entre 40 pacientes com histórias de crises parciais complexas, Schenk & Bear(19) encontraram 13 com episódios dissociativos, fora dos períodos ictais. Doze eram mulheres. Os autores asseveram que os fenômenos epilépticos parciais antecederam os dissociativos; postulam então que as epilepsias temporais por determinar biologicamente a emergência de afetos reprimidos induzam uma manifestação histérica secundária para tentar impedir a chegada destes afetos "proibidos" ao sistema consciente: isto explicaria uma incidência muito grande de "personalidades múltiplas entre estas pacientes". Durante estes estados de "personalidade múltipla" ou segunda, as pacientes permaneciam alertas, atentas, com coordenação motora fina impecável; as crises podiam ser desencadeadas mediante sugestão. Muitas pacientes alternavam perfeitamente a lateralidade.

Aggernaes, no entanto, tem uma opinião contrária ao dizer que "somente distorcendo os casos poderíamos subdividir os pacientes em um grupo com obnubilação "epiléptica" da consciência e outro grupo com dissociação "histérica". Tal parece ter sido o caso do trabalho anterior, pois Schenk & Bear incluíram entre sua casuística casos que relatamos abaixo, para os quais não havia uma prova inequívoca de que se tratavam de uma epilepsia lesional. Como vimos acima, o EEG nestes casos pode demonstrar, com alterações inespecíficas, um distúrbio funcional cerebral condicionado por um fator extrabiológico sem ser necessariamente um indício inconteste de epilepsia.

1. Karen era uma jovem mulher com lentificação temporal bilateral. Ela era ansiosa, obsessiva, hipergráfica. Tinha dificuldade em controlar seu temperamento. Tinha a queixa de um sentimento estranho de que era duas pessoas separadas e começou a chamar a si mesma por dois nomes diferentes.

2. Jessica era uma moça que tinha episódios de pânico, despersonalização, déjà vu e déjà vécu, assim como estalos nos lábios. Ela notou uma mudança de personalidade desde o início de seus distúrbios: passou a ser uma pessoa triste e introvertida. Seu EEG mostrava pontas discretas bitemporais. Era muito religiosa e hipergráfica. Em alguns momentos, acreditava que o demônio estava em seu corpo, obrigando-a a ser agressiva com as pessoas. Foi a um padre para ser exorcizada e acha que obteve algum sucesso.

3. Azizah, uma mulher com 35 anos de idade, referia crises de agressividade, episódios de despersonalização, déjà vu, e "transes". Perguntou ao médico se poderiam haver duas pessoas em uma só. Ao EEG, pontas temporais direitas.

4. Carla, 37 anos, foco temporal anterior direito, de ponta, descreve episódios freqüentes de lapsos anômicos, sem saber onde está e quem é. Além disto, que tem "múltiplas personalidades": uma delas é muda e muito emotiva, enxerga tudo envolta em uma névoa marrom, a outra é sarcástica e vê colorido. Não tem amnésia depois destes períodos. É muito religiosa, hipergráfica, paranóide, emotiva.

Casos clínicos

A – Sidnei, com 13 anos de idade, vem encaminhada por "crises de nervos", que aparecem, sobretudo nos períodos hipnagógicos, durante os quais, rola no chão, aperta a cabeça com as mãos, fecha as mãos, fala incoerente, cai da cama, coça-se muito, crises às vezes desencadeadas em momento de muita emoção ou sugestibilidade. Apresenta uma grande imaturidade afetiva, muito dependente da mãe, e oposicionista.

B – Madna, com 22 anos de idade. Com três anos apresentou episódio convulsivo febril prolongado, e a partir daí episódios repetidos de crises: sente um cheiro ruim, coceira no nariz, contratura do membro superior direito e, eventualmente, perda completa da consciência, queda e crise tônica. De três anos para cá seu neurologista vem aumentando muito a dose e o número de anticonvulsivantes, pois vem tendo até três crises diárias. Internada em um serviço de neuropsiquiatria, verificou tratarem-se de crises histéricas do tipo dissociativa, alternadas com verdadeiras crises uncinadas. É uma paciente muito imatura, facilmente dada a transferências com os muitos médicos que cuidam de sua epilepsia e de um lúpus sistêmico (provavelmente induzido pelos anticomiciais) que apareceu há dois anos. Sente-se muito frustrada, pois seu reumatologista disse que jamais poderia se casar e ter filhos devido a sua doença. EEG e tomodensitometria: nada digno de nota.

C – João Carlos, com 33 anos de idade, há três anos começou a apresentar crises, durante as quais, caía ao chão, saía "fora de si", rolava, dizia que era outra pessoa, às vezes se machucava durante as quedas. Os acessos podiam ser desencadeados por emoções fortes ou indução. EEG com lentificação bitemporal da faixa delta.

D – Beatriz, com 18 anos de idade, passou a sentir dores constantes no peito e também nas pernas, há um ano. Posteriormente suas pernas começaram a ficar fracas, sofrendo quedas repentinas, enquanto andava.

Seu estado de saúde agravou-se, passando por uma forte recaída física, tendo sido internada por três vezes em hospital geral. Na época faz tomodensitometria cerebral, normal. Um EEG revelou episódios teta-delta durante a alcalose cerebral. Há um mês atrás, passou a sentir intensas dores de cabeça, seguidas de contração involuntária dos músculos flexores das mãos, braços, pernas e dos extensores das costas e pescoço. Numa destas crises, quando se encontrava em casa, repugnou veementemente seus familiares dizendo que não conhecia nenhum deles. Foi internada no Serviço de Neuropsiquiatria infanto-juvenil onde sofreu mais três crises em opistótono. Durante a internação recebeu anticomiciais e tratamento psicoterápico. Por sua própria vontade passou a freqüentar um centro espírita. Com um ano de follow-up, permanece hígida.

E – Inácio, com 16 anos de idade. Há três meses começou a ter desmaios com "tremedeira", dor corporal generalizada, cefaléia frontal supra-orbicular, vertigens, como fenômenos pré-ictais. Durante as crises perde a consciência, fica mais ou menos duas horas desacordado, com visão obnubilada, "moleza nas pernas", amnésia ântero-retrógrada por três horas como fenômenos pós-ictais. Refere anestesias por desencadeamento psicológico. As crises podem também ser psicogeneticamente induzidas. Bolo esofagiano.

F – Eni, com 19 anos de idade. Iniciou sua doença há três anos, acordando à noite, chorando e rindo. Há um mês antes da internação, apresentou crise de choro, desmaiou (rigidez, opistótono, mutismo e catalepsia pós-crítica) e passou a "falar coisas sobre um ex­-namorado" e "extravagâncias". EEG – normal. Respiração suspirosa. Queixa-se de "insatisfação amorosa".

G – José, com 35 anos de idade. Paciente foi encaminhado para o Serviço de Neuropsiquiatria, com queixas renitentes de sentir-se "entalado, empachado, dores no estômago, fígado, batedeira, coração "disparado", fôlego curto e falta de ar após as refeições. Diz ter iniciado os sintomas há três anos quando ao chegar de seu trabalho rural com um ligeiro mal-estar, tomou dois comprimidos de "Vitassay" e piorou. Foi internado com "suspeita de úlcera". A partir daí começou a sentir dores freqüentes no epigastro, deixando inclusive de trabalhar. Começou a ficar muito "nervoso", xingava palavrões, e aí "incorporado", caía ao chão, puxava os cabelos, procurava uma faca para se matar e aos circundantes, queria tomar veneno, batia com a cabeça na parede. Descreve suas crises: iniciam com um suspiro fundo, motivadas ou não por fatores emocionais; passa então a sentir "falta de ar", muda de voz, enrola as mãos, caía ao chão; às vezes saía correndo, com "vontade de fugir", olhava as pessoas e não as reconhecia, dizia coisas "que não queria" ou que achava estranha. Às vezes achava que conversava demais. Ficou muito "encabulado" com aviões.

Discussão psicopatológica

Como tratei no item referente à nosografia, penso que sob o termo "histeroepilepsia" se esconde uma grande variedade de quadros clínicos. No caso Madna, por exemplo, fica clara a superposição histérica à patologia de base: a epilepsia e por que não o lúpus. Sabidamente o sofrimento social e a regressão que a epilepsia impõe são fatores condicionantes para a eclosão de reações histéricas. Não penso que o verdadeiro problema psicopatológico da histeroepilepsia se encontre em casos como estes.

Já os outros relatos impõem uma reflexão psicopatológica mais profunda. Mas por que? Não poderiam ser simplesmente denominados de histéricos? Entendo que alguns fatores impedem esta rotulação pura e simples:

1 – São casos de pacientes masculinos; parece-me que a freqüência de pacientes homens é muito maior nas formas histeroepilépticas do que nos quadros histéricos. A via de expressão histérica do tipo conversiva é um caminho quase que fisiológico das contingências libidinais da vida feminina, pois é assim que ela expressa seu desejo pelo falo e ao mesmo tempo vincula-se ao pai, negando a sexualidade do pênis. Homem que apresenta sintomatologia à Ia grande crise de Charcot tem traços muito marcantes de um acidente na vida libidinal do tipo de fixações homossexuais à figura representativa do pai; não parece ser o caso de nenhum desses pacientes.

2 – A posição "neurótica" da histeria só me parece compreensível enquanto uma doença "vivida", ou seja, vivenciada dentro de um clima de intencionalidade. Na neurose "freudiana" há uma intencionalidade certa, mesmo que muito simbolizada, deslocada ou paradoxalmente masoquista. O paciente busca alguma coisa, e não era sem razão que se denominava a histeria de "política da doença". O paciente, aparentemente sofredor, ou sofrendo de verdade, envia sua mensagem. Ele não se fecha em um círculo insolúvel como no da verdadeira doença. Uma doença crônica é grave pelo simples fato de que nem o próprio organismo, nem a ciência conseguiu debelá-Ia. Ao paciente crônico sobra apenas a "providência ou misericórdia divina" como sublime consolo. Na histeria não se concebe assim este desamparo: a paciente sabe e procura os recursos que vêm dos homens; talvez daí sua belle indifférence.

Ao contrário da "verdadeira" doença mental, o paciente não trabalha ou não age contra si próprio. Mencionei há pouco o masoquismo; mas no masoquismo "neurótico" há uma intencionalidade, uma busca, uma mensagem e acima de tudo uma confiança de que seu pedido pode ser atendido e de que não se encontra condenado sem apelação. Mais uma vez, não é este o caso das doenças mentais do tipo "autofágica ou auto­imune" onde o indivíduo consome inintencionalmente e inutilmente suas forças até à exaustão e à morte. Tal consumpção é possível e realizável fora da patologia apenas com uma situação aguda: o suicídio, mas improvavelmente um indivíduo são se suicidaria cronicamente; muito menos um histérico. Pois bem, esta última me parece ser a situação do histeroepiléptico: preso, se autoconsumindo involuntariamente, pois na histeria se há uma consumpção, esta se produz voluntária e intencionalmente. Nesta consumpção histérica, realizada sob a forma dos paroxismos, há, além de tudo, uma fantasmática que a explica e a justifica. Na histeroepilepsia conforme a estudei esta fantasmática ou é branca, ausente, ou de modo algum explica ou justifica a gravidade dos sintomas ou os prejuízos funcionais.

3 – Neste ponto pode ser interposta a seguinte questão: se assim o é, se esta fantasmática não explica a intensidade e a gravidade do paroxismo, por que não nos contentarmos com um simples diagnóstico de epilepsia, inclusive porque os pacientes têm eletroencefalogramas alterados? Mas aí vem o grande paradoxo: estas crises, pelo menos em seus primórdios e em determinadas ocasiões, não são destituídas de indução sugestiva ou de gênese pela hiperestesia e impressionabilidade características da histeria. Estas crises se desenvolveram em um terreno de fragilidade e "imaturidade" afetivo-emocional características da psicopatologia histérica. A clínica destas crises mantém uma distância dos acessos psicomotores "puros", pois são bem menos automáticas, mescladas com conteúdos fantasmáticos, e estranhamente sujeitas a desencadearem estados segundo o tipo "personalidade intrusa" (uma variante "aguda" das personalidades múltiplas). Estas crises são muito menos elásticas, mais autodirigidas (auto-agressões) e menos "expansivas" (mais restritas a um espaço circunscrito) do que os acessos temporais. Seguem inclusive uma interessante padronização, a ponto de terem algumas delas estimulado sua descrição-tipo por alguns autores antigos. A queda e os espasmos em opistótono são sua grande característica, infirmando inclusive a clássica idéia de que o histérico não se machuca quando cai. As imagens EEGráficas quando presentes nas formas histeroepilépticas também não são tipicamente epilépticas, sendo raras as presenças de pontas ou pontas-ondas bem focalizadas. As figuras inespecíficas ou "atípicas", contudo, preponderam, sendo as mais comuns as lentificações do tipo teta-delta temporais. Estas figuras dizem mais respeito a uma alteração "funcional" que lesional; justamente ao contrário do que seria de se esperar do ponto de vista elétrico nas epilepsias psicomotoras, que têm uma etiologia predominantemente lesional.

4 – Diante desta argumentação, só nos sobra a seguinte hipótese: a histeroepilepsia é inicialmente um transtorno psicológico que se "processualiza" em seguida, perdendo o seu portador a liberdade de escolha que tinha antes da instalação completa da doença: a liberdade de ser ou não ser um doente inapelavelmente vítima de sua moléstia. Este "processo" que se instala, evidentemente que tem uma repercussão cerebral, contrariamente à pura histeria; isto pode se constatar através dos exames eletroencefalográficos intra e interparoxísticos. A partir deste momento, esta "fragilidade cerebral", este circuito que se facilitou e se habituou à descarga paroxística, será ele mesmo a patologia; aqui a "histeria" se transmuta de um processo freudiano (o recalque é um processo ativo) para uma dinâmica "janetiana" (para Janet o que caracteriza a histeria convulsiva é uma baixa da tensão psicológica e conseqüentemente um estreitamento do "campo da consciência") onde há "alguma coisa" de negativo que facilita a emergência da patologia, do "positivo". Aqui não se há mais lugar para a "política da doença" nem para os ganhos secundários. Como na epilepsia, o transtorno é mais sofrido do que vivido; todavia, a histeroepilepsia permanece mais vivida do que a epilepsia e mais sofrida do que a histeria.

5 – De que outra forma poderíamos entender o "doente trabalhando contra si mesmo?", esta coisa absurda dentro da normalidade? Os psicanalistas, diante desta heresia terrível, diriam: há sempre a intencionalidade por mais obscura e inesperada; não o há mesmo para a epilepsia? – neste ponto o diálogo torna-se impossível entre o psiquiatra e o psicanalista, pois para o primeiro é impossível aceitar-se esta "causalidade universal do psíquico" gerando toda patologia; seria a aceitação do princípio da incerteza psicopatológica, absolutamente psiquiatricida. Seria aceitar-se a negação da base mesma da vida que é a conservação. Diriam outros: mas o suicídio não é isto, esta negação? O suicídio patológico sim; o suicídio "normal" não. Este é "um princípio da conservação narcísica e agudamente "levado ao extremo". O histérico "normal" não pode trabalhar contra si. O histérico "doente" (o histeroepiléptico, por exemplo) foi uma vítima de uma criação simbólica entre ele e o "outro"; esta criação o invade e suga dele todas as forças inconseqüentemente, como o parasita faz com seu hospedeiro; é o criador da vítima de sua criação (e dos outros).

6 – Como o início do processo tem uma intencionalidade "histérica" o doente manterá resquícios desta, mesmo quando sujeito coercivelmente às agruras de sua patologia. Daí provêm muitas confusões de planos estando seus observadores ora perplexos pelo caráter processual, sofrido, deste "desenvolvimento", ora atordoados pela emersão pulsional, intencional, e vivida em meio à patologia processual; estes estudiosos então tendem para uma simplificação mecanicista ("isto é só uma epilepsia atípica") ou psicogenética ("isto é só uma histeria").

7 – Se nos detemos à reivindicação destes pacientes observamos que nos pedem "a libertação" de algo que sentem como "externos" a si mesmos (o processo). Já o histérico nos solicita que o acompanhemos em sua doença e decifremos sua linguagem; o que "ele tem" está dentro dele e faz parte dele. Pode-se comprovar isto toda vez em que se "medicaliza" o sintoma histérico: ele responde com a belle indifférence dizendo-nos deste modo que ele não se preocupa com este corpo, preocupando-se. Ou seja, ele sabe que tem domínio sobre sua paralisia ou sua amaurose; ele as vive e não as sofre. Seu corpo só é "preocupável" na medida em que esta preocupação seja o lugar privilegiado de sua satisfação libidinal, ou da comunicação de sua insatisfação para o "outro". A linguagem do histeroepiléptico é bem outra: ela é medicalizada e o paciente muitas vezes encontra-se horrorizado ou temeroso do que ocorre consigo; se este não é o caso, isto se deve a que sua consciência (ou sua neoconsciência) organizada em um nível inferior perdeu inclusive a capacidade de se cuidar ou "se salvar", imersa no mundo obnubilado da doença mental. Os "acessos solitários" dos histeroepilépticos nos falam da ausência nestes casos, da função lingüística das crises puramente histéricas realizadas em ambiente teatral.

8 – Evidentemente resta ainda explicar de que se trata esta "outra coisa" além da histeria.

Infelizmente, não tenho elementos teóricos ou experimentais que me avalize em qualquer opinião a respeito.

Dada a pertinência do trabalho de Schenk & Bear, citado no item sobre a clínica, faço algumas considerações a respeito:

a – o diagnóstico de "epilepsia temporal" baseado unicamente nos dados EEG me pareceu insuficiente.

b – os autores eles mesmos negaram que os episódios "dissociativos" tenham ocorrido no decorrer de um ictus. Eram, portanto essencialmente histéricos. Poder-se-ia então falar, ao menos, em histeroepilepsia.

c – assim como na histeria, há uma grande predominância de pacientes do sexo feminino.

d – para explicar esta diferença de freqüência entre os sexos, os autores lançam mão de duas teorias: d1 – socialmente a agressividade e as condutas abertamente sexuais são restritas ao sexo masculino; neste caso, a dissociação seria um mecanismo "paralelo" de exaustão destes conteúdos que teimam em invadir a consciência, favorecidos pela dissolução epiléptica da mesma; d2 – As diferenças morfofuncionais que existem entre o sistema límbico masculino e feminino.

e – difícil é conciliar a hipótese de que um problema basicamente límbico, biológico, induza em uma segunda instância um comportamento histérico, que tenta "anular" esta emersão pulsional condicionada pela epilepsia. Apesar de não negarmos em absoluto esta hipótese (vejo-a inclusive plausível) penso ser mais fácil colocarmos todo o processo por conta de uma unidade nosológica que seria a histeria, ou melhor, a histeroepilepsia.

f) alguns dados na literatura apontam para a possibilidade de que nas epilepsias temporais, sobretudo direitas, possa haver o aparecimento do fenômeno das "personalidades múltiplas" ou personalidades alternantes, através de uma hipotética interferência no sistema de trocas córtico-límbicas. O que posso postular por sua vez é uma sobredeterminação límbica na histeroepilepsia, onde um problema inicialmente psicoafetivo (e conseqüentemente "expresso" pelo sistema límbico) ­possa ter uma repercussão "funcional" sobre este circuito, que pode ser inclusive captada pelo eletroencefalograma. O mecanismo seria similar às dispraxias geradas por desaferentação afetivo-sensorial na infância, que promovendo uma grande alteração nas relações corpo-espaço no período sensoriomotor, condiciona uma patologia semelhante a uma lesão parietal direita. Os exemplos podem se multiplicar em psiquiatria.

Entretanto, não sou absolutamente solidário de uma causalidade linear entre um problema psicológico e um transtorno neurofuncional. Como disse acima, para que isto ocorra é necessário que intervenham outros mecanismos juntamente com os puramente psicológicos, sobretudo na idade adulta. Esta "outra coisa" que a transforma em doença sofrida, a histeria em histeroepilepsia, como confessei algumas linhas acima, me é desconhecida.

Defendo uma posição semelhante à de Richer no tocante à clínica da histeroepilepsia: as grandes crises histéricas de Charcot, com os acessos tônico-clônicos, as crises em opistótono e os estados dissociativos eram na verdade histeroepilepsia.

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(*) Trabalho apresentado pelo Autor no VIII Fórum de Psiquiatria da Universidade de Coimbra-PT em out/2006.

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