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O mito de liberdade e paixão em Sartre

Resumo

A posição de Jean-Paul Sartre quanto às noções de Liberdade e Paixão, Inconsciente, Psicanálise Existencial, Sexualidade, são por mim examinadas neste artigo. As implicações conceituais são também ressaltadas. As contradições no método proposto por ele – uma ontologia fenomenológica – deixam muito a desejar.

A função imaginada por Sartre para a sua Psicanálise Existencial é radicalmente diferente da Psicanásile Tradicional. Uma vez mais, é importante que se tenha em mente o papel da moralidade na filosofia sartreana como um todo a fim de que se possa compreender e apreciar a função que ele atribuiu à Psicanálise Existencial: "as várias tarefas do para-si podem tomar-se objeto de uma psicanálise existencial, pois todas elas visam criar a síntese que falta entre consciência e ser, na forma de valor ou causa-própria"(626). Assim, a Psicanálise Existencial é descrição moral, pois nos transmite o significado ético de diversos projetos humanos. É evidente que nenhuma variação da teoria freudiana poderia preencher tais funções. Por isso, a psicanálise tradicional e a existencial continuam a ser mundos à parte e Sartre terá de escrever um novo tratado das paixões, valendo-se de seus próprios recursos, tomando como centro de referência a condição factícia do indivíduo existencial.


O mundo de ser e nada

O Ser e o Nada é uma síntese monumental – um ensaio sobre a ontologia fenomenológica – que parte da afirmação da primazia da subjetividade. ''Tudo acontece como se o Para-si tivesse uma Paixão para se perder a fim de que a afirmação "mundo" pudesse chegar ao Em-si. (…) o mundo e a coisa-instrumental, tudo isso são puros nadas hipostasiados (…). "Há ser porque sou a negação do ser, e a mundaneidade, a espacialidade, a quantidade, a instrumentalidade, a temporalidade – tudo isso passa a ser apenas porque sou a negação do ser". (217)

Afirmar a primazia do ser deve ser o ponto de partida e o alicerce necessário de análise, segundo Sartre. Ao invés de reduzir o ser a significados (conhecimento), explica o conhecimento e os significados em termos do ser e de seu projeto, insistindo em que o ser é o irredutível evidente por si mesmo e, assim, qualquer tentativa de reduzi-Io a alguma outra coisa, e tentar ir além dele, é contraditória em si mesma: pois, é impossível ir mais além do ser e teremos atingido o limite absoluto quando tivermos o projeto de ser. O que resta é elucidar esse projeto de ser, o mesmo que familiarizar o homem com sua paixão, o que, de forma alguma, implica ir além do ser ou reduzi-Io a alguma outra coisa. Ao contrário, a tarefa de elucidação importa no projeto de avançar na direção do ser como ele se constitui, e a compreensão da estrutura ontológica do ser não é um empreendimento teórico, mas sim inerentemente prático, que envolve a elaboração das Éticas e Psicanálise Existencial. A ontologia sartreana culmina, nestas últimas, fornecendo-Ihes uma fundamentação, mas, ao mesmo tempo, também se fundamenta em sua Ética e Psicanálise Existencial, uma vez que não é concebível imaginar qualquer outra fundamentação.

O Ser e o Nada só é verdadeiramente inteligível como um esboço dos esquemas originais do novo tratado das paixões, estruturado em torno da proposição de que liberdade é paixão e paixão é liberdade. Temos, assim, a afirmação apaixonada da identidade essencial das duas. Assim, não mais se concebe a liberdade como puramente transcendental, deixando o mundo da aparência e da necessidade fechado em si mesmo, enquanto se proclama superá-Io transcendentalmente pela postulação de um mundo distinto de essências e de liberdade: ela é a dimensão mais fundamental da existência humana lutando apaixonadamente por se realizar. Sartre afirma e reafirma apaixonadamente sua proposição básica relativa à liberdade e à paixão de muitas formas diferentes, e a prova existencial emerge pela plausibilidade de sua autenticidade.

Se "o projeto fundamental, a pessoa, a realização livre da verdade humana encontra-se por toda parte em todos os desejos" (567), e se é nossa liberdade mesma "que constitui os limites que subseqüentemente encontrará" (482), como afirma Sartre, então todas as variedades do determinismo psicológico são a priori postas de lado como estruturalmente incapazes de sequer perceber o problema, quanto mais de oferecer uma solução viável para suas dificuldades. Sartre insiste na impregnação prática necessária dos pontos de vista teóricos. Em sua defesa de uma Psicanálise Existencial, não procede a partir de uma refutação teórica do determinismo psicológico, mas sim a partir da identificação dos determinantes práticos que se projetam acriticamente na imagem teórica: "Em cada momento de reflexão, a angústia nasce como uma estrutura da consciência reflexiva, na medida em que esta considera a consciência como o objeto de reflexão; mas ainda continua a ser possível para mim, manter diversos tipos de conduta com respeito a minha própria angústia – particularmente padrões de fuga. Tudo se dá como se nosso comportamento essencial e imediato com respeito à angústia fosse a fuga. O determinismo psicológico, antes de ser uma concepção teórica, é primeiro uma atitude de escusa ou, se se preferir, a base de todas as atitudes de escusa. Essa é uma conduta reflexiva com respeito à angústia; afirma haver, dentro de nós, forças antagônicas cujo tipo de existência é comparável ao das coisas. Ela nos provê de uma natureza produtiva de nossos atos, dotando-os de uma inércia e de uma externalidade eminentemente tranqüilizadoras por constituírem um jogo permanente de escusas. Mas esse determinismo, defesa reflexiva contra a angústia, não é dado como intuição reflexiva. Não vale nada contra a evidência da liberdade; daí ser dada como uma fé em que refugiar-se, como o fim ideal em direção ao qual podemos fugir para escapar à angústia. Assim, fugimos da angústia tentando apreender-nos a partir de fora, com um Outro ou como uma coisa"(40-43).

Como se pode ver, as imagens reificadas do determinismo psicológico são explicadas em termos de atitudes práticas determinadas que emanam da estrutura ontológica do ser, a qual constitui a preocupação básica de Sartre nessa eidética da má-fé. Essas reificações teóricas da realidade humana são tão necessárias, na medida em que brotam da estrutura ontológica angustiante e não da teoria como tal, quanto livremente assumidas, uma vez que podem ser praticamente contraditadas por tipos alternativos de atitude e de conduta e por suas conceitualizações apropriadas. E o fracasso necessário dessas teorias deterministas de reificação psicológica, que representam uma capitulação à fuga e às escusas exigem um tratado radicalmente novo das paixões, que insista simultaneamente na inescapabilidade da liberdade: "o homem está condenado a ser livre" e na situação necessária dessa liberdade dentro da contingência da existência humana motivada por sua paixão ontológica. Pois, toda existência humana é uma paixão, sendo o famoso interesse pessoal apenas um modo livremente escolhido dentre outros para concretizar essa paixão.

A maneira pela qual os diversos temas existencialistas são desenvolvidos em O Ser e o Nada é feita no sentido de que um quadro conceitual de elementos escassos é sistematizado em detalhe mediante um número virtualmente infindável de exemplos particulares e de especificações descritivas. Por si só, o quadro conceitual pode parecer, à primeira vista, muito simples, dado o número extremamente limitado de categorias básicas. Contudo, um olhar mais atento revela algumas complicações perturbadoras em todos os níveis. As categorias constantemente recorrentes são dispostas como pares antinômicos – ser/nada; em-si/para-si; eu/outro; liberdade/contingência; possibilidade/necessidade; autenticidade/má-fé. Sartre parte sempre dos esboços nitidamente definidos da concepção global como o momento de importância suprema esmagador do dado empreendimento, o que não deixa espaço para uma dialética autêntica entre teoria e pesquisa. Desse modo, a abordagem de Sartre continua sendo a mesma. É o valor representativo desse modo único de síntese, do qual O Ser e o Nada é o exemplo, elaborado através, e não a despeito de sua subjetividade.

A sexualidade

Sartre insiste que o Para-si é sexual no momento mesmo em que aparece diante do Outro e que por meio dela a sexualidade ingressa no mundo. Pois se o Para-si é sexual no momento mesmo em que aparece diante do Outro, então a sexualidade só pode ser elucidada em termos das mais profundas estruturas ontológicas. Aqui captamos o problema não como "fazer", mas como o projeto de ser. "Ser-no-mundo é construir o projeto de possuir o mundo"(597), e a sexualidade é parte integrante da realização desse projeto e, como tal, ocupa lugar central no tratado existencialista das paixões.

O significado dessas relações está longe de ser imediato: ele é simbólico. Sartre adota, como ponto de partida de sua própria hermenêutica, de que numa atividade, caçar, jogar,que seria absurda se reduzida a si mesma, havia um significado que a transcendia; isto é, uma indicação que se referia à realidade do homem em geral e a sua condição. Sartre generaliza essa abordagem e interpreta as diversas manifestações da vida psíquica como "símbolos que mantêm relações simbólicas, fundamentais, que constituem a pessoa individual"(569). Assim, seja qual for a experiência sob exame – fadiga – ao escalar uma montanha, ou desejo sexual, ou jogo, ou náusea, ou preferência por certos tipos de alimento etc. -, nossa busca de significado deve orientar-se pelo mesmo princípio: "a questão é descobrir, sob os aspectos parciais e incompletos do objeto, a verdadeira concretude que só pode ser a totalidade de seu impulso em direção ao ser, sua relação original consigo mesmo, com o mundo e com o Outro, na unidade de relações internas e de um projeto fundamental"(563).

Nesse sentido, compreende-se a sexualidade como um projeto existencial fundamental que visa simultaneamente ao Outro e ao ser em geral. Quanto ao Outro: no desejo, torno-me carne na presença do Outro a fim de apropriar-me da carne do Outro. O desejo é uma atitude que visa ao encantamento. Uma vez que só posso captar o Outro em sua facticidade objetiva, o problema é prender sua liberdade dentro desta facticidade e ao tocar esse corpo devo finalmente tocar a livre subjetividade do Outro. Esse é o verdadeiro significado da palavra posse.

E quanto ao ser em geral: tampar um buraco significa originalmente fazer sacrifício de meu corpo para que possa existir a plenitude do ser; isto é, submeter a paixão do Para-si como que para modelar, aperfeiçoar e preservar a totalidade do Em-si. Passamos boa parte de nossa vida a tampar buracos, a preencher lugares vazios e a realizar e instituir simbolicamente uma plenitude. Aqui, como em qualquer outra parte, o ideal envolvido acaba por tornar-se um ideal impossível: o desejo mesmo está fadado ao fracasso, uma vez que o prazer é a morte e o fracasso do desejo, e a plenitude do ser é igualmente irrealizável, o que afinal faz do homem uma "paixão inútil".

A realidade humana, sob o aspecto da sexualidade, corresponde às mesmas determinações ontológicas da liberdade e paixão com que nos defrontamos em outros contextos, no espírito de uma visão verdadeiramente totalizante.

As paixões, como atitudes subjetivas, estão em paridade com as volições, uma vez que ambas são manifestações da liberdade original. O ato passional é aquele que tem por motivo uma paixão específica, mas que, apesar de tudo, é livre. É o conjunto dos desejos, emoções e paixões que me impele a executar determinado ato, mas todos eles nascem com base na liberdade original.

Sartre inverte totalmente o quadro a respeito da vontade, a qual precisa ter uma posição privilegiada em relação à liberdade. Agora, sabemos que atribuir uma posição privilegiada à vontade não podia ser mais ilusório. Pois uma deliberação voluntária é sempre uma impostura.

Quando delibero, a situação é precária. E se sou levado ao ponto de deliberar, isso se dá simplesmente porque faz parte de meu projeto original conceber motivos por meio de deliberação e não por alguma outra forma de descoberta (pela paixão, pela ação), o que revela para mim o conjunto de causas e de fins, enquanto minha linguagem me informa sobre meu pensamento. Quando a vontade intervém, a decisão está tomada, e ela não tem outro valor senão o de fazer a proclamação. E isso nos leva ao significado fundamental da paixão, que não é uma atitude subjetiva, mas a base sobre a qual se erguem todas as atitudes. Em última análise, isto é, idêntico à própria "liberdade original", que postula os fins que procuramos atingir. Isso constitui nossa própria existência como "escolha original", um impulso em direção ao ser, que cria originalmente todas as causas e todos os motivos que nos podem orientar para ações parciais. Se eu quero compreender o significado existencial-ontológico do fato de me abandonar livremente à fadiga, devo referir essa ação à minha escolha original de ser, uma vez que essa paixão do corpo coincide, para o Para-si, com o projeto de fazer o Em-si existir: tudo se dá como se o Para-si tivesse uma Paixão em perder-se a fim de que a afirmação "mundo" pudesse vir para o Em-si.

Paixão e liberdade

A introdução da paixão no conjunto primário de relações modifica radicalmente tudo. Em virtude dessa paixão é que o empreendimento humano pode dar-se completamente e assumir um caráter, uma direção e um significado – sem isso, estaríamos aferrados à "consciência" e a "Iiberdade" concebidas como uma abstração cristalizada, inteiramente privada de qualquer possibilidade de desenvolvimento. Por meio da paixão, a liberdade e a consciência adquirem um "corpo" – e, de fato, não apenas em sentido figurado -, tanto que se toma possível falar sobre a "paixão do corpo" para levar a cabo o projeto original da liberdade de fazer o Em-si existir: descrição que se coloca diametralmente oposta à visão costumeira do corpo como o depositário de determinações físicas e fisiológicas. Graças à identidade primária de Liberdade e Paixão é que a liberdade pode ser "situada": isto é, concebida de tal modo que ela não possa ser senão situada, com todas as ambigüidades necessariamente implicadas.

Através dessa fusão entre Liberdade e paixão é que a liberdade se torna uma categoria existencial significativa. E a paixão, analogamente, por meio de sua fusão com a liberdade, adquire caráter único. Não é apenas uma antiga paixão qualquer, mas a paixão ontológica fundamental da realidade humana que visa fazer com que a aventura existencial se dê através da "facticidade da liberdade", presa a uma contingência absoluta e, ainda assim, permanecendo absolutamente livre. A paixão ontológica fundamental define-se como autonegação e auto-sacrifício: uma paixão para perder-se de modo que o mundo possa chegar ao Em-si, ou que a plenitude do ser possa existir, ou ainda de modo a encontrar o ser e, de um só golpe, constituir o Em-si que escapa à contingência etc. A escolha fundamental é a escolha original de nosso ser e, como tal, deve, por necessidade, ser uma escolha consciente, não uma escolha deliberada. Ao contrário, ela é o fundamento de toda deliberação, uma vez que uma deliberação requer uma interpretação em termos de escolha original.

Consciência, neste sentido sartreano, que distingue claramente entre escolha consciente e escolha consciente (deliberada), para ser capaz de descartar a idéia do inconsciente, é uma consciência não-posicional, também chamada consciência irreflexiva: embora essa consciência não nos proporcione conhecimento, ela se encontra, em sua perfeita translucidez, na origem de todo conhecer. Em correspondência à escolha não-deliberada, a consciência não-posicional é: nós-como-consciência, uma vez que ela não é distinta de nosso ser. E como ser é exatamente nossa escolha original, a consciência da escolha é idêntica à autoconsciência que possuímos. Deve-se ser consciente para escolher, e deve-se escolher para ser consciente. Escolha e Consciência são uma só e mesma coisa, sermos conscientes de nós mesmos e escolhermos a nós mesmos são a mesma coisa.

Sartre insiste que não pode haver algo que seja um fenômeno psíquico inconsciente, que os proponentes da teoria psicanalítica hipostasiaram e reificaram a má-fé, não escaparam a ela. Não é preciso dizer que a problemática do inconsciente é por demais complexa para ser resolvida por qualquer fórmula particular, uma vez que um tratamento adequado requer o desenvolvimento de uma teoria coerente da ideologia, expressa não meramente em termos gerais, mas com grande concretude e especificidade, diretamente aplicáveis a indivíduos particulares. E o que quer que se possa descobrir na filosofia de Sartre, dado seu quadro individualista de categorias, certamente não será uma teoria apropriada da ideologia.

O que está em questão neste contexto específico é que a identificação existencialista que ele faz entre escolha e ser, entre escolha e consciência, entre escolha de nós mesmos e consciência de nós mesmos de forma não-posicional, permite-lhe propor uma solução não-determinista para o problema psicanalítico do inconsciente. De saída, o inconsciente é posto à parte, por definição, como impossível a priori, uma vez que partimos da identidade original entre paixão fundamental-escolha de ser (deliberada)-consciência não-posicional; e todas as estruturas específicas da consciência, quer afetivas, como desejos, emoções e paixões, quer volitivas, reflexivas, e por aí vai, constituem-se sobre a base de sua identidade original e, por isso, compartilham inteiramente da carga de responsabilidade absoluta, como formas específicas de manifestação da síntese original. O fenômeno do inconsciente é tomado como má-fé que, ela mesma, se considera, na forma não-posicional da consciência não-reflexiva fundamental em contraposição à consciência refletida, ser inconsciente com vistas a ser capaz de escapar da angústia, ou seja, à carga da liberdade inevitável.

A possibilidade de uma estratégia como essa não é provada, mas presumida indiretamente por analogia à psicologia da Gestalt, que associa a primazia da forma total com a variabilidade das estruturas secundárias. Por conseqüência, Sartre afirma ser possível para mim, impor-me reflexivamente, isto é, no plano voluntário, projetos que contrariam meu projeto inicial sem, contudo, modificar fundamentalmente o projeto inicial. Desse modo, é possível falar-se até da má-fé da vontade, contrariando da maneira mais marcante possível qualquer teoria do Inconsciente.

Provavelmente, Sartre deve considerar a hipótese psicanalítica um absurdo total, uma vez que ela contradiz diametralmente sua própria concepção de nossa liberdade absoluta e responsabilidade absoluta, a qual insiste que somos totalmente responsáveis não só pelas guerras que sofremos, mas até mesmo por nosso nascimento, raça, nacionalidade, lugar onde vivemos e passado. O passado que sou eu tenho de ser, sem qualquer possibilidade de não ser. Assumo a responsabilidade total por ele como se pudesse alterá-lo e, contudo, não posso ser nada mais do que ele. Devemos iniciar a partir dessa antinomia: a realidade humana recebe originalmente seu lugar no meio das coisas; a realidade-humana é aquilo pelo qual algo que chamamos lugar chega às coisas. Eu existo, meu lugar sem escolha, e sem necessidade, como o puro fato absoluto de meu ser-aí. Eu estou aí, não aqui mas aí. Este é o fato absoluto e incompreensível que está na origem da extensão e, conseqüentemente, de minhas relações originais com as coisas (com estas coisas mais do que com aquelas). Um fato da pura contingência, um fato absurdo.

A facticidade é a única realidade que a liberdade pode descobrir, a liberdade é a apreensão de minha facticidade. Certamente, ao nascer eu assumi um lugar, mas eu sou responsável pelo lugar que assumi. Pode-se ver claramente aqui a conexão inextricável de Liberdade e facticidade na situação. A qualidade irremediável do passado vem de minha escolha real do futuro; enquanto a liberdade é a escolha de um fim em termos do passado, inversamente o passado é aquilo que é somente em relação com o fim escolhido. Mas Sartre sustenta, na forma de uma autenticação subjetiva, suas asserções. A questão é a seguinte: como funcionam as transformações dos conceitos sartreanos?

As relações ontológicas mais fundamentais são definidas por Sartre em termos da identidade entre Liberdade e Paixão na auto-constituição da realidade humana, o que também corresponde à identidade primária entre ser, escolha e autoconsciência.

Os conceitos primários podem ser combinados entre si e todas as derivações conceituais complementares podem fundir-se com as precedentes, o que resulta um círculo de relações e de conjuntos de definições em contínua ampliação. De modo algum Sartre se embaraça com a circularidade envolvida, chega a afirmar que é da natureza da consciência existir em círculo, reitera seguidamente que jamais podemos sair do círculo. Sartre afirma que ser é a mesma coisa que ser livre, mas se fizermos a leitura circular, acabamos por afirmar que o ser do homem como ser livre é um outro modo de afirmar a unidade entre Liberdade e situação. O procedimento é o mesmo para a afirmação da identidade entre liberdade e obrigação; ser e escolha; escolha e ação; consciência e desejo; situação e motivação, e outras combinações como intenção e ação, consciência e consciência da liberdade, facticidade da liberdade e contingência da liberdade.

O discurso sartreano é estruturado do modo como é para ser capaz de nos impor seus próprios termos de referência e, conseqüentemente, tornar aceitáveis as "absurdas" asserções existencialistas.

A transformação do homem

Os indicativos ontológicos de Liberdade e Responsabilidade absolutas surgem na filosofia de Sartre sob o signo de "dever" e operam no contexto da mais severa contingência. O caráter absoluto da liberdade é estabelecido mediante sua identidade, por definição, com a inevitabilidade da escolha, mesmo nas circunstâncias de uma recusa deliberada a escolher, e as categorias de "contingência" e "Facticidade" são trazidas ao primeiro plano para fazer-nos lembrar de que não devemos ter quaisquer ilusões voluntaristas quanto ao possível impacto de nossas ações. Sartre tem que continuar insistindo que somos absolutamente livres e absolutamente responsáveis, acrescentando que "é a contingência da liberdade e a contingência do Em-si que são expressos em situação pela impredicabilidade e pela adversidade do meio ambiente"(509), dizendo com isso que a adversidade de meu meio ambiente impõe-me a obrigação absoluta de suportar a carga total de responsabilidade também pela situação, a qual devo, pois, ser, ao invés de apenas ser nela. E Sartre fica neste equilíbrio extremamente instável, e constantemente fica empenhado em rebalancear e requaliticar os conceitos, para manter a integridade da concepção fundamental.

Sartre afirma: "Sou responsável por tudo, de fato, exceto por minha própria responsabilidade, pois não sou o fundamento de meu ser" (555). Mas, afinal de contas não sou responsável por absolutamente nada. E cria-se outro dilema. E como não há outra saída, assim como a paixão fundamental da realidade humana perde-se para a plenitude do ser, só pode ser estabelecida em termos de "como se", aqui segue a última restrição: "por isso, tudo se passa como se eu fosse compelido a ser responsável"(557). Sou absolutamente livre em virtude de ser compelido a escolher (condenado a ser livre), e porque tudo se passa na realidade humana, por meio do livre exercício de sua paixão fundamental, decidiu perder-se, então a plenitude do ser poder existir. Do mesmo modo, sou absolutamente responsável porque em meu ser absolutamente livre sou idêntico à minha situação, por mais devastador que possa ser a resistência das coisas ou objetos frente aos projetos humanos e, por isso, tudo se passa como se eu fosse compelido a ser absolutamente responsável, quer eu assuma a terrível carga dessa responsabilidade, quer tente fugir dela através das manobras da má-fé.

Mas qual a posição de Sartre nesse equilíbrio entre liberdade e responsabilidade, contingência e adversidade? A resposta é revelada por outra inconsistência, quando ocorre a discussão sobre a morte e o suicídio. Insiste que, em vista da morte ser uma contingência radical, ela não pode pertencer à estrutura ontológica do Para-si, e, conseqüentemente, deve ser afastada de todas as conjecturas ontológicas.

A morte não pode ser meu possível, uma vez que é a niilização de todos os meus possíveis, o que está fora de minhas possibilidades. Analogamente, o suicídio é um absurdo que faz com que minha vida mergulhe no absurdo e, naturalmente, traz consigo a niilização de todas as minhas possibilidades. Contudo, ao tratar de uma situação de extrema gravidade, em que as possibilidades de uma escolha autêntica estão sufocadas pela adversidade, Sartre não hesita um só momento em alçar a morte por suicídio à dignidade de uma possibilidade ontológica autêntica. E somos notificados que "não existe acidente algum numa vida; (…) se sou mobilizado para uma guerra, esta é minha guerra: ela está em minha imagem e eu a mereço. Mereço-a, primeiro, porque sempre poderia escapar a ela pelo suicídio ou pela deserção; esses possíveis são os que devem estar sempre presentes a nós quando se trata de enfrentar uma situação. Por ter deixado de fugir dela, eu a escolhi"(554).

Deserção, sim, mas suicídio? A teoria sartreana está favorável a uma ideologia que assume responsabilidade numa luta pela liberdade. Essa posição é um "dever" moral que exige, logicamente, uma justificação adequada – justificação que não se pode conceder ao suicídio nem mesmo em seus próprios termos de referência – e definitivamente não como um indicativo da ontologia. A asserção: "o suicídio é um modo entre outros de ser-no-mundo"(556), longe de ser um dos indicativos da ontologia, é uma mera racionalização de voluntarismo extremo, não importa quanto possamos simpatizar com seu intento subjacente.

E com a autenticidade subjetiva da hermenêutica existencialista de Sartre: "só pode haver um Para-si livre enquanto engajado em um mundo resistente (…). O êxito não é importante para a liberdade"(483). Estamos diante de um imperativo abstrato de "engajamento" defrontando-se genericamente com "um mundo resistente", e o empreendimento continua a ser uma aventura estritamente individual, em luta contra o "Outro" ou capitulando às ilusões da solidariedade coletiva dentro do espírito de seriedade na estrada estéril da fuga desintegradora. Se é esta a relação de forças, se é assim que se traçam as linhas de demarcação na eidética da má-fé, então é evidente que o êxito não deve ser importante para a liberdade. O que vale é a autenticidade do próprio empreendimento: princípio este que é compatível não só com a afirmação da equivalência ontológica de todas as espécies de esforço, mas até mesmo com o prognóstico sombrio do fracasso, em última análise necessário, de todos os projetos da realidade humana: prognóstico que realmente não é um prognóstico, mas sim o reconhecimento de uma certeza absoluta, inerente à estrutura ontológica fundamental do ser que define o homem como uma "paixão inútil". Estamos fadados a fracassar em nossa tentativa de dominar os outros tanto quanto no projeto de amor que carrega em seu ser-para-os-outros a semente da própria destruição.

Como já disse, toda a análise existencial de Sartre conduz necessariamente e obrigatoriamente a uma ética. Mas o seu projeto mais original se concentra na exigência de transformação do homem.

A Psicanálise Existencial procura determinar a escolha original realizada por cada indivíduo, essa escolha que é o centro de referências de uma infinidade de significações polivalentes e que constitui o projeto fundamental do homem. Vimos que Sartre rejeita o postulado do inconsciente: o fato psíquico é co-extensivo à consciência. Se o homem sabe em que consiste seu projeto fundamental, se esse projeto é vivido plenamente por ele e se é, portanto, totalmente consciente, isso ainda não quer dizer que ele lhe seja conhecido; a psicanálise existencial se propõe tornar conhecido o que todo Para-si compreende desde sempre. Impõe-se assim a transformação do homem no sentido de que se lhe torne acessível a intuição final do sujeito. E o importante é que, dessa forma, toda a ontologia encontra o seu significado último no programa que se propõe a psicanálise existencial; diante desse programa, a ontologia nos abandona: ela nos permite simplesmente determinar os fins últimos da realidade humana, seus possíveis fundamentais e o valor que a persegue. O sentido dessa teoria desemboca na prática transformadora do homem.

O Para-si é liberdade compreendida como autonomia de escolha, e Sartre leva essa autonomia às suas últimas implicações. Por ela, determina-se o conceito-chave da ética: o valor. Se a liberdade é absoluta, o valor não poderia apresentar consistência objetiva; muito pelo contrário, o valor brota da subjetividade. A ontologia e a psicanálise existencial devem mostrar ao homem que "ele é o ser pelo qual os valores existem" (722). Entenda-se por homem a individualidade subjetiva. O valor exige um fundamento; mas o fundamento não poderia ser o ser, pois se o fosse, desde que o homem se norteia por valores, o comportamento instauraria a má-fé e destruiria a liberdade. Segue-se que a liberdade é o único fundamento dos valores e que nada, absolutamente nada, me justifica ao adotar tal ou tal valor, tal ou tal escala de valores. Enquanto ser pelo qual os valores existem eu sou injustificável. E minha liberdade se angustia de ser o fundamento sem fundamento dos valores. Assim como não há natureza humana que determina o que o homem deve fazer, também não há uma ordem preestabelecida de valores. Desse modo, o valor encontra a sua gênese no ato livre e absolutamente indeterminado: escolher é inventar. Disso resulta que o homem é apenas seu projeto, só existe na medida em que se realiza, ele é tão-somente o conjunto de seus atos. Se a psicanálise existencial exige a transformação do homem, resta-nos traçar os caminhos concretos que a possibilitem.

Conclusão

Se, como Sartre admite, o método proposto por ele para uma Psicanálise Existencial deixa muito a desejar, isto não se dá simplesmente, como ele sugere, "porque tudo está por ser feito nesse campo"(457), mas devido ao caráter problemático dos próprios princípios metodológicos inerentes a seu ponto de vista ontológico. A definição do projeto original como "o centro de referência para uma infinitude de significados polivalentes"(570), está associada à idéia de que o Para-si, em sua liberdade, inventa não só fins primários e secundários; inventa todo o sistema de interpretações que permite suas interconexões, o sujeito deve oferecer sua pedra de toque e seus critérios pessoais. Por conseqüência, o psicoterapeuta terá de redescobrir, a cada passo, um símbolo que funcione no caso particular que esteja considerando. Pois a escolha é viva e, conseqüentemente, pode ser revogada pelo sujeito que está sendo estudado. O método que serviu para um sujeito não se ajustará necessariamente a outro sujeito, nem ao mesmo sujeito num período posterior.


Referência

1. SARTRE J-P – L'Être et le Néant – Essai d'Ontologie Phénoménologique. Paris: Gallimard, 1943.

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