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Os bastidores da Psicanálise: Lou Andréas-Salomé e Freud

Assim como fizemos com relação a Georg Groddeck, introduziremos uma outra figura de central importância para a história do movimento psicanalítico: Lou Andreas-Salomé. Sem sombra de dúvida, em relação a Groddeck, Lou teve uma importância muito mais expressiva, quer no aspecto teórico, quanto na vida pessoal de Freud.
Em meu trabalho anterior aqui publicado procurei trazer à luz uma figura importante ao movimento psicanalítico cujo nome foi Georg Groddeck. A grande maioria dos historiadores da psicanálise são unânimes em dizer que a presença de Groddeck no cenário psicanalítico teria trazido uma espécie de contraponto, ou mesmo uma compensação, para aquilo que foi determinado como sendo certo "excesso" de psicanálise.

Desta feita, estaremos abordando uma outra figura de extrema envergadura no mesmo cenário, a qual teria, comparativamente à Groddeck, participado muito mais estrutural na edificação do construto teórico da psicanálise, além de ter privado da amizade profunda de seu criador.

Sabemos que Lou Andréas Salomé começou a estudar psicanálise em 1911, quando já contava com seus cinqüenta anos de idade. Além disso, durante a sua vida, chegou a travar contato com pessoas de alto calibre como Nietzsche e Rilke.

Lou nasceu em 12/02/1861, e chegou a ter o seu nome reconhecido na condição de romancista e ensaísta. Seus livros, na verdade versaram principalmente sobre os três grandes nomes com quem privou de uma relação pessoal, em diferentes níveis é bem verdade.
Sobre Nietzsche, chegou a pronunciar-se em "Essencialmente uma investigação".

Quanto a Rilke, através das "Memórias pessoais"
Já em relação a Freud, trouxe à luz "Uma expressão de gratidão".

Sabe-se que após o Congresso de Weimar, o qual ocorrera em 1911, Lou permaneceu por um tempo em Viena, conseguindo dar início a um contato mais estreito com relação ao professor Freud, com o qual manteve uma intensa correspondência até o ano de 1939, uma vez que foi o ano do falecimento de Sigmund Freud. Lou chegou a se referir a Freud, como sendo "o rosto paterno que presidiu a minha vida".

No que diz respeito a Freud, sabemos que este não hesitava em dividir as suas dúvidas de caráter pessoal, além de comentar freqüentemente os seus trabalhos, com aquela que foi, provavelmente a sua melhor amiga durante a sua vida.

A título de exemplo, citamos o ensaio de Freud sobre "Moisés e o Monoteísmo", o qual fora integralmente comunicado a Lou. Tratava-se de um momento histórico, onde a sua publicação era absolutamente impossível na Áustria. Aproveitamos esse momento de nossa exposição, para tentar retratar a lucidez de Freud, bem como o seu pessimismo em relação ao "rumo de seu tempo". Transcrevemos a seguir, uma citação do próprio Freud: "(…) Não tenho dúvidas de que a humanidade sobreviverá até mesmo a esta guerra, mas tenho a certeza de que, para mim e meus contemporâneos, o mundo jamais será novamente um lugar feliz. E, o mais triste de tudo é que temos aqui exatamente, o modo pelo qual deveríamos ter esperado que as pessoas se comportassem, a partir do nosso conhecimento sobre a psicanálise. Devido a essa atitude com relação à humanidade, nunca pude concordar com o seu jubiloso otimismo. Minha conclusão secreta sempre foi: desde que só podemos considerar a mais elevada civilização atual como carregada de uma enorme hipocrisia, conclui-se que somos organicamente inadequados a ela. Somos forçados a abdicar e o Grande Desconhecido, Ele ou Alguma Coisa, emboscado atrás do Destino, algum dia repetirá essa experiência com outra raça (…)". (Carta de Freud à Lou Andréas-Salomé,de 27/07/1916)

Lou Andréas-Salomé: dados biográficos


Nascida em São Petersburgo, era a sexta e última filha, única menina, de um general russo de origem báltico-germânica. Pela via materna, possuía sangue alemão do norte e, ainda mais remotamente, dinamarquês. Tinha no alemão, a sua primeira língua, sendo o francês a segunda, vindo o russo, na terceira posição.

Aos 19 anos, preparada pelo seu tutor Hendrik Gillot, Lou ingressou na faculdade de Zurique, onde dedicou-se à Filosofia e à história das religiões. Foi obrigada a interromper os estudos, após um ano, por motivo de doença. Em seguida, passou a viver, e por 20 anos, em Berlim, no período de 1883-1903, e daí até a sua morte, em 05/02/1937, em Götingen.
Após a publicação de seu primeiro romance, "Na luta por Deus", tornou-se bastante reconhecida como crítica. Em seu livro sobre as personagens femininas de Ibsen (1892), é interessante notar que as tratou como se fossem seres vivos. Mas foram sobretudo os cinco contos sobre a psicologia das meninas adolescentes (1902), os quais fixaram a sua reputação como uma escritora de grande penetração psicológica.

Rainer Maria Rilke, dedicou-lhe o seu "Livro das Horas" (1905). Nesse trabalho, é possível notarmos o significado que Lou havia conquistado em sua vida, quer na condição de artista, como na condição de homem.

Encontramos também um ensaio que Lou teria dedicado a Freud, por ocasião de seus 75 anos de idade: "Meus agradecimentos a Freud" (1931). Publicou também uma peça-sonho sobre o retorno do Diabo à mãe primordial: "O Diabo e sua avó", de 1922.

Segundo as suas próprias declarações, Lou afirmou que o que a havia tornado especialmente sensível "À psicologia de profundidade de Freud", fora, em primeiro lugar, a participação no extraordinário e raro destino de uma alma individual, ou seja, no destino de Rilke, e em seu desenvolvimento artístico, além de ter participado também de sua inexorável desintegração física.

Devemos ter em mente também, que ao longo de sua intensa vida, Lou manteve contato com outros nomes de significativa envergadura, assim como o próprio Hendrik Gillot, seu tutor, pastor de São Petesburgo e do filósofo positivista, de origem judaica, Paul Rée; além de F. C. Andréas, professor de línguas orientais de Götingen.

Lou casou-se com Rilke, mas dizem os historiadores, que este nunca foi seu marido no sentido aceite do termo. A primeira fase de sua vida foi caracterizada por uma intensa devoção a Deus, porém quando ela o invocou e Ele não apareceu, sentiu-se profundamente abandonada e entendeu que assim seria com toda a humanidade. Foi exatamente nesse estado emocional que conheceu Hendrik Gillot, o qual era 25 anos mais velho do que ela e a quem Lou chegou a se referir como sendo aquele que a tinha salvo da "solidão da fantasia". Esse fato acabou propiciando a Gillot conduzir os talentos de Lou.

Aqui nos deteremos por um minuto para fazer uma reflexão: não estaríamos aqui diante de uma situação que ilustra de forma bastante contundente a existência do fenômeno da transferência?

Lou não estaria para "o paciente", assim como Gillot para o psicanalista?

Dentro do mesmo matiz transferencial, não poderíamos aqui ilustrar metaforicamente aquilo que Jacques Lacan chamou do lugar do "Sujeito Suposto Saber"?

Ampliando um pouco mais as nossas reflexões, será que não poderíamos pensar que toda a transferência traz em seu bojo, implicitamente, uma relação de poder estabelecida?

Muito bem, sigamos em frente: sabe-se que Lou Andréas-Salomé passou
a ser identificada apenas como Lou, como um tratamento carinhoso a ela dedicado por Gillot. No desenrolar desse intenso relacionamento, Gillot acabou pedindo Lou em casamento, e aí foi seu grave erro em se tratando de Lou, uma vez que a partir daí, ela passou a considerá-lo como um estranho.

Parece que o "desinvestimento" teria ocorrido quando Gillot se estabelece como homem, quebrando a idealização de que estaria ocupando a posição divina.

Essas primeiras fases decisivas foram seguidas por um período mais tranqüilo na vida de Lou, permanecendo ela mais ligada à figura de Paul Rée. Logo após o seu estremecimento com Gillot, o qual nos parece que a perdeu enquanto se fez homem, Lou teve várias hemorragias pulmonares, tendo sido levada pela mãe para Roma. Foi em Roma, na verdade que, em 1882, conheceu Paul Rée, 12 anos mais velho do que ela. Já no período da sua velhice, Lou teria declarado que se fosse por ela, jamais teria rompido com Rée. Disse ter sentido a sua partida, como sendo uma "perda irreparável" em sua vida.

Seu encontro com Nietzsche também em Roma, acabou estimulando-o a que tivesse esperanças quanto à possibilidade na obtenção da felicidade pessoal, mas para Lou tratava-se apenas do encontro entre dois caminhos intelectuais.

Seguiu-se assim, um período de mais ou menos 5 anos de intensa vida intelectual em Berlim. Essa atividade era constituída pelos estudiosos que circundavam Paul Rée, bem como a ela também.

Penso ser interessante destacarmos que Lou distinguia o casamento, daquele amor predominantemente sensual, ao qual jamais reconhecera como uma base que viesse a justificar o casamento, sendo que o casamento físico, para ela, era algo que sempre estivera fora de cogitação. Depois de passados uns 5 anos na companhia de Paul Rée, acabou por surgir uma crise na relação, a qual Lou procurou administrar com inúmeras viagens.

A figura que predominou em sua seguinte fase de vida, foi a de Rainer Maria Rilke, a partir de 1897, em Munique. Quero ressaltar que essa relação, também teve um destino muito peculiar. Numa viagem que fizeram à Rússia em 1900, teria ocorrido uma ruptura patológica entre Rilke o homem e Rilke o artista e Lou acabou tornando-se para ele, a companheira a quem sempre recorria.

Finalmente chegamos à última fase da vida de Lou Andréas-Salomé, na qual notamos nitidamente a preponderância da figura de Sigmund Freud. A bem da verdade, ela teria dito que quem preponderou teria sido a psicanálise e não exatamente Freud. Ou mesmo, numa análise mais aprofundada, a grande influência teria sido a própria "humanidade" (der Mensch), sem uma necessária ligação com qualquer figura individual.

Ao rever o trabalho de toda uma vida, teria dito que lhe parecia, francamente: "como se estivesse chegando a um encontro consigo mesma, através de um túnel que tivesse sido escavado no intervalo". Chegou a denominar tudo aquilo que recebera de Freud, como sendo "um acréscimo de algo novo em nossas crenças básicas".

Gostaríamos agora de deixar uma ilustração do clima que permeava a correspondência entre Freud e Lou Andréas-Salomé:

Götingen, ‘Loufried'

27 set. 1912
Caro Professor:

Desde que assisti ao Congresso de Weimar no último outono, o estudo da psicanálise tem continuado a preocupar-me, e torno-me mais absorvida quanto mais penetro no assunto. Estou prestes a realizar agora o meu desejo de passar alguns meses em Viena. E o senhor permitirá que eu me aproxime de si, que assista às suas conferências e, ainda, que seja admitida às suas Noites de Quarta-feira? O único objetivo de minha visita a Viena é dedicar-me mais profundamente a todos os aspectos dessa matéria
Atenciosamente

Lou Andréas-Salomé

1 out. 1912
Viena IX, Bergasse, 19

Cara Frau Andréas
Quando a senhora vier a Viena faremos todo o possível para introduzi-la ao pouco de psicanálise que pode ser demonstrado e comunicado. Já interpretei sua freqüência ao Congresso de Weimar como um augúrio favorável.

Atenciosamente
Freud

Bibliografia

Freud e Lou Andréas-Salomé Correspondência Completa. Imago Editora.

Queremos destacar que quanto às informações acima mencionadas, nos valemos do auxílio de Ernst Pfeiffer, o qual fez a introdução do livro referente à Correspondência.

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