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Psicanálise e Psicanálise da Existência

Resumo

Neste artigo procuro trabalhar com as idéias de Psicanálise em Freud e Sartre. Parto da idéia de uma psicanálise "clássica" de Freud e a confronto com a idéia de psicanálise existencial em Sartre. Onde a primazia à liberdade é a tônica da psicanálise existencial; a consciência livre e projetiva produz, na realidade, toda espécie de desejos. A tarefa da psicanálise existencial é interrogar a consciência individual. O referencial teórico utilizado é o Ser e o Nada de Jean-Paul Sartre, que pressupõe a leitura de outras obras do filósofo existencialista, relacionadas nas referências, embora não citadas no texto.

I. Psicanálise

Sigmund Freud elaborou a psicanálise, às vezes chamada de psicanálise clássica, para distingui-Ia de muitas de suas derivações e de outras formas de psicanálise, como um procedimento para o diagnóstico e tratamento de certas neuroses. A psicanálise é, portanto, um método, mas é também uma doutrina relativa à natureza do ser humano. Tanto no método como na doutrina, usam-se certo número de conceitos fundamentais que exporemos sumariamente, sem dar-Ihes uma interpretação determinada e sem ter em conta as diversas doutrinas no próprio Freud.

Freud estima que não há atos de nenhuma classe, incluindo atos verbais e sonhos, que não tenham uma causa. Geralmente se supõe que os atos em que o homem executa, as idéias que tem, as palavras que diz, são explicáveis em virtude de motivos relativamente bem determinados ou, em todo caso, determináveis. Sabe-se que muitas vezes não se diz o que se havia querido dizer, ou se faz algo que não se havia querido fazer, ou se tem sonhos inexplicáveis ou estranhos. Sabe-se assim mesmo que em ocasiões se produzem inibições, se experimentam angústias, se tem sentimentos que Freud deu conta e razão de todas estas manifestações humanas à base de um mecanismo constituído por forças e atividades de tal índole que muito do que estava psiquicamente presente devia remeter a algo que estava ausente e que era, em princípio, inescrutável. A primeira noção e principal era apostada ao efeito, foi a do Inconsciente, ao qual pode hipostasiar-se em um tipo de realidade ou servir simplesmente de nome para uma série de entidades mentais chamadas "inconscientes". Estas entidades mentais devem distinguir-se de atos mentais dos quais não somos conscientes, mas podemos ser conscientes à vontade. Com efeito, é característico do inconsciente freudiano ao servir como fundo no qual se ancoram e ao qual se remetem entidades mentais que o indivíduo inconscientemente recusa manifestar. Vou limitar a um caso somente, se bem que fundamental: o indivíduo vive em uma sociedade na qual há pressões de toda classe encaminhadas a moldá-Io segundo certos padrões. Para conformar-se com estes padrões, o indivíduo tem que reprimir seus próprios impulsos, os quais são "desalojados" da área da consciência e "censurados". Quando a censura e a repressão são muito fortes podem irromper estados neuróticos. Normalmente, a censura opera de tal sorte que o próprio indivíduo encontra maneira de desviar sem que se produzam transtornos excessivamente graves, os impulsos. Estes se manifestam nos sonhos, que devem ser interpretados, em função de lentidão e equívocos inumeráveis formas de lapsus linguae e lapsus calami que parecem meros deslizes, mas que são símbolos de desvios, repressões e censuras. O paciente chega a crer que não é um paciente, que o que está ocorrendo com ele é normal, até o momento em que se acentua a gravidade de suas inquietudes. Quando isto sucede é mister encontrar meios para descobrir os desvios, as inibições, repressões etc. E abrir-lhes o caminho para que se manifestem claramente. Em certas ocasiões os impulsos flutuam no Inconsciente, e então voltam outra vez a produzir os estados de desassossego que podem culminar na neurose.

A análise consiste, assim, em fazer que o paciente ponha a descoberto, fatos ou atos que, desde o ponto de vista não psicanalítico, podem parecer perfeitamente normais, mas que, de acordo com a psicanálise, são sintomáticos. No decurso da análise se produzem transferências, entre elas se destaca a transferência ao próprio analista, das atitudes do paciente, com as outras pessoas. Deste modo, o analista se faz carregador das angústias e perplexidade do paciente, ao ponto que precisa ele, o analista, ser analisado. Há certos mecanismos "complexos" que mantêm o indivíduo ou em estado de paralisia mental ou em um estado de transferência de atitudes e emoções. Os complexos têm de ser desalojados, ou dissolvidos, mas é levado a cabo por meios puramente mentais, isto é, fazendo que o próprio paciente chegue não somente a conhecê-los, senão também a resolver a enfrentá-los. O mero conhecimento de que há um complexo não constitui ainda a cura.

A hipótese de um inconsciente, ou conjunto de entidades mentais inconscientes, Freud agregou a hipótese de uma série de impulsos, comparáveis a, se não identificáveis, com instintos e que constituem a força motor dos atos psíquicos. Não é sempre clara a relação entre impulsos e inconsciente, mas é provável que sem os primeiros o segundo permaneceria inativo. A energia dos impulsos é de várias classes e não somente sexual. É um erro atribuir a Freud a idéia de que a sexualidade é o motor único dos processos mentais. No entanto, Freud pôs em relevo a grande importância dos impulsos sexuais, isto é, da chamada "libido", que se manifesta muito prematura no ser humano.

Freud tratou de sistematizar os mecanismos de explicação do comportamento psíquico mediante várias hipóteses suplementares. A mais destacada é a que postula três grandes fatores ou sistemas constituintes da personalidade: O Id, o Ego e o Superego. O Id é o nome que recebe a origem dos impulsos, os quais aspiram a ser satisfeitos. O Ego é a parte da pessoa que trata com o mundo e que representa uma espécie de ponte entre o mundo e o Id. No Ego se encontra o Superego, este trata de sobrepor-se ao Ego, e com ele, aos esforços do Ego para relacionar o Id com o mundo. O Superego aspira a exercer um controle sobre o eu, sobre o Ego, ao modo como as normas estatísticas e normativas (morais) aspiram a controlar o comportamento. De fato, o Superego é como o conjunto de normas que se adquiriu desde a infância e que aparecem às vezes como desejáveis e indesejáveis; desejáveis por sua racionalidade; indesejáveis por opor-se à satisfação dos impulsos do Id.

A repressão de impulsos pode ser, e é em pequena proporção, a causa da neurose. Por outro lado, os impulsos e especialmente a libido, podem ser canalizados e sublimados, dando lugar a grandes criações culturais. Mas, posto que os impulsos não se reduzem à libido, há que se ter em conta outros fatores ou sistemas de impulsos para dar conta tanto das atividades psíquicas individuais como, e sobretudo, do processo da civilização humana. O princípio do prazer fica compreendido em um princípio mais vasto e potente: o princípio da vida ou Eros. E este se contrasta com um impulso de morte ou impulsos de destruição. Boa parte da cultura humana se desenvolve ao fio do conflito entre estes dois impulsos.

Há muitas interpretações possíveis dos conceitos básicos propostos por Freud. Em uma passagem das lições para a Introdução à Psicanálise, 1916-1918, Freud diz que há que se descartar todo suposto alheio às questões tratadas, de qualquer índole que seja, anatômico, químico ou fisiológico, e há que se usar conceitos de caráter puramente psicológico. Isto faz com que se pense que a psicanálise de Freud se funda em uma psicologia ou metapsicologia puramente mentalista.

Em 1895, Freud redigiu um texto intitulado "Projeto de psicologia científica", donde se propunha investigar as bases fisiológicas do comportamento psíquico, particularmente como estudo das interações de neurônios. A não publicação deste texto tem sugerido que Freud achava prematuro o estado dos conhecimentos de fisiologia do sistema nervoso na época. Se é verdade, o mentalismo não reducionista de Freud é conseqüência de uma série de hipóteses provisórias e não é, em princípio, incompatível com uma concepção fisiologista ou materialista. Os que estão a favor desta interpretação mostram que há continuidade entre o projeto científico de referência e o desenvolvimento da psicanálise freudiana. Alguns indicam que a teoria freudiana da psique, ainda que representada em termos puramente psicológicos, funda-se em modelos conceituais equiparáveis a modelos físicos, químicos ou neurofisiológicos.

II.  Psicanálise da Existência

Temos três sentidos para análise existencial:

A. Uma, melhor dita, analítica existencial psiquiátrica, desenvolvida por Ludwig Binswanger; Viktor Von Gebsattel, Erwin W. Strauss, Eugène Minkowski e Rollo May. Binswanger a definiu como uma forma antropológica de investigação científica, isto é, uma forma encaminhada a apreender a essência do ser humano. Seu nome e fundamentação filosófica derivam da análise existencial (Daseinsanalyse) de Heidegger e Medard Boss, embora quem tenha usado pela primeira vez a expressão análise existencial tenha sido Viktor Frankl. Heidegger teve o mérito de haver descoberto uma das estruturas fundamentais da existência e descrevê-Ia, em suas partes essenciais, isto é, a estrutura do "estar-no-mundo".

As idéias de Binswanger representam uma parte importante da analítica existencial psiquiátrica, mas nem todos os psicanalistas existenciais estão de acordo com ela. Mas todos os psicanalistas acima citados insistem em que cultivam uma ciência empírica e que tem fins terapêuticos.

Os psicanalistas existenciais argúem contra os psicanalistas ortodoxos, ou clássicos, que ainda que estes últimos pretendam não apoiar-se em fundamentos filosóficos, o certo é que quase todas as suas teses e práticas se fundem em uma concepção naturalista do ser humano e usando esquemas procedentes das ciências naturais, por exemplo, o esquema da explicação causal.

B. Em outro sentido se chama de psicanálise existencial, alguns, como eu, preferem psicanálise da existência, a proposta por Jean-Paul Sartre, em O Ser e o Nada, parte IV, Cap. II, seção 1. Nem uma fenomenologia ontológica nem uma pura descrição empírica bastam para decifrar, isto é, saber interrogar as condutas, tendências e inclinações humanas. É necessário um método, que é a análise existencial. Sartre descreve seu princípio, finalidade, ponto de partida e método da seguinte maneira: o princípio que o homem é uma totalidade e não uma coleção; em conseqüência se expressa inteiro na mais insignificante e mais superficial de suas condutas. A finalidade é decifrar os comportamentos empíricos do homem. O ponto de partida é a experiência; seu ponto de apoio é a compreensão pré-ontológica e fundamental que o homem tem da pessoa humana. Seu método é comparativo, posto que, com efeito, cada conduta humana simboliza a seu modo a escolha fundamental que porá em manifesto, e posto que ao mesmo tempo cada conduta oculta tal escolha sob seus caracteres ocasionais e sua oportunidade histórica, comparando estas condutas faremos surgir a revelação única que expressam de modo diferente.

Note-se que em vários aspectos a psicanálise existencial sartreana é parecida com a clássica; em todo caso, ambas coincidem no principio adotado. Sartre reconhece que o esboço primeiro do método da psicanálise existencial foi proporcionado pela psicanálise de Freud e seus discípulos (Carl Gustav Jung e Alfred Adler), mas esta é razão demais para estabelecer em que diferem ambos os tipos de psicanálise. Uma discrepância fundamental é esta: a psicanálise clássica tem decidido acerca de seu elemento irredutível em vez de deixá-Io que se manifeste por si mesmo em uma intuição evidente. A Libido ou a Vontade de poder constituem, com efeito, um resíduo psicobiológico que não é por si mesmo claro, e que não nos parece que deva ser o fim irredutível da investigação. Esta discrepância se deve ao que se poderia chamar, paradoxalmente, a natureza da escolha fundamental, que desempenha um papel decisivo na idéia sartreana da realidade humana e que descarta todas as causações mecânicas e, em rigor, todas as causações. A psicanálise existencial interroga com a finalidade de extrair à luz esta escolha, a diferença de qualquer estado. Uma importante diferença entre a psicanálise freudiana e a sartreana é que este último rechaça a hipótese do inconsciente. O fato psíquico, afirma Sartre, é co-extensivo à consciência.

"A psicanálise empírica trata de determinar o complexo… A psicanálise existencial procura determinar o projeto original" (EN 690). O projeto é o conceito chave de Sartre para o exame do comportamento humano e é estabelecido a partir da liberdade radical do conceito de para-si (consciência). Ora, se somos indeterminação pura, não possuímos nenhum caráter no sentido estrito da psicanálise clássica, freudiana ou não, pois toda ela é determinista. Sartre afirma que não há caráter, há projeto de si mesmo. Educação, hereditariedade, constituição física, são para Sartre ídolos explicativos de nossa época, para ofuscar nossa liberdade, nos eximimos da responsabilidade e usamos como armas a má fé.

Somos condenados a ser livres, somos livres para escolher a nós mesmos.

Sartre estuda como se desdobra e se efetiva no mundo nossa liberdade segundo a estrutura da ação humana. O para-si cria um conteúdo através de atos: ele é obrigado a escolher e agir, face às possibilidades que se abrem diante dele. A ação é fundada no vazio do para-si e na sua capacidade de negação.

Mas, para agir o homem deve estabelecer projetos: decidir entre as coisas a serem feitas, e quais ele irá efetivamente fazer. A decisão é feita pela valoração da consciência. A consciência confere valor às coisas, tomando-as preferíveis umas às outras. Por isso, Sartre afirma que a consciência reflexiva se identifica com a consciência moral. A consciência moral é necessariamente implicada na consciência reflexiva. Ao refletir sobre o mundo eu imediatamente o julgo e o avalio. O valor é a criação específica do ser para-si: funda-se na liberdade.

Ao criar e conferir valores, escolho livremente meus atos e o que a psicanálise clássica chamaria de "caráter". Essa escolha fundamental de mim próprio é o que Sartre designa de "projeto original", não é um "caráter", pois pode ser mudado a qualquer momento, mas orienta a minha maneira de apreender o mundo, subordina meus outros projetos e determina minhas ações, emoções, sentimentos etc.

À psicanálise freudiana reconhece Sartre, muitos méritos tanto práticos como teóricos: o de ter considerado o homem não como um conjunto de fenômenos sem relação, mas como uma totalidade orgânica; o de ter compreendido que cada palavra e cada gesto humano só encontram o seu significado se referido a esta totalidade; e que ambas, as palavras e os gestos, são símbolos de situações outras, as quais devem ser levadas em conta para compreender tais palavras e gestos; que existe no homem uma vida profunda e pré-reflexiva onde atuam desejos e impulsos de grande importância para todo o ser e agir humanos, e que o problema de fundo é a determinação desses desejos e impulsos, embora o sujeito não possa cumprir esta tarefa por si só, apenas com o seu próprio intelecto. Mas, para Sartre, a psicanálise freudiana veio comprometer a validade das suas próprias teses, ao ditar diversos princípios falsos. Sendo que, alguns destes princípios são análogos aos da velha psicologia que, todavia, a psicanálise pretendia rebater. Freud manteve uma concepção materialista e biologista, basta que pensemos como é apresentada a libido – das forças e dos fenômenos psíquicos. Desprezou a natureza própria da consciência, introduzindo a noção de inconsciente e negando a capacidade de livre escolha inerente ao homem. Assim esboçou uma teoria determinista e generalizante, resultado de considerar as forças e as estruturas como atuantes de um modo universal e necessário em todos os indivíduos. Destituído da sua capacidade intrínseca de livre escolha, o homem freudiano surge condicionado de um modo absoluto por toda uma série de determinismos, situações que o restringem a certa natureza e a certo passado.

A psicanálise existencial esboçada por Sartre pretende, antes de mais nada, dar um novo fundamento à especificidade dos fenômenos psíquicos e recuperar a consciência como livre escolha e livre projeção. Rejeita a pretensão de considerar as pulsões e os complexos como outros tantos em-si (mundo) existentes em números finitos dentre os quais se poderiam indicar de um modo universal e necessário os mais importantes (a sexualidade, o poder, a morte etc.) Para-si ontologicamente livre e projetivo, a consciência pode produzir, na realidade, toda a espécie de desejos. Toda a consciência constitui de um modo autônomo e indecomponível, a sua teia de desejos e projetos próprios, de faltas e de escolhas próprias. A tarefa da psicanálise não pode ser, portanto, o estabelecimento de uma tabela apriorística e abstrata dos desejos, complexos etc., em geral. Em vez disso, ela deve interrogar a consciência na sua existencialidade individual, procurando compreender o modo como o "projeto fundamental" do homem, fazer-se síntese finalmente de em-si-para-si, fazer-se Deus, se concretiza em cada caso singular em múltiplos desejos e projetos particulares e numa determinada relação consigo, com o Outro, com o mundo circundante.

Com a definição da consciência, como liberdade, Sartre é levado a não considerar o peso dos condicionamentos psíquicos. Mas é preciso dizer que algumas críticas ao biologismo e ao determinismo são muito importantes e que sua insistência nas questões da consciência – como falta e desejo e da escolha como expressão pré-reflexiva, de todo o sujeito enquanto ser-no-mundo, suscita um aprofundamento dos aspectos subjetivos e existenciais presentes no agir humano.

A liberdade é apresentada como uma "totalidade não analisável" (EN,548), não podendo ser objetivada ou definida de modo algum. Dela apenas se pode ter uma experiência pessoal e interior. Mas, a liberdade configura-se como um absoluto: sem essências sem norma, sem necessidade lógica. Não estando condicionada a qualquer fixação efetiva na situação histórico-social do sujeito humano a liberdade não pode ser examinada na sua proveniência, conteúdos, modos específicos e determinados; definida como superação e transcendência, configura-se como não-ser, como negação genérica de uma realidade classificada como facticidade opaca e em estado bruto. Identificada com o próprio ser do homem, deveria na teoria definir o horizonte ontológico do agir humano sob a forma de possibilidade e problematização. Ao invés disso, e devido ao seu caráter absoluto, esta identificação transforma o âmbito do possível e do problemático – que deveria diferenciar o homem das coisas ­no seu contrário – o homem, como já dissemos, está condenado à liberdade, ou seja, vive a liberdade como necessidade e como destino.

O homem, neste ponto, vive no absurdo e na angústia. O absurdo está, para Sartre, no fato de que o ato humano, qualquer que seja este ato, sendo levado a cabo por um sujeito livre, independente de todos os princípios e valores dados. Assim como criticamente transcendente ao negar a realidade sobre a qual age, não é fundado em qualquer objetividade exterior, sendo determinado apenas por uma norma interior, para além de todas as razões. É, por isso, incompreensível, absurdo, à luz dos simples dados e dos princípios gerais e objetivos. A angústia, em seguida, está no fato de que o sujeito enquanto sujeito livre se descobre como um mero nada, como transcendência que se distancia em relação às coisas, como inevitável projeção em direção a esse nada que é o futuro, assim negando o ser do presente. E acaba descobrindo, também, o inquietante vazio da sua própria disponibilidade em relação à infindável gama de possibilidades de ação em um mundo que, por sua vez, lhe surge como enigmático e silencioso, não a ponto de impedir a ação, mas também não fornecendo um sentido e indicações de modo a clarificar a própria ação. Concebida como não-ser, como transcendência por definição estranha ao ser e estranhando o ser, a liberdade sartreana parece condenar o homem a uma solidão absoluta, porque não há a priori a possibilidade de deixar uma marca válida na realidade. O conceito primordial da psicanálise existencial é o da liberdade.

III. A Liberdade

O que leva Sartre a rejeitar a concepção comum de liberdade é sua crença de que o poder de realizar fins particulares não é em si um grande valor, sob esta sentença repousam outras três.

­_ Em primeiro lugar, o homem é um ser que só existe projetando-se a si próprio além do presente, em direção ao futuro. Existir é fixar alvos e persegui-Ios. Se tenho um desejo empírico e ele é satisfeito significa que substituiremos e devemos substituí-Io por outro desejo. Um estado de completa satisfação dos desejos seria equivalente à morte. A tragédia da condição humana está em que o homem é um ser que deseja e o desejo é um estado de carência ou falta. O existencialista afirma que o homem comum definiu a liberdade com base na noção errada de que há um estado de desejo satisfeito ou ausência de frustração, que pode ser alcançado através da satisfação dos desejos empíricos. O homem tem de desejar para existir, e no ato do desejo, ele se constitui como incompleto e não realizado. Tal imperfeição e insatisfação são necessárias para que o homem seja livre, mesmo no sentido de ser capaz de superar obstáculos. A liberdade, diz Sartre, "cria ela mesma os obstáculos em virtude dos quais sofremos" (EN, 576). Portanto não adianta dizer que eu sou livre para ir ao Japão pelo fato de não ter dinheiro. Pelo contrário, é em relação a meu projeto de ir ao Japão que eu me vou situar não tendo dinheiro.

_ Em segundo lugar, mesmo que o homem conseguisse satisfazer todos os seus desejos particulares, empíricos, ele não alcançaria a felicidade; pois o desejo de objetos particulares, empíricos do mundo, está sempre pendente e é simplesmente uma particularização do desejo mais geral, do impossível. O projeto fundamental do homem, de ser Deus, não pode ser satisfeito através do desejo empírico, como o complexo de Édipo não pode ser resolvido, ao sonhar que um soldado mata o general. O que Sartre quer dizer, é que um desejo satisfeito, no sentido de desejo realizado, não traz satisfação no sentido de prazer ou felicidade.

_ Em terceiro lugar, mesmo que o homem pudesse furtar-se ao assalto de desejos e pudesse sentir prazer ou felicidade em um estado de satisfação total dos desejos, isto se daria à custa da intensidade e dos valores existencialistas. É claro que a vida intensa com valores existencialistas seria superior a um estado de contentamento ou felicidade.

"O homem, diz Sartre, não pode ser ora livre, ora escravo; ele é totalmente e sempre livre, ou não o é" (EN,516). Ele nega que situações objetivas, ou motivos subjetivos nos conduzam realmente à ação. A situação objetiva nos leva a agir somente na medida em que a apreendemos e nossa própria apreensão de uma situação objetiva é determinada por uma livre escolha de fins. As paixões ou motivos subjetivos só podem ser considerados em um sentido derivado, uma vez que as paixões só têm o peso que lhe damos. Não somos joguetes de nossas paixões; somos nós que as escolhemos. É claro que as paixões ou motivos subjetivos existem realmente. Mas não devemos considerá-Ias como "pequenas entidades psíquicas habitando a consciência" (EN,643) e exercendo uma influência causal original, e não como manifestações de uma opção anterior.

O motivo real do comportamento humano é um projeto original de nos escolher livremente no momento em que nos destacamos do em-si (mundo) para criar nosso mundo. A causa genuína do comportamento humano é o projeto fundamental de ser do indivíduo. E esse projeto é "uma opção e não um estado; não está enterrado nas trevas do inconsciente" (EN, 661). É antes de tudo uma determinação livre e consciente de si mesmo. A liberdade para Sartre consiste em que "o projeto de ser do indivíduo, fundamental e livremente escolhido, exprime a totalidade de seu impulso em direção ao ser, sua relação original para consigo, com o mundo e com os outros". "O homem, diz Sartre, é uma totalidade e não uma coleção" (EN,656). Pois dado o conhecimento do projeto fundamental de ser de um indivíduo, é possível compreender a mais insignificante e mais superficial de suas atitudes.

A Liberdade é o fazer-se do homem. O para-si, com efeito, é consciência, mas também e mais profundamente liberdade, pois está constituído pelo nada que leva em si e que o opõe radicalmente ao em-si. Já que não pode ser simplesmente, fica a obrigação de fazer-se. Mas a liberdade não é outra coisa: é esse mesmo nada que caracteriza o homem, ou a realidade humana, que segrega seu próprio nada, como possibilidade permanente daquela ruptura ou aniquilação do mundo que é a estrutura mesma da existência. A liberdade é condição primeira da ação.

A Liberdade não é definível, porque não tem essência; pelo contrário, a liberdade é o fundamento de todas as essências. É precisamente o nada que tem existido no coração do homem e que obriga a realidade humana a fazer-se, em lugar de ser. Consiste, portanto, na mesma existência humana: nela, a existência precede a essência, isto é, não há uma natureza humana; somente há uma maneira de dizer que o homem se faz escolhendo-se. A liberdade do para-si aparece como seu ser. Mas como essa liberdade não é algo dado, nem uma propriedade, somente pode ser escolhendo-se.

Sartre, como estamos vendo, aceita a análise comum do ato voluntário, que se determina para seus fins através de certas causas subjetivas e motivos objetivos. Mas a realidade humana não pode receber seus fins nem do exterior nem de uma pretendida natureza interior. Ela mesma os escolhe e por essa escolha confere-lhes uma existência transcendente como limite externo de seus projetos. A liberdade originária é pura espontaneidade e o fundamento dos fins que trata de alcançar, seja pela vontade ou pelos impulsos passionais; toda a estrutura da escolha deliberada se organiza com o conjunto de causas, motivos e fins pela espontaneidade livre e esta sustentada por uma liberdade originária e ontológica, que coincide com a aparição da mesma existência. "Estou condenado a ser livre", isto significa que não se poderá encontrar a minha liberdade em outros limites que os dela mesma, ou, que não sou livre para deixar de ser livre.

O ato fundamental da liberdade e o que dá seu sentido às ações particulares, um ato constantemente renovado, que não se distingue de meu ser, é escolha de mim mesmo, no mundo e, ao mesmo tempo, descobrindo o mundo. E uma escolha original que se confunde com a consciência que temos de nós, porque escolha e consciência são uma só e a mesma coisa. E é a vez do projeto fundamental de minha existência, pois a liberdade não se refere tanto aos atos e volições particulares quanto a esse projeto fundamental, no qual estão compreendidos e que constitui a possibilidade última da realidade humana. O projeto fundamental deixa sem dúvida certa margem de contingência às volições e aos atos particulares; mas a liberdade originária é a que é inerente à escolha deste projeto inicial e às diversas maneiras de constituir nossas vidas pela vontade, encontram sentido no projeto inicial e não poderão alcançar mais que estruturas de detalhe que não modificam jamais o projeto original. Nossos projetos particulares referentes à realização no mundo de um fim particular se integram no projeto global que somos.

Mas a liberdade é pura facticidade e contingência. Que o para-si seja livre não significa que seja seu próprio fundamento. Se ser livre significará ser seu próprio fundamento seria preciso que a liberdade decidisse acerca de seu próprio ser. Não poderia determinar-se a existência partindo do nada, já que então seria Deus. O homem em sua liberdade está aflito de uma contingência irremediável. Estamos condenados à liberdade, abandonados e jogados nela. Por isso nossa liberdade está em situação e não podemos modificar nossa situação ao nosso arbítrio. Denominaremos situação à contingência da liberdade no pleno ser do mundo e enquanto é dado, que não está ali para obrigar a liberdade. O para-si se descobre como marcado no ser, cercado pelo ser, ameaçado pelo ser; descobre o estado de coisas que o rodeia como motivo para uma reação de defesa ou ataque. O paradoxo da liberdade é que não há liberdade senão em situação e não há situação senão pela liberdade.

Há diversos tipos de situação: espacial, geográfica, passado, meu próximo. Em todas elas, a liberdade encontra resistências e obstáculos que não foi criado. No entanto, não destroem, nem amenizam a liberdade da escolha, que não há de confundir-se com a liberdade de obter, pois a liberdade pode assumir na previsão e organização seus projetos, as realidades provenientes de um coeficiente de adversidade e de utilidade. O projeto de liberdade é um projeto aberto. E a liberdade recupera e faz com que entrem na situação os limites irrealizáveis, escolhendo ser liberdade limitada pela liberdade do outro, ou assumindo a alienação permanente de seu ser-objeto. Sou absolutamente livre e responsável por minha situação. Mas não sou jamais livre senão dentro de uma situação. Assim, a liberdade é total e infinita, o que não quer dizer que não tenha limites, senão que não os encontra jamais. A liberdade tropeça nos únicos limites que se impõe a si mesma: a morte e o nascimento.

A morte, como situação-limite, Sartre tenta humanizar sua realidade. A morte é simplesmente um fato puro ou facticidade derivada de minha contingência e ser nada; e como o nascimento, é afetado do mesmo absurdo. É absurdo que tenhamos nascido, como é absurdo que devamos morrer, esse absurdo se apresenta como alienação permanente de meu ser-possibilidade que não é já minha possibilidade. É uma espera enganosa, que isenta toda a significação da vida. Eu sou espera de esperas de espera que a morte suprime totalmente; a morte transforma minha vida em destino. Mas, não traça limites à minha liberdade. Trata-se, pois, de um limite permanente a meus projetos, e como tal, deve ser assumido este limite. Não há, no fundo, diferença entre a escolha pela qual a liberdade assume sua morte como limite inacessível de sua subjetividade e aquela pela qual escolheu ser liberdade limitada. A conseqüência é que a morte marca o signo mais claro da negatividade do para-si, que se deve resistir com fria atitude estóica.

O erro do determinismo psicológico foi o de procurar uma causa preexistente, unívoca e objetiva para todos os atos humanos, ao mesmo tempo, que descura a existência da consciência crítico-intencional do homem e a sua inerente capacidade de agir de um modo livre e próprio em relação à facticidade do existente. A esta atitude errada, contrapõe Sartre uma psicologia que se recusa a reduzir a consciência a um inerte em-si, em vez disso, concebendo-a como um para-si ontologicamente "em falta" e "desejante" e, portanto, ontologicamente tendente a superar a sua própria situação. A liberdade é precisamente esta permanente "superação", e "projeção", absolutamente espontânea e não derivada do sujeito. O livre agir não resulta propriamente de alguma causa que o motive, sendo antes ele mesmo ao escolher as suas próprias causas à luz dos seus próprios fins e projetos. A psicologia não deve, pois, pretender "entender" de um modo intelectual e determinista os motivos singulares que estão por trás dos atos humanos singulares. Deve, em vez disso, procurar "compreender" a teia de escolhas e de projetos autônomos e originais que constitui o ser do homem enquanto sujeito livre. A esta psicologia anti-factualista e anti-determinista deu Sartre o nome de "psicanálise existencial" (repito, eu prefiro "psicanálise da existência", mas uma andorinha… ).

Referências bibliográficas

1. FREUD S – Conferências de Introdução à Psicanálise (Vorlesungen zur einfuhrung in die psychoanaIyse). GW XI, SE XV-XVI; BNII.

2. ____ – Cinco lições sobre a Psicanálise. Paris: Payot, n. 84, 1979.

3. ____ – Ensaios de Psicanálise. Paris: Payot, 1979.

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5. ____ – La Transcendance de I'Égo. Recherches Philosophiques. Paris, 1936.

6. ____ – L' Imagination Paris: Presse Universitaire de France, 1936.

7. ____ – Esquisse d'une théorie des émotions. Paris: Hermann, 1939.

8. ____ – La Nausée. Paris: GaIlimard, 1938

9. ____ – L'Imaginaire. Paris: GaIlimard, 1945.

10. ____ – SITUATIONS II. Paris: GaIlimard, 1948.

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