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A psicologia clínica e as nossas crianças

Temos como intuito precípuo com a apresentação deste artigo, dar uma passada de olhos sobre o quanto a Psicologia Clínica tem podido corresponder à demanda das nossas criança na contemporaneidade.

É notório que em termos de Psicologia Clínica, pelo menos na realidade que nos envolve, aquilo que se acaba oferecendo como uma modalidade de atendimento em relação à população infantil, se concentra basicamente em dois pontos:

– o diagnóstico.

– proposta psicoterápica.

A demanda do psicólogo clínico encontra-se num crescendo, em termos da necessidade de que se possa contar com um instrumental de intervenção, o qual possa se utilizar de procedimentos que deverão ser administrados naqueles momentos, nos quais, em função do incremento da angústia, poderemos ter como uma conseqüência direta, uma interrupção no processo de desenvolvimento maturacional da criança, com o surgimento da respectiva sintomatologia.

Esta última, na verdade, nos serve de "bússola", a partir da qual sairemos em busca dos conflitos subjacentes à sintomatologia. Seria algo como se, o curto-circuito, nos levasse a examinar a rede elétrica do imóvel.

Dessa forma, também, naqueles momentos denominados de "crise" frente àquelas situações inerentes à vida. Como exemplos, podemos citar as situações de morte, acidentes graves, mudanças geográficas feitas à revelia, separação dos pais, etc.

Toda essa abordagem quanto ao instrumental do qual devemos dispor para que possamos enfrentar situações de "crise", não só se fazem necessárias no âmbito dos atendimentos individuais e particulares, como devemos adaptar também a sua aplicabilidade para o âmbito institucional.

Tendo como pano de fundo esse estado de coisas "pareceu-me desde o final da década de setenta, que uma das soluções estaria na consulta terapêutica, na qual com uma, ou no máximo três sessões, tenta-se trabalhar com a angústia emergente da vida emocional infantil" (G. Safra).

Sabemos que a criança possui uma tendência natural ao desenvolvimento e que este só se deterá em situação de conflitos, onde predominará a formação de sintomas.

O que se visa com a consulta terapêutica, no que tange à elaboração da angústia, é que a criança possa vir a retomar o curso de seu desenvolvimento normal.

Passaremos a citar alguns autores que, ao longo do tempo, tem estudado e elaborado procedimentos e técnicas para que esse tipo de consulta se viabilize.

Harris(1966), procurou demonstrar a possibilidade de se abordar problemas psicológicos em um tempo relativamente breve, enfocando uma situação crítica familiar. Prescreve três entrevistas e uma análise final das conclusões. Sua técnica baseia-se no assinalamento, isentando-se dos conselhos e atuando como continente da angústia dos pais.

Winnicott(1971), descreve um método (Squiggle game), onde pretende oferecer ao cliente a oportunidade de expressar-se e conseguir dessa forma, um auxílio para o conflito que vivencia. Aqui entre nós, esse procedimento é conhecido como o "jogo de rabiscos", um trabalho lúdico que favorece o aparecimento de uma boa comunicação paciente-terapeuta, o qual permite à criança "surpreender-se" diante de sua angústia, vindo a superar aquele momento de paralisação, quanto ao seu desenvolvimento.

"Esse trabalho me forneceu a inspiração e os conceitos necessários, para o procedimento de consulta que adoto" (G. Safra).

F. Dolto(1977), desenvolveu um método onde em uma entrevista com a mãe ou com os pais, sempre com a presença da criança, onde procura conversar com os pais, mas também comunicar-se com a criança e, com freqüência oferece-lhe papel e lápis. Na mesma sessão da entrevista, Dolto opina em relação à criança para os pais. Depois fica a sós com a criança e conversa com ela, fazendo comentários sobre os desenhos realizados.

"Considero Dolto, ao lado de Winnicott e Ferenczí, os grandes clínicos da história da psicanálise" (G. Safra).

Para quem trabalha com crianças, é sabido da importância da expressão lúdica, como se constituindo num modo privilegiado para a elaboração de vivências emocionais e, o estabelecimento de formas de comunicação com o outro.

Freud(1922), já descreve o jogo de um menino frente ao desaparecimento de sua mãe e, salienta que o brinquedo era uma tentativa de elaboração da angústia sentida pela criança (fort-da).

Klein(1969), afirma que a criança expressa suas fantasias, desejos e experiências, de forma simbólica por meio de jogos e brincadeiras. Para esta autora, a criança utilizaria os mesmos modos arcaicos e filogenéticos de expressão, com os quais já estamos familiarizados nos sonhos.

Arminda Aberastury(1981), ressalta que, ao jogar, a criança desloca para o exterior, seus medos e angústias, numa tentativa de dominá-los por meio da ação. Assim, "o jogo, como o chiste, conseguiria um suborno do superego, que tornaria possível a liberação de sentimentos e afetos censurados.

Maurício Knobel(1977), ratifica a importância da "projeção", no brincar, seguindo de perto uma tradição kleiniana.

Notamos que para os autores citados acima, o jogo seria resultado de projeções e introjeções, vindo a se constituir num campo de realização de desejos. O jogo não teria importância em si mesmo, mas sim um meio de acesso ao inconsciente.

Encontramos em Gilberto Safra, uma oposição a este tipo de visão de coisas e, passamos a citá-lo: "Não compartilho desse tipo de visão. Para mim, seguindo Winnicott(1971), o jogo possibilita o estabelecimento de um campo de experiência, de um sentido de realidade e, também é espaço privilegiado do vir a ser humano. Buscando no registro lúdico maneiras de auxiliar a criança na elaboração de seus conflitos, minha atenção voltou-se para as histórias infantis como modo de comunicação adequado ao momento do processo maturacional no qual a criança se encontra. O conto é uma forma de expressão mais próxima daquela que naturalmente é utilizada pela criança na organização, na elaboração e superação de seus conflitos psíquicos"

(…)

"Considero as diversas formas de jogo da criança, assim como as histórias, não só como um modo de encontrar expressão para desejos inconscientes, mas fundamentalmente como um  modo de colocar seus conflitos subordinados à sua criatividade, ou seja, sob o domínio do Eu".

Sabemos da existência de uma afirmação de D. Winnicott, a qual entendemos ser de extrema importância: "o jogo é universal e pertence à saúde".


Algumas referências históricas:

Na cultura hindu, um conto era oferecido a uma pessoa desorientada, a fim de que ela meditasse sobre ele e pudesse ser curada por esse procedimento.

Os Sufis usavam e usam os contos para ajudar aos seus discípulos a superar um conflito existencial e espiritual (Shah,1976).

Sabemos que os mitos e as histórias sempre ocuparam um lugar de destaque na psicanálise. Freud, por exemplo, voltou-se para o mito de Édipo, para representar o que observava em sua prática clínica. Chegou também a comentar o significado das histórias de Rumpelstilzchen, o Chapeuzinho Vermelho e o Lobo e os Sete Cabritos (1913), muito embora, na visão de Freud se tratasse principalmente da realização de desejos.

Hellmuth(1920), refere-se a um caso de análise de uma criança, onde usa uma técnica interpretativa baseada em histórias, com um objetivo mais educativo.

Erich Berne(1972): esse autor conecta os contos, com os problemas de seus clientes, a fim de que possam reconhecer de que vivem apenas um "script" entre diversas possibilidades.

Wittgenstein(1965), solicita ao cliente que narre algumas das histórias de fadas comuns de que tenha lembrança. As distorções que essas histórias sofrem sob a influência da mente do cliente são vistas como uma indicação da problemática pessoal do cliente frente ao problema geral humano apresentado pelo conto.

Bettelheim(1980), as histórias infantis, tratando de problemas humanos universais, falam ao ego em germinação e encorajam seu desenvolvimento, além de aliviar tensões pré-conscientes e inconscientes.

Ramon & cols.(1978), descrevem uma técnica terapêutica para crianças com problemas de conduta, aprendizagem ou sintomas neuróticos. O terapeuta conta a cada criança um conto popular, do qual a criança escolhe um personagem para dramatizar ou modelar em argila. Assim, é oferecida uma estimulação à simbolização e à expressão de sentimentos, propiciando assim uma elaboração dos conflitos subjacentes à problemática.

Encontramos em Gilberto Safra, uma discordância quanto ao uso indiscriminado da utilização dos contos de fadas, quando temos como objetivo precípuo, sua utilização terapêutica. Para ele, para que um conto possa ser utilizado de uma forma benéfica por uma criança, deve ser levado em conta qual o seu momento no processo  maturacional, seu meio cultural, suas angústias, etc. Se o processo não ocorrer dessa forma, corremos o risco de intensificar as angústias da criança, dependendo da história que lhe for contada.

Esta abordagem de Safra está fundamentada na abordagem de Winnicott quanto "à apresentação de objetos", constituindo-se como uma função importante do processo de "maternagem", onde a mãe apresentaria a realidade de maneira dosada, segundo as possibilidades da criança em assimilá-las.

Aquí encontramo-nos frente à uma metáfora referente à situação analítica, onde o analista deve comunicar ao paciente aquilo que se passa no campo transferencial, sempre levando em conta à sua condição de assimilação e utilização terapêutica do que está sendo tratado.

Embora não seja um expert na obra de Winnicott, nem de Piera Aulagnier Spairani, não me escapou a associação possível, a meu ver, entre os processos de maternagem, e aquilo que Piera denominou de "Violência da interpretação", onde também a mãe vai aos poucos interpretando o mundo para a sua criança, processo que parece suplantar a capacidade da criança de fazê-lo, mas, que na verdade lhe acaba sendo profundamente estruturante.

Poderíamos, ainda a título de associação, introduzir na somatória entre a maternagem de Winnicott e a Violência da interpretação de Piera Aulagnier, Jacques Lacan e a sua tão decantada "fase do espelho", onde o indivíduo pode vir a se constituir enquanto sujeito, através do olhar de um Outro. Aqui, o Outro também realiza uma "interpretação".

Deixo aqui, portanto essas minhas associações, aguardando a possível e desejada manifestação dos colegas, seja ela de forma sintônica ou distônica. O mais importante é que possamos problematizar entre nós, para podermos oferecer sempre algo de melhor àqueles que nos procuram.


Bibliografia para Consulta

Safra, G. Curando com histórias. São Paulo: Edições Sobornost.

Bettelheim, B.  A Psicanálise dos contos de fadas.

Acesso à Plataforma

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