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Distimia

Resumo

Desde a época de Hipócrates, o problema da "depressão persistente do humor" era clinicamente conhecido. Kahlbaum descreveu pela primeira vez a Distimia no século XIX, distinguindo-a da ciclotimia (oscilações leves entre depressão e euforia). Entretanto persistia a dificuldade de se diferenciar um quadro de depressão leve, de um traço depressivo de personalidade.

No DSM-Ill, todas as depressões crônicas, com mais de dois anos de evolução, foram definidas como transtornos distímicos. No DSM-III-R estão reunidos, na categoria dos transtornos afetivos, tanto a ciclotimia quanto a Distimia. A CID-10 inclui, sob a rubrica de Distimia, várias condições nosológicas, entre as quais a "depressão recorrente". Na atualidade subsistem um grande número de questões não resolvidas com relação a esta categoria nosológica.

Unitermos: Distimia; transtornos do humor; nosologia; depressão; mania

Conceito e Diagnóstico Diferencial

Nas suas origens helênicas, o termo Distimia designava "perturbação do humor" e se referia a uma inclinação temperamental: a melancolia. Isto foi bem acentuado por Hipócrates quando da caracterização do temperamento melancólico, o qual é também minuciosamente descrito por Burton na sua "Anatomia Melancólica", no século XVII. Já no século XVI, Tereza de Jesus, assinalava a distinção entre a doença melancólica e o caráter melancólico, observando que a primeira condição era passível de tratamento com os instrumentos terapêuticos disponíveis àquela época – fundamentalmente os cuidados religiosos – enquanto o caráter melancólico se auto-regulava no interior da ordem monástica e não representava qualquer risco para a estabilidade daquelas instituições.

Embora utilizada algumas vezes, em linhas gerais, para denominar todas as alterações afetivas de qualidade depressiva, ansiosa e obsessiva, quando empregada para nomear uma das condições que compõe a ampla gama de transtornos depressivos, o termo Distimia vem se restringindo ultimamente a significar depressão leve e crônica.

Assim, este termo poderia retratar alguém que é habitualmente soturno, introvertido, ultra-escrupuloso, incapaz de estar alegre e preocupado permanentemente em não se comportar de forma inadequada. Entretanto, a literatura psicopatológica continha, até há alguns anos, pouca informação sobre este transtorno. Somente à guisa de ilustração, destaco que importantes Tratados de Psiquiatria sequer fazem menção à Distimia.

Na atualidade a Distimia é definida como uma condição depressiva crônica e persistente freqüentemente associada com outros transtornos psicopatológicos. Esta co-morbidade tem, por vezes, conduzido à conclusão de que estamos diante de uma condição caracterológica, ou um distúrbio de personalidade diante da qual, a terapêutica indicada, a psicológica e a medicamentosa, eram de pouco ou nenhum resultado, não fazendo parte dos protocolos terapêuticos na maioria dos casos.

Somente nos anos 80, a Distimia foi reconhecida como uma entidade clínica distinta. Antes da definição do transtorno pelo DSM-Ill (1980), uma variedade de termos foi utilizada para descrever a condição clínica que é atualmente delineada como Distimia. Dentre estes termos, destacam-se a Depressão neurótica, o Distúrbio depressivo crônico, a Depressão menor, a Depressão atípica, e a Depressão mascarada. Por outro lado, uma vez que os transtornos depressivos crônicos (incluindo a Distimia) não eram considerados responsivos à psico e nem à farmacoterapia, houve pouco interesse pelos estudos controlados.

Considerações nosológicas

As nosologias são tentativas de integração do conhecimento disponível em uma construção teórica que leve em conta determinadas hipóteses. O valor de cada sistema nosológico será aferido com base naquilo que ele permita predizer. Os sistemas nosológicos mais recentes vêm tendo o mérito de procurarem ser etiologicamente neutros. Assim, eles possibilitam uma avaliação independente dos tipos e da severidade dos sintomas, dos eventos precipitantes, do prejuízo funcional causado pelo transtorno, das características de personalidade dos indivíduos e da co-morbidade com outros diagnósticos psicopatológicos. Devido às limitações do conhecimento atual sobre etiologia, vem sendo aceito que os nomes das doenças simplesmente se refiram ao ponto final do processo diagnóstico. Como se pode perceber, nas nosologias atuais, são incluídas categorias definidas por uma variedade de diferentes caminhos os quais não podem ser ordenados hierarquicamente.

A classificação dos transtornos afetivos no sentido moderno deriva principalmente da Escola Canadense do fim do século XIX. A primeira descrição clínica da Distimia foi feita por Karl Ludwig Kahlbaum em 1863. Kahlbaum enquadrou a Distimia como uma forma crônica de melancolia que contrastava da ciclotimia, por ser esta última um transtorno caracterizado pela flutuação do humor. Na descrição daquele autor, os distímicos não vivenciavam simplesmente a fase depressiva de um transtorno circular nem tinham história de mania. Além disso, as evidências de que os pacientes sofriam de alterações crônicas de funções psíquicas não eram muito claras.

No século XX, Kraepelin, em 1921, dando seqüência à ênfase no curso evolutivo dos transtornos, inaugurada por Kahlbaum, referia-se a "Temperamento depressivo". Kraepelin defendeu fundamentalmente uma classificação de doenças mentais calcada na história natural dos pacientes ou no curso evolutivo dos seus transtornos ao longo dos anos, antes de terem se estabelecido os atuais sintomas psicopatológicos. Enfocando a depressão crônica, Kraepelin acreditava que o temperamento prévio dos pacientes fosse o substrato do qual ela se desenvolveria. Estes tipos de depressão freqüentemente se caracterizavam por uma fase depressiva protraída, precedida por um episódio mais agudo, fazendo, porém, essencialmente, parte do mesmo processo mórbido e passível de reagudização.

Embora Adolf Meyer tivesse introduzido a classificação de Kraepelin nos USA, ele e sua Escola Psicobiológica, já assinalavam que muitos transtornos depressivos não apresentavam o feitio clínico descrito como "loucura maníaco-depressiva". Em sua monografia de 1956, sobre as Personalidades Psicopáticas, Kurt Schneider descreveu a "Psicopatia Depressiva", um termo que não teve a conotação anti-social ulterior que o conceito de Personalidade Psicopática adquiriu no pensamento schneideriano. Àquela época, Schneider concebia estas condições mórbidas como variações da normalidade com traços de temperamento acentuados. O tempo e a evolução do conhecimento psicopatológico se encarregaram de demonstrar que a sua definição de Personalidade Psicopática era limitada, idealmente pura e unicamente psicológica, não sendo hoje mais levada em conta como uma concepção relevante.

O sistema kretschmeriano de 1930 incluiu a "Constituição Depressiva". Acreditava Kretschrner, em 1950, que tais pessoas eram dotadas de uma predisposição para a doença maníaco-depressiva, partindo da evidência de que hipomanias transitórias não eram raras naqueles casos. No decorrer do século XX, expressivos psicopatologistas europeus formularam e consolidaram a concepção da existência de um espectro depressivo. Akiskal, em 1990, situou bem a dificuldade de se estabelecer a diferença entre um modo de ser habitualmente depressivo em pequeno grau ou a "personalidade depressiva" de Schneider, da Distimia, por ele considerada basicamente como um Transtorno Subafetivo duradouro.

Sistemas de classificação

A partir dos anos 60, o DSM-II norte-americano incluiu a "Depressão Neurótica" na qual a ênfase recaiu mais sobre os aspectos de personalidade, do que sobre a sintomatologia. Neste sistema diagnóstico, os transtornos psicopatológicos foram descritos como "reações", entendidos como secundárias a mecanismos psicológicos não identificados. Estados crônicos de depressão foram qualificados ou como "Personalidade ciclotímica", ou "Neurose depressiva", tendo sido classificados no interior das secções dos distúrbios de personalidade e/ou neuroses.

Àquela época, a Psiquiatria Norte-Americana ainda era influenciada, predominantemente, tanto pelas teorias "meyerianas" como pelas "psicodinâmicas". Em decorrência, considerava-se que o melhor tratamento para a assim chamada depressão neurótica fosse a psicoterapia. A tentativa de equivaler transtornos de humor crônicos das personalidades anormais com os distúrbios afetivos persistentes não foi suficientemente reconhecida. A visão de que os transtornos de personalidade não eram tratáveis representou um problema conceitual insuperável tornando-se mais complexo pelo fato de que a existência de personalidades normais, com traços anormais variantes de personalidade não representavam necessariamente transtorno psicopatológico, um ponto que é agora convalidado pela CID-10.

A CID-9 (WHO) de 1978 incluiu Neurose Depressiva a qual comportou episódios depressivos curtos e sem cronicidade como no DSM-II. Foi um conceito diagnóstico fortemente influenciado pela psicanálise. Em 1978, Akiskal relatou um estudo de seguimento de neuróticos depressivos: 40% foram diagnosticados como tendo Transtorno Depressivo Maior (unipolar e bipolar), enquanto muitos dos remanescentes foram considerados pelo autor como sendo quadros distímicos. Isto representou um suporte importante para se estabelecer as bases empíricas da Distimia no seu sentido atual.

No DSM-IIl (APA) de 1980, todas as depressões crônicas que duravam mais de 2 anos foram definidas como ''Transtornos Distímicos". Esta nova categoria incorporou muitos estados depressivos que tinham sido previamente considerados como distúrbios classificados quer como uma forma de neurose (inclusive as neuroses depressivas), quer como um Transtorno de Personalidade (por exemplo, a ciclotimia). A Personalidade Depressiva, um conceito derivado da tradição da psicopatologia alemã, foi incluída sob esta rubrica pelo fato de não responder aos tratamentos somáticos, embora os Transtornos Distímicos também não fossem considerados responsivos nem à psico e nem à farmacoterapia.

Para o diagnóstico de Distimia o DSM-IIl requeria um mínimo de 2 anos de história de períodos contínuos ou de múltiplos episódios de sintomas depressivos os quais eram característicos de Depressão Maior mas não reuniam a alta gravidade e/ou duração que são critérios para Transtorno Depressivo Maior. Os distímicos não deveriam ter mais do que poucos meses livres de sintomas e se a perturbação era superposta a um transtorno mental preexistente, o humor deprimido deveria ser claramente distinguível de um estado de tristeza habitual do indivíduo. Este foi o primeiro trabalho sistemático para construir um espectro de distúrbios depressivos leves e crônicos sob uma única denominação para fins de diagnóstico e de pesquisa.

Assim sendo, foi uma seqüência da concepção original da Distimia como um transtorno neurótico de personalidade, o que conferiu a este termo relação de equivalência ao "temperamento depressivo" e à "neurose depressiva", até chegarmos, na atualidade, ao conceito de Distimia como um Transtorno Afetivo ou do Humor, caracterizado pela evolução crônica e pelo baixo grau de sintomatologia depressiva. Esta redefinição do transtorno vem conduzindo a uma mudança gradual dos clínicos psi no que concerne ao seu tratamento. A posição de que os casos de duração prolongada são "intratáveis", porque se estaria diante de depressões atípicas que têm como base, acentuadas anormalidades de personalidade, é agora menos aceita.

Portanto, Distimia não é sinônimo de Depressão Neurótica como inicialmente se admitia. Depressão Neurótica seria um transtorno depressivo leve. As não-neuróticas foram reclassificadas como Episódios Maiores não-melancólicos ou atípicos. Portanto, só uma parcela das "Depressões Neuróticas" é diagnosticada como Distimia, após o advento deste sistema nosográfico. Distimia, naquele sistema classificatório, se define como uma condição crônica, mais propriamente considerada no contexto dos Transtornos Depressivos Crônicos.

O DSM-IIl-R (APA) de 1988, reuniu condições afetivas leves e severas no subgrupo dos outros distúrbios afetivos (Distimia e ciclotimia), sem estarem necessariamente fundamentadas em transtornos de personalidade – mas tendo como traço comum sua evolução relativamente prolongada. Neste manual as características-chave da Distimia são:

(a) ela não é uma condição residual do Transtorno Depressivo Maior;

(b) tem um curso crônico de mais de 2 anos de sintomatologia persistente ou intermitente;

(c) tem um baixo grau de severidade;

(d) é compatível com um desempenho social equilibrado;

(e) não é imprescindível concomitância com patologia de caráter;

(f) tem início insidioso.

Em comparação com o DSM-IIl, houve uma mudança na qual a distinção entre a Depressão Maior Crônica e o Transtorno Distímico baseou-se primariamente na forma como o episódio começou: seja diretamente como Episódio Depressivo Maior ou, insidiosamente, como na Distimia. Para Akiskal, em 1993, o conceito de Distimia do DSM-IIl-R, embora seja mais restrito que o do DSM-IIl, ainda é muito amplo, comportando um grupo heterogêneo de Transtornos Depressivos de baixa intensidade.

Angst, em 1992, descreveu a "Depressão Breve Recorrente" que pode representar uma ponte entre a Distimia e o Transtorno Depressivo Maior. Embora o elenco de critérios sintomáticos para a Distimia permaneça basicamente inalterado no DSM-IV existe um novo espaço para a Distimia. Os critérios de classificação se concentram principalmente sobre os aspectos cognitivos da Distimia e seus padrões diversos de evolução.

A CID-10 (WHO) de 1992 define Distimia como uma depressão de humor crônica a qual não satisfaz atualmente os critérios para o Transtorno Depressivo Recorrente (mesmo os de leve ou moderada intensidade) em termos de severidade ou de duração dos episódios individuais. A CID-10 não conseguiu ainda estabelecer um conceito de Distimia que seja essencialmente diferente da Neurose depressiva ou da

Depressão neurótica. A Distimia da CID-10 inclui neurose depressiva, transtorno depressivo de personalidade, depressão neurótica (de mais que 2 anos de duração) e síndrome depressivo-ansiosa persistente. Estão excluídas síndromes depressivo-ansiosas leves, porém, não-persistentes, reações de luto que durem menos que 2 anos e depressão pós-esquizofrênica.

Conclusões

De acordo com os sistemas nosológicos atuais Distimia pode ser diagnosticada e classificada através de critérios distintos, ou do DSM-IV ou da CID-10. A tendência dos autores contemporâneos que mais se dedicam ao tema é a de conceituar Distúrbio Distímico como uma sub-síndrome mais persistente que qualquer forma de Transtorno Depressivo Maior e sem fenômenos psicóticos. Ou seja, a Distimia é crônica, tem uma sintomatologia depressiva menos severa do que até mesmo as formas leves de Depressão Maior.

Além disso, na Distimia a depressão é vivenciada mais fortemente no plano subjetivo que no objetivo; não há intensa agitação nem perturbação acentuada do apetite, nem da libido, e nem sempre esta condição é demarcável da tristeza do indivíduo normal. A irritabilidade, impulsividade e instabilidade do humor do Distúrbio Bipolar também não são observadas nos distímicos. Às vezes é extremamente difícil separar Distimia de uma Personalidade Depressiva (deprimidos crônicos e com sintomatologia pouco intensa), sobretudo quando aquela se inicia precocemente na vida das pessoas. Ainda existem muitos pontos de superposição entre a Distimia, Transtorno Depressivo Maior e Distúrbio de Personalidade. Por outro lado, pacientes que preenchem os critérios para Distimia podem também sofrer de Depressão Maior. Akiskal, em 1981, sustenta que muitos pacientes com personalidade "borderline", também sofrem de Ciclotimia ou de Distimia de longo curso. Apesar do atual reconhecimento formal da Distimia como um tipo de transtorno do humor, tanto na CID-10 como no DSM-IV, duas questões continuam pendentes a respeito de sua validade:

a) A Distimia pode ser diferenciada do Transtorno Depressivo Maior?

b) A Distimia seria melhor conceituada como um distúrbio afetivo de personalidade, do que como um transtorno do humor, no sentido estrito?

Estes impasses partem fundamentalmente de posições antagônicas e respostas conclusivas ainda não existem. As pesquisas em andamento deverão auxiliar a resolver estes aspectos controvertidos da Distimia como – a título de exemplo – a hipótese de Akiskal, de 1983 de que um distúrbio primário de humor pode se manifestar de diferentes modos, entre eles um distúrbio subafetivo (Distimia) e as alterações caracterológicas que acompanham este transtorno.

A Distimia está freqüentemente associada a outras condições nosológicas, resultando em duplo diagnóstico ou em um transtorno misto. Entretanto, de um modo geral a Distimia é considerada como a condição clínica básica. No caso de Depressão Dupla (depressão maior superposta à Distimia), a experiência demonstra que o resultado bem sucedido de tratamento da Depressão Maior implica, no mais das vezes, no retorno aos níveis distímicos básicos de humor. Os estudos mais recentes, metodologicamente bem conduzidos, mostram que um controle eficaz do Episódio Depressivo Maior pode resultar na melhora da síndrome distímica. Deve-se estar atento para a manutenção psico e farmacoterápica da Síndrome Distímica, porquanto tem sido demonstrado que a Distimia inadequadamente tratada representa um alto risco para a recorrência da Depressão Maior.

A Distimia pode ainda ocorrer associada com o Transtorno de Pânico ou com Transtornos Alimentares. O tratamento da condição primária (T. Pânico ou T. Alimentar) com antidepressivos associada à psicoterapia pode favorecer o tratamento da Distimia. Em casos como estes, mesmo sendo obtida a remissão da condição dita primária, deve ser mantida as terapêuticas da Distimia para se evitar o recrudescimento do Pânico ou do Distúrbio do Apetite.

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