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O Caso Dora e a identificação histérica

Pretendemos, com a publicação desse artigo, todo ele embasado na Teoria Freudiana da Histeria, mostrar a atualidade dessas considerações. Sabe-se que hoje já não mais assistimos aqueles "ataques histéricos", em termos das movimentações tônico-clônicas a eles relacionados. Contudo, o que pretendemos é demonstrar que, muito embora a forma de apresentação fenomenológica tenha se transformado com o tempo, a estrutura histérica permanece a mesma, sobretudo no que tange à problemática das identificações.

Sabemos que o "Caso  Dora" é absolutamente emblemático nos estudos de Freud sobre a patologia histérica. Não nos ocuparemos do histórico do caso apresentado nas Obras Completas de Sigmund Freud, bem como de todas as suas considerações. O que temos em mente aqui, é podermos realizar um recorte, no tocante às identificações histéricas, as quais se constituem num verdadeiro capítulo à parte na problemática da histeria.

A bem da verdade, partimos da identificação histérica, para podermos retroativamente, atingirmos a estrutura histérica como tal.

Retomamos, apenas a título de contextualização, alguns dados do histórico de Dora. Freud nos conta que, o que precipitou a primeira consulta foi após uma briga com o pai, bem como o quadro depressivo que havia culminado com uma tentativa de suicídio de Dora.

Dora acusa seu pai de mentiroso, uma vez que acreditava que este produzia sintomas para poder encontrar-se coma Sra. K., além de acusá-lo de querer entregá-la ao Sr. K., em troca da cumplicidade deste. Na interpretação de Freud, ter-se-ia tratado de uma projeção, mas podemos pensar também em uma identificação de Dora com o pai, pois se observarmos, acaba se comportando de maneira semelhante a este.

Não teria ela própria se oferecido como uma espécie de cúmplice ingênua, dessa relação proibida, quando cuida dos filhos do casal?

Imaginemos os desdobramentos dessa situação: cumpriria seus desejos inconscientes que incluiriam desde a restituição imaginária da minguada potência do pai até ser, via identificação, o amante da Sra. K., através do pai, e a amante do pai, através da Sra. K.

Freud nos fala de uma governanta, a qual havia proporcionado a Dora, algumas noções a cerca da sexualidade humana. Contudo, Dora faz com que ela seja despedida, uma vez que julga que esta lhe trata bem, apenas na presença de seu pai, a quem na verdade quer seduzir. Dora sentia-se como um objeto intermediário, para que a governanta alcançasse seus objetivos (o pai de Dora).

Poderíamos refletir que se a governanta estava para Dora, da mesma forma Dora estava para o casal K., ao cuidar dos filhos dele.

Assim, Dora objetivava alcançar a pessoa amada, mas quem seria essa pessoa amada por Dora? O pai, o Sr. K., a Sra. K., ou mesmo todos eles, através da estrutura triangular do fantasma que consideremos?

Ressaltamos que o fantasma, enquanto fruto da encenação do desejo, não tem que ser obrigatoriamente único e, sobretudo em se tratando de histeria.

Sabemos que anos depois de finalizado o tratamento de Dora, Freud redigiu algumas considerações sobre o caso: "Fragmentos da análise de um Caso de Histeria", de 1905. Ali ele reconheceu que lhe teria passado desapercebido, a importância do vínculo homossexual de Dora em relação à Sra. K.

Segundo Hugo Mayer, em seu trabalho "Histeria", o autor nos diz: "prefiro pensar que a má resolução do Complexo de Édipo completo, no qual a histérica fica fixada, ativa as aspirações hétero e homossexuais de seus fantasmas inconscientes. Assim, produzir-se-iam tanto uma identificação com o homem, pela qual alcança a mulher proibida, quanto uma identificação com esta, através das quais pode alcançar o homem proibido".

Em 1908, Freud já afirmava que "um sintoma histérico é a expressão de uma fantasia sexual inconsciente em parte masculina e em parte feminina".

Repetição de Triângulos:

Triângulos que Dora recria ocupando algumas vezes o lugar mais denegrido, e outras, o mais valorizado. Sabemos que o casamento de seus pais não foi o que se poderia chamar de bem ajustado. Um triângulo é formado pela mãe e seus dois filhos, com Dora como a excluída. Outro triângulo é formado pela mãe, pai e Dora, onde a excluída é a mãe. Existiram outros, os quais ocorreram de forma especular, a saber: o pai, Dora e a Sra. K.; Dora, a Sra. K. e o Sr. K. ; Freud, Dora e a Sra. K., etc.

Todas as identificações que podemos constatar no caso Dora, notamos que  nelas, verificamos a concomitância de uma identificação feminina, correspondente ao Complexo de Édipo positivo, e uma identificação masculina, correspondente ao Complexo de Édipo negativo(ou invertido).

Dora permanece o tempo todo atraída pela força de seus fantasmas bissexuais, não conseguindo renunciar a nenhum dos dois sexos e também, não conseguindo consolidar uma identificação secundária – simbólica – com o lugar da mãe como mulher.

Desta forma Dora e as mulheres histéricas, em geral, possuem uma identidade sexual cindida: mostram-se muito feminina, porém, têm ao nível genital, uma severa inibição, ou não a têm, mas à custa de vestir-se e comportar-se como um varão, ou a têm como o seu esposo e não como o seu amante, seja ao nível do real ou mesmo da fantasia.

O objeto de desejo da histérica é uma figura fantasmática constituída pela conjunção de duas triangulações. Na primeira delas, pretende fundir-se com a mãe idealizada da infância, concebida como uma mulher perfeita, amada por todos e "virgem" como a "Madona"; o homem aqui é apenas um intruso ou mesmo, um incômodo rival. Na segunda, a figura amada é o pai, tal como o imaginava em sua infância e a mãe, é a pessoa que deseja eliminar e por quem sente uma intensa hostilidade.

Perguntamo-nos: "qual objeto da realidade poderá satisfazer este desejo?". Trata-se, na verdade, de entendermos que o desejo histérico, que anseia pela união, num vínculo de amor incestuoso, e dirigido a um objeto que é metade homem e metade mulher. Notemos que é um desejo da ordem do irrealizável, em função de seu caráter bissexual, além do caráter incestuoso e pela idealização inevitável, a qual seria uma característica de um amor infantil.

Colocam-se as questões: a histérica busca um desejo insatisfeito?

Não ocorrerá que a histérica sofre de uma permanente insatisfação de seu desejo porque, ao não poder superar adequadamente o seu Complexo de Édipo, também não pode renunciar à ilusão de realizar os desejos sexuais da infância?

Concluindo:

A filha poderá rivalizar com a mãe até conseguir identificar-se com esse lugar simbólico da mesma, somente quando esta valorize sua condição de mulher e seja capaz de amar terna e sexualmente o homem com quem constitua um casal. Isso estará significando que ela tomará o modelo da mãe, da mãe- mulher, mas já não mais para alcançar o amor paterno, mas sim para poder desfrutar, como ela, de um homem.

Lembremos que no caso Dora, nem a mãe de Dora, nem a governanta, nem a Virgem, e nem ainda a Sra. K., poderiam constituir-se nesse modelo.

O pai e, por extensão todo o homem que constitua uma união duradoura com uma mulher, assim também não poderá ser valorizado como homem, além de não poder executar a proibição do incesto.

Entendemos que um pai assim, não poderá "desiludir" sua filha além de estimular a sua sexualidade no sentido da exogamia, uma vez que ele próprio não foi desiludido. Esse pai não teria elaborado completamente o seu Complexo de Castração, tendo ficado, portanto, fixado a uma mulher proibida.

Apenas a título de esclarecimento, assim como a problemática histérica não se reduz às mulheres, o fenômeno da identificação histérica, tampouco.

Bibliografia

Sauri, J & cols. As Histerias. Buenos Aires: Ed. Nueva Vision.

Mayer, H Histeria. Porto Alegre: Ed. Artes Médicas

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