Nova orientação ao problema da Cisão do Ego
Considerações gerais
O fenômeno a que, em 1911, Eugen Bleuler deu o nome heurístico de cisão do ego, já figurava na literatura com denominações diferentes, tais como "dissociação", ''desintegração da consciência" (Gross), "disjunção" (Wernicke). Esses termos hoje desapareceram. Também com a expressão homônima "cisão da auto-consciência" (Foersterling), que significava um aumento da perturbação psicomotora, não se podia iniciar muita coisa. Por uma determinação conceitual mais clara devemos agradecer em primeiro lugar a Bleuler que, rebatizando a "dementia praecox" (Kraepelin) de esquizofrenia, como psicose de cisão, obteve fundamento sólido para a idéia de cisão ego.
Bleuler discriminou duas classes de cisão: uma primária, na qual associações de pensamentos concretos, firmemente ligados, separam-se; .outra secundária na qual um complexo de idéias, acentuadamente afetado, se define cada vez mais e, com firmeza, alcança na vida psíquica uma autonomia sempre crescente.
Com a denominação de esquizofrenia queria Bleuler atingir as duas classes de cisão porque freqüentemente se fundem numa só. As características da esquizofrenia são especialmente, na opinião de Bleuler:
(1) a falta de inibição;
(2) o autismo, em conseqüência da falha da inibição, idéias incompatíveis podem coexistir. Por exemplo, o esquizofrênico pode ver simultaneamente numa mesma pessoa seu inimigo Y e o médico X; como conseqüência do autismo, o paciente substitui a realidade, desagradável para ele, por um mundo irreal do desejo.
Duas outras importantes afirmações de Bleuler ficaram quase esquecidas. Afirmou em primeiro lugar que os fenômenos de cisão não são próprios somente da esquizofrenia; também a psique sadia, tanto na vigília, quanto no sonho pode cindir seu ego. Na opinião de Bleuler, a cisão esquizofrênica deveria ser definida simplesmente como exagero de um fenômeno fisiológico que separa (cindente). Disse ainda Bleuler que, em certas circunstâncias, a cisão fisiológica dos complexos pode acarretar indistintamente cisões histéricas, epiléticas, autísticas e paranóides. Fenômenos de cisão podem, conseqüentemente, surgir também em outras afecções. Segundo Bleuler, é de supor que o esquizóide venha a cindir-se demais; o sintônico, na medida exata; o epilético, pelo contrário, insuficientemente.
Com base nessas duas notáveis afirmações de Bleuler (que, na opinião de Szondi, ainda não teriam sido bem analisadas), de 1937 a 1963 Szondi estudou a cisão do ego em indivíduos sadios e em doentes mentais, em primitivos e civilizados. E isso por meio da Análise Experimental do Ego, da observação clínica e, em parte, também pela psicoterapia analítica e análises oníricas.
O exame dos casos clínicos, em 1956, deu-nos a oportunidade de verificar para que grau anterior de cisão costuma regredir muito freqüentemente o ego dos pacientes dos diferentes grupos. Essas análises experimentais do ego, realizadas em 3341 casos, nos estimularam a idealizar uma Teoria Funcional do Ego e a tornar exeqüível, com auxilio dessa teoria, uma nova orientação para o problema das cisões do ego.
Cisões do Ego à luz da Teoria Funcional do Ego
De conformidade com essa teoria, o ego não é um órgão anatomicamente localizável, nem um aparelho psíquico (Freud), mas um conjunto de quatro funções elementares que denominamos "radicais do ego". Esses quatro radicais congênitos do conjunto ego-funcional são:
(1) a participação, isto é, a tendência a formar com o outro o ser-uno, o ser-igual. Conduz, por projeção do poder próprio do ego, à formação de unidades duplas. Isto é, à vida do ego no outro (unidade mãe-criança, clã-solidariedade). Após a desintegração dessa dupla unidade participante, a mesma tendência funciona como projeção secundária, como extravazamento do poder próprio do ego sobre outras pessoas que, depois, prejudicam ou até perseguem o indivíduo projetante. É também o estado de impotência próprio do ego na paranóia projetiva (mania de perseguição);
(2) a inflação, isto é, a tendência do ego à duplicação de seu poder, portanto, o querer ser ambos-e-tudo, a "ambitendência", na definição de Bleuler. Também se chama inflação à obsessão, por duas tendências opostas, que agem ao mesmo tempo, mas sem se unir, nem excluir-se. Tal estado corresponde à cisão primária (Bleuler). Poderíamos também denominar de "autismo no ser" a conseqüência da inflação; cujo conteúdo pode variar de objeto e de intensidade. Por exemplo, desejar ser simultaneamente homem e mulher, diabo e anjo, senhor e servo, criança e líder, homem e animal. A isso denominamos inflação, segundo Jung. Domina na paranóia inflativa (megalomania);
(3) a introjeção, isto é a primitiva tendência do ego à tomada de posse, à incorporação e à capitalização dos objetos de valor, das idéias de valor e de todos os conteúdos de valor e de poder do mundo exterior e interior. Em resumo: a urgência de tudo possuir e de tudo saber. A função fisiológica da introjeção é de servir de ponte para a percepção externa e interna. A forma doentia e o autismo, em relação à posse, isto é, a alucinação, o "pensamento mágico", na qualificação de Bleuler para a esquizofrenia;
(4) a negação, ou tendência elementar do ego para esquivar-se, para a negação, a inibição, o recalcamento. A forma doentia se chama negativismo, desvalorização total, desespero, encarceramento do ego, a autodestruição na catatonia e o suicídio.
As quatro funções radicais da psicopatologia não se restringem a um conjunto de funções cognominado "o ego", mas foram sempre consideradas isoladamente, de modo independente. A Análise Experimental do Ego provou, porém, que essas quatro funções elementares se interligam em sucessão regulada num movimento circulatório. Representam quase que "estações", tanto no desenvolvimento quanto na vida posterior do ego. Estações que têm de ser percorridas por todas as manifestações instintivas, percepções internas ou externas e representações que afloram ao psiquismo. Já em 1947, podíamos comprovar que também a evolução fisiológica do ego segue caminho idêntico ao da circulação: (1) participação-projeção; (2) inflação; (3) introjeção; (4) negação ou adaptação.
O citado movimento circulatório tem, na patologia do ego, uma importância especial. Poderíamos demonstrar que cada cisão do ego se produz devido à parada do movimento circulatório numa "estação", ou seja, numa função elementar do ego.
Melhor dizendo: cisões do ego não se originam da divisão de "conteúdos", mas da falha, da paralização de determinadas funções elementares. A natureza especial das funções do ego restantes, após o desligamento e uso exagerado, determina sempre, também, a natureza específica dos sintomas psicopatológicos. Se queremos definir melhor a expressão "cisão", devemos falar de "cisão das funções elementares ou das tendências elementares do ego". As funções cindidas, porém, desaparecem exclusivamente do primeiro plano. Em verdade permanecem ilesas no plano de fundo e podem, ocasionalmente, reintegrar-se ao movimento circulatório ou, através da inversão da rotação das peças cindidas, ocupar solitárias o cenário da vida do ego.
Nessa teoria do movimento circulatório das quatro funções elementares do ego, têm lugar muito importante a integração e desintegração.
lntegração é um estado em que as funções elementares perfazem seu circuito conforme a regra, sem parada demasiado longa, ou seja, sem falha; melhor explicando: independentemente da qualidade do conteúdo psíquico existente. Isto significa que a vida do ego é integrada se todos os seus conteúdos (sejam manifestações instintivas ou representações e idéias) percorrem seu circuito, da projeção e da introjeção à negação. Na integração, nenhuma das quatro funções elementares falta. Todas são capazes de ação.
Desintegração, pelo contrário, indica um estado no qual as quatro funções elementares estacionaram e, conseqüentemente, os conteúdos do psíquico percorrem o circuito compulsivamente, "sem ego", ou seja, no estado crepuscular (por exemplo, ataques crepusculares e epiléticos).
Com essa teoria puramente funcional, que examina em primeiro lugar as cisões das funções do ego, e não os conteúdos deste (ao contrário de Freud) tenta-se responder às perguntas que a seguir formulamos: como se dá a cisão das quatro funções elementares do ego nos indivíduos primitivos (negros selvagens), nos civilizados e nos doentes mentais?
Cisões do Ego nos Primitivos
O arquivo da lnternationale Forschungsgemeinschaft für Schicksalspsychologie (Sociedade Internacional de Pesquisa da Psicologia do Destino) de Zurique, dispõe de mais de 100 análises experimentais do ego com o teste Szondi, referentes a negros selvagens da África Equatorial. Foram realizadas por Percy, então médico-chefe da Instituição Albert Schweitzer, mediante exames feitos nos acompanhantes sadios dos doentes tratados no hospital da floresta virgem, em Lambarène. Os examinandos vinham da selva e eram selvagens. Estavam entre eles membros das tribos primitivas de Fang, Galoa, Akele, Massango, N'komi e Esfiha. De 100 negros, 42 eram portadores de uma cisão projetiva de participação, total; 72% deles apresentavam uma combinação de cisões, predominando a projeção. A cisão do ego desses primitivos era idêntica àquela encontrada (entre os civilizados) nos paranóicos com mania de perseguição, delírio egocêntrico, delírio de interpretação e delírio de reivindicação.
Entretanto, os 100 negros examinados (também na condição de membros da primitiva sociedade aldeã) eram indivíduos totalmente sadios, não esquizofrênicos, apresentando cisões psicológicas (do ego) justamente porque viviam com exagero a função sob forma de uma extrema solidariedade com o clã. E, sobretudo em unificação total (do ego) com seus animais totêmicos, suas plantas totêmicas, como era próprio de sua religião. A anulação das três outras funções do ego, a saber inflação, introjeção e negação – tão importantes para o homem civilizado – não fazia adoecer sua psique primária.
Esses resultados provam duplamente:
(1) que Bleuler tinha razão quando admitia serem fisiológicas as cisões, mesmo nos homens primitivos;
(2) que nos primitivos uma projeção total pode levar a uma sadia solidariedade com o clã e à religião totêmica, enquanto em povos cultos, a mesma cisão do ego conduz a delírios fantasmagóricos e alucinações. O julgamento das conseqüências de uma projeção está, portanto, ligado a determinada época da civilização.
Cisões do Ego em Civilizados
Por carência de espaço; temos de desistir da explanação sobre o processo de evolução das cisões do ego nas diversas fases cronológicas da vida humana. Neste momento, tratamos somente dos tipos de cisão do ego de dois grupos de adultos: o do homem comum e o dos homens mentalmente sublimados:
(1) Qualquer indivíduo adulto pode cindir o feixe das quatro funções do seu ego, de tal modo que, em vigília, atue apenas a parte cindida constante de projeção e negação. Essa parte cindida caracteriza-se como "adaptação social". Na consistência psíquica do ego, essa adaptação significa um estado de renúncia (negação) às extrapoladas (projetadas) pretensões do desejo.
A outra parte cindida, posta fora de ação, compreende o ser-tudo (inflação) e o ter-tudo (introjeção).
Para ser um homem socialmente adaptado é indispensável renunciar ao ter-muito e ao ser-muito. Freqüentemente tal adaptação tem início no 9º ao 10º ano de vida. Na média da população, porém, só paulatinamente atinge sua freqüência máxima (54,2%). À freqüência da adaptação apresentam curva sempre ascendente: entre 13 e 20 anos de idade, 22%; 21-30 anos, 28,3%; 31-40 anos, 29,1%; 41-60 anos, 40,3%; 61-70 anos, 43%; 71-80 anos, 54,2%.
Na evolução do homem primitivo a civilizado, o passo decisivo consiste, portanto, em por em ação a função de negação, a renúncia às projeções do desejo.
O homem selvagem, supostamente sem pretender renunciar a essas projeções, as satisfaz completamente, em vigília, pela participação e unificação com seu totem e seu clã. O civilizado, ao contrário, só no sonho as satisfaz.
(2) O homem sublimado põe em ação, num movimento circulatório contínuo, todas as funções elementares do ego; todos os conteúdos da psique as percorrem; os conteúdos do ego, porém, só passageiramente, durante uma breve pausa, permanecem numa das quatro estações. Esses grupos humanos sem cisões do ego são raros. Com maior freqüência, encontramos o denominado "trabalhador intelectual compulsivo" que cinde somente a função de projeção e, pela sujeição ao trabalho, dá um cheque-mate em sua obsessão (inflação) ou a contenta parcialmente.
Cisões do Ego em doentes mentais
Nossas pesquisas confirmaram experimentalmente a tese de Bleuler relativa à existência de uma cisão fisiológica do ego em homens tanto primitivos, quanto civilizados sadios. Mas, confirmaram igualmente sua opinião de que os fenômenos de cisão podem ocorrer não apenas no grupo das esquizofrenias, mas também em afecções psíquicas de outro tipo. Pelo exame clínico-psicopatológico, relativamente numeroso, de 1087 casos de diversos países, pudemos separar oito tipos diferentes de cisões do ego e verificar a relação especial dessas cisões com determinados quadros mórbidos.
Na enumeração dessas oito formas de cisão, procedemos de modo a indicar sempre, em relação às duas partes cindidas do ego, tanto as funções clinicamente atuantes quanto as cindidas, com suas respectivas manifestações clínicas e fisiológicas.
Formas de Cisão no Grupo das Esquizofrenias
Neste grupo foram encontradas quatro formas diferentes de cisão do ego:
1ª forma: cisão projetiva-varanóide:
(a) a parte cindida, clinicamente atuante, põe em ação somente a projeção total; o quadro clínico indica uma paranóia projetiva, isto é, mania de perseguição, delírio de observação, delírio de reivindicação; paranóia de base epilética, segundo Buchholz (1895) e Seidel.
(b) a parte cindida, situada no plano de fundo, põe fora de ação a inflação, a introjeção e a negação; essa parte condiciona o chamado "ego do trabalhador compulsivo", que pode aparecer após um acesso projetivo-paranóide; com certa freqüência, pode acontecer uma rápida permuta das duas partes cindidas, de modo que mal pode ser notada a fase paranóide; a cisão projetivo-paranóide apresenta-se em seu desenvolvimento como ego precoce "participativo", em forma de unidade mãe/criança; outrora, quando ainda existia o "homem selvagem", encontrávamos em 42% dos primitivos, como dissemos atrás, a cisão projetivo-paranóide do ego.
2ª forma: cisão do ego inflativo-paranóide, inflativo-epileptiforme, histérico-inflativa e hebefrênica:
(a) a parte cindida clinicamente atuante põe em ação somente a obsessão, a inflatividade; os sintomas clínicos são:
(1) megalomania, delírio religioso, erotomania, delírio de reivindicação;
(2) obsessão epileptiforme do tipo de ataques com idéias delirantes sobre a morte ou a religião;
(3) obsessão saltitante, incoerente, histeriforme, teatral-patética, freqüentemente retalhativo-hebefrência com idéias megalomaníacas;
(4) escroqueria hebefrência, falsificação;
(5) mania inflativa.
(b) a parte cindida põe fora de ação a projeção, a introjeção e a negação; essa parte cindida costuma freqüentemente fazer as vezes da obsessão, apresentando os sintomas clínicos da evasão epileptiforme (fuga), da dromomania (ou, poriomania), da epilepsia retroflexiva, ou também de genuínos ataques epiléticos. A forma inflativa de cisão pode aparecer fisiologicamente, enquanto evasão, em crianças de 5 a 6 anos de idade; mais tarde, na adolescência (17 a 18 anos de idade).
3ª forma: cisão do ego autística, introprojetiva e introjetiva:
(a) a parte cindida, clinicamente atuante, é o ego introprojetivo que põe em ação a projeção e a introjeção; na psicopatologia, isto se chama autismo; psicologicamente acontece o seguinte: os desejos inconscientes não são transferidos a pessoas do meio-ambiente – como na paranóia projetiva – mas, ao próprio ego; todas as pretensões do desejo são incorporadas, introjetadas, ou seja, afirmadas; em conseqüência, o doente ultrapassa os limites da realidade, tem alucinações, age de maneira autista, indisciplinada (Bleuler); no início da melancolia, o ego também sofre uma cisão autista, porém, enquanto o esquizofrênico autista é onipotente em relação a "ter", o melancólico torna-se impotente por uma autodesvalorização, auto-inculpação e delírios de auto-acusação e de indigência; contudo, é tão autista quanto o esquizofrênico, só que forma idéias delirantes negativas com as quais se coloca igualmente acima dos limites da realidade.
(b) a parte cindida põe fora de ação a inflação e a negação; essas duas funções do ego condicionam a "inibição". Autismo e inibição são sintomas clínicos de partes cindidas opostas. A Análise Experimental do Ego pôde também aí confirmar as afirmações de Bleuler. A forma autista aparece fisiologicamente no período infantil de obstinação, e porque freqüentemente a cisão introjetiva pura, sem projeção, pode levar ao autismo, é também chamada de tipo introjetivo de cisão – o oposto dela é a despersonalização.
4ª forma: cisão do ego negativo-catatônica:
(a) a parte cindida clinicamente atuante põe em ação, nas psicoses, somente a exagerada negação e a destruição; nas neuroses, ao contrário, o recalcamento e a evitação neurótica; o grave negativismo aparece clinicamente na esquizofrenia catatônica, na mania e no suicídio;
(b) a parte cindida põe fora de ação a introjeção, isto é, as idéias delirantes projetivas, inflativas e introjetivas; supostamente, a negação catatônica dos psicóticos é uma espécie de tentativa de cura espontânea da paranóia e do autismo; nos neuróticos, o recalcamento assegura certa proteção contra a aceitação da homossexualidade egodistônica e a solidão. Fisiologicamente, a cisão de negação aparece, sobretudo como recalcamento da primeira infância (3 a 6 anos de idade), depois, na pré-puberdade (9 a 12 anos).
As quatro formas de cisão mencionadas permitem distinguir, no grupo das esquizofrenias, quatro formas nosológicas:
(1) a paranóia projetiva;
(2) a paranóia inflativa;
(3) a esquizofrenia introjetivo-autista;
(4) a esquizofrenia negativo-catatônica.
Formas de Cisão no Grupo das Epilepsias
Como nota preliminar, frisamos que as perturbações epileptiformes do ego podem também aparecer nos tipos de cisão esquizofrênica, pela inversão do movimento de rotação das partes cindidas. Os dois tipos de cisão paroxística seguintes possuem uma conotação especial, pois primária é a perturbação epileptiforme do afeto e não a perturbação do ego. A mentalidade assassina de Caim e o conteúdo dessas perturbações do afeto causa, secundariamente, as cisões do ego.
5ª forma: despersonalização paroxística, condicionada pelo afeto:
(a) a parte cindida clinicamente atuante põe em ação, sincronicamente, três funções do ego: a negação, a inflação (com inibição) e a projeção; o fenômeno que resulta desse fato é a despersonalização epileptiforme e hístero-epileptiforme; caso a negação se transforme em autodestruição, forma-se o quadro clínico da despersonalização caracterizado por crises de dipsomania episódica, pelo suicídio e freqüentemente também pela histeria e depressões crônicas;
(b) a parte cindida põe fora de ação a importante função do ego que escapa ao mundo da percepção: a introjeção; na psicologia do ego, a despersonalização é definida como conseqüência de um desligamento da introjeção condicionado pelo afeto; portanto, como conseqüência do desligamento da ponte da percepção ligando o exterior ao interior; com o desligamento da introjeção, falham também todos os conteúdos incorporados: conhecimento, memória, imagens mnésicas motoras e senso-motoras; já em 1911 se referia Bleuler à cisão dos afetos como proteção na esquizofrenia; é efetivamente uma proteção, pois, caso a introjeção domine sozinha o quadro clínico, surge certamente o autismo; fisiologicamente, aparece a despersonalização exatamente nas fases de transição: jardim de infância – idade escolar (5 a 7 anos) – idade juvenil – adulto.
6ª forma: cisão desintegrada, epileptiforme, com estados crepusculares:
(a) a parte cindida clinicamente atuante é totalmente separada do ego; todas as quatro funções elementares são provisoriamente desligadas; clinicamente surge um estado crepuscular, pequeno mal oral, freqüentemente a pura desorientação ou mutação do ego;
(b) a parte cindida situada no plano de fundo mantém em seu íntimo as quatro funções do ego desligadas no primeiro plano. Esse ego aparece, freqüentemente, antes e depois do ataque crepuscular como um pressentimento de catástrofe (fobia). Fisiologicamente, pode essa desintegração surgir de modo passageiro, como mutação do ego, dos 17 aos 20 e dos 60 aos 70 anos de idade.
7ª forma: cisão do ego de forma compulsiva, anancástica:
(a) a parte cindida clinicamente atuante põe em ação simultânea, com igual intensidade, a introjeção e a negação; cada ato de afirmação (dizer sim, introjeção) é imediatamente bloqueado por um ato de negação (dizer não); assim tem origem o quadro clínico da ambivalência, do desespero, da incapacidade de ação na neurose e na psicose compulsivas;
(b) a parte cindida põe fora de ação a inflação extremamente perigosa e a projeção; melhor dizendo, põe fora de ação a paranóia; conseqüentemente, a cisão compulsiva serve de proteção contra a paranóia de fundo, porém, a compulsão pode também assegurar proteção contra a homossexualidade egodistônica latente; fisiologicamente, a cisão compulsiva atinge sua freqüência máxima dos 9 aos 13 anos, isto é, na puberdade (ou, pré-adolescência).
8ª forma: cisão de adaptação do ego: já dissemos que, em adultos civilizados sadios, domina a forma de cisão do ego denominada "de adaptação"; com a finalidade de exaurir o assunto, mencionamos aqui, ainda uma vez, essa forma de cisão para expor em sua totalidade o sistema dos oito tipos de cisão:
(a) a parte cindida atuante põe em ação as funções de projeção e negação; desse modo tem origem a adaptação;
(b) a parte cindida põe fora de ação as tendências para tudo-ser (inflação) e tudo ter (introjeção); essa parte cindida se denomina também "narcisismo total"; em indivíduos sadios de formação acadêmica, ocupantes de altas posições, essa parte cindida atua no primeiro plano com características de narcisismo; enquanto a adaptação fisiológica cresce constantemente até a idade senil, a cisão de narcisismo total é muito freqüente entre 20 e 30 anos, e mais rara na puberdade. Na pré-puberdade e na idade avançada, esse tipo de cisão quase nunca ocorre.
Aplicação da Teoria da Cisão do Ego
Interpretação da Mutação de Quadros Mórbidos Antagônicos
A sistemática relativa à teoria funcional da cisão pode prestar ao psicopatologista boa assistência para a compreensão, tanto de aparentes antagonismos que surgem no decurso da moléstia, quanto de casos mistos.
Como primeiro exemplo, mencionamos a discutida conexão entre a esquizofrenia e epilepsia.
Alguns psicopatologistas defendem a tese da existência de um antagonismo biológico entre as duas moléstias. Outros falam de combinação, ou seja, de casos mistos. Já em 1895, Buchholz aventou a hipótese da paranóia de base epilética. Dörries e Selbach também são de opinião que as esquizofrenias paranóides, catatônicas e hebefrênicas podem ter base epilética. Alajouanine & cols., afirmam que a ação da epilepsia desencadeia os surtos psicóticos.
Das formas de cisão esquizofrênica e epilética identificadas empiricamente pela experiência, e não por especulação teórica, resulta visivelmente que a esquizofrenia e a epilepsia podem ser duas diferentes manifestações de duas partes cindidas do mesmo ego. Mas, tendo ambas suas próprias predisposições hereditárias, raramente surge essa combinação. Urna das partes cindidas provoca a perturbação do ego na epilepsia. Explicando melhor: se a parte esquizofrênico-paranóide atua no primeiro plano, a parte cindida epileptiforme se coloca no plano de fundo. As duas partes cindidas podem, porém, trocar de lugar pela inversão de sua rotação, corno num palco giratório. A observação clínica das duas partes cindidas nas formas de cisão 3ª e 5ª evidencia a possibilidade de um aparecimento sucessivo das duas formas por meio da inversão do movimento rotatório das partes cindidas.
O segundo exemplo relativo às formas de cisão 1ª e 7ª destaca a relação entre obsessão e esquizofrenia. Essas duas formas são partes cindidas do mesmo ego. A obsessão protege freqüentemente da esquizofrenia paranóide. Este segundo exemplo nos conduz à terapia.
Aplicação da Teoria da Cisão à Terapêutica
Se a parte cindida for condicionante da perturbação paranóide esquizofrênica do ego, é sempre contra-indicado anular a compulsão por meio de qualquer psicoterapia. Em certas circunstâncias, ao contrário, pode-se deslocar a paranóia com ações coercitivas, pela inversão artificial do movimento de rotação das partes cindidas. Mas, só através de uma análise experimental do ego podemos verificar se é possível fazê-Io. Na Terapia Analítica do Destino expusemos uma série de métodos denominados artificiais para a inversão do movimento das partes cindidas, destacando o psico-choque. Porém, antes de inverter artificialmente a rotação das partes cindidas, é preciso saber se a parte cindida que se pretende trazer para o primeiro plano é mais difícil de suportar que a outra, aquela que desejaríamos colocar no plano de fundo. Aí a Análise Experimental do Ego pode novamente ser o guia de nosso roteiro.
A teoria da cisão desempenha um importante papel na escolha da terapêutica ocupacional. É fundamental saber que através de uma ocupação adequada pode-se reintegrar paulatinamente as partes cindidas na movimentação do ego. Um exemplo clássico é a ligação da introjeção através da aprendizagem contínua e da acumulação de conhecimentos (estudo da medicina, de idiomas), nos casos de despersonalização. Também a vida doentia das partes cindidas do primeiro plano pode ocasionalmente socializar-se. Assim, a obsessão pode ser tratada com o manuseio de fichários; a paranóia com a atividade exercida por detetives (contra-espionagem, psicologia). Muitos conseguem através do trabalho de sanitarista (enfermeira, cirurgião, presbítero, analista) socializar a parte cindida (de mentalidade assassina, epileptiforme), ainda que apareça em cena episodicamente, como um encolerizado Caim.
A clínica do Campo Psi é específica das perturbações do ego. Pacientes com perturbações da pulsão e do afeto na maioria das vezes procuram o clínico psi apenas depois que seu ego já está perturbado.
No centro de todas as psicoses e neuroses está o ego. Depois vem a vida pulsional e afetiva.
Disso tudo, resulta que a clínica psi tem tanta necessidade de uma psicologia e análise do ego adaptadas a ela, quanto a oftalmologia precisa da ótica e do oftalmoscópio.