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Considerações sobre o amor de transferência, sob as ópticas dos conceitos de Narcisismo e Pulsão de Morte

Procuramos com este trabalho, enfocar a questão do “amor de transferência”, o qual pode ter a força obstaculizante quanto ao seguimento de um processo psicanalítico.
Esse trabalho foi realizado a título de conclusão do Curso de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. O referido curso teve a duração de 4(quatro) anos, sendo concluído no ano de 1992.

Ao me deparar com a necessidade de realizar um trabalho que fosse alicerçado nesses anos de estudo teórico e reflexões sobre a clínica, muitos temas me ocorreram como uma oportunidade de reflexão, ao mesmo tempo sedutora e temerária, tantas eram as possibilidades que iam se configurando.

Por onde começar?

Quais os articuladores necessários?

Como fazer um recorte sem cair necessariamente num reducionismo? Além de tantas outras considerações.

O sentimento inicial com que me deparei foi de solidão, e para fazer frente a ele tentei me acompanhar de alguns autores, os quais pudessem me auxiliar em tão difícil empreitada. A ilusão durou pouco, uma vez que o sentimento de solidão persistia. Contudo, aos poucos pude ir percebendo que não se tratava de um sentimento novo, uma vez que a prática clínica não pode evitá-lo. Nesse sentido, voltei a pensar por uma via associativa, numa questão que sempre me chamou muito a atenção em seus aspectos teórico-clínicos, a saber: a questão do "amor de transferência" e suas implicações obstaculizantes no processo analítico.

É importante ressaltar que meu interesse por esse tema se tornou aumentado, quando há questão de uns dois anos, tive a oportunidade de passar por uma experiência clínica, na qual me deparei com essa situação e com todas as letras. Procurarei, no decorrer de uma reflexão teórica sobre o tema, fazer algumas colocações a título de ilustração. Gostaria de acrescentar que me sinto à vontade nesse aspecto, uma vez que a paciente em questão, não mais se encontra em análise; a rigor, penso que nunca esteve, o que criaria potencialmente interferências na escuta. Procurei tomar todas as providências, no sentido da manutenção do sigilo ético, o qual visa proteger sempre a identidade da pessoa em questão.

Ressalto que as minhas considerações foram pautadas na teorização freudiana. É notório que foram feitas algumas alusões a esses estados passionais sob a denominação de "transferência erótica", no trabalho sobre "A dinâmica da transferência" (1912). Passados alguns anos, podemos verificar que em "Novos conselhos relativos à técnica da psicanálise", Freud utiliza a expressão "transferência de amor", no início do trabalho, e conclui utilizando a expressão "amor de transferência". O referido artigo é: "Observações sobre o amor de transferência" (1914-15).

Desse modo, o "amor de transferência" ficaria caracterizado para Freud por aquelas exigências mais ou menos grosseiras, ou ainda melhor dito, "grosseiramente sensuais" da paciente; inteiramente sob a orientação da "parte animal de seu ego". Freud nos fala da paciente que "por mais dócil que tivesse sido até então, perde subitamente seu entendimento e seu interesse pelo tratamento, não quer falar nem ouvir falar de nada que não seja de seu amor, pelo qual exige ser retribuída; abandonou os seus sintomas ou os negligencia, chegando ao ponto de se declarar curada". Isso seria equivalente a uma total mudança de cena; como se um jogo fosse substituído por uma realidade a irromper subitamente: um pouco como quando gritos de "fogo" se fazem ouvir durante uma representação teatral.

Encontramos sublinhado na fala de vários autores, além desse caráter súbito, o seu caráter destrutivo, redundando no surgimento de uma modalidade de transferência, muito mais típico de uma modalidade psicótica. Nesse sentido, o "amor de transferência" surge como um obstáculo maciço, isto é, como uma forte resistência à continuação do tratamento. Ressaltamos aqui, que não se trata do paciente querer renunciar às sessões, mas sim que se recusa a dar prosseguimento à sua análise, uma vez que o amor de transferência se oporia ao livre jogo das demais transferências.

Vale lembrar que, o que Freud chamou de transferência, foi ao "efeito do deslocamento do acento psíquico" nas várias cadeias representacionais, processo este constitutivo do inconsciente com uma lógica que lhe é peculiar. Notamos, deste ponto de vista, que o referido deslocamento do acento psíquico pode nos dar a impressão de estar configurado numa imutabilidade eterna.

Neste momento, gostaríamos de abordar a questão sobre:- "Qual poderia ser o objetivo do surgimento de uma resistência apoiada sobre um desejo erótico, sendo que não é possível ser observada nenhuma tendência a negá-la, ou mesmo remetê-la ao inconsciente?" Parece que para esse tipo de paciente, envolvido com esse clima emocional, ou por esse movimento transferencial, demonstra uma incrível necessidade de assegurar-se de que é totalmente irresistível, o que significaria tornar-se senhor de tudo aquilo que na realidade exterior resiste a realização desse desejo.

Aqui, deixo como uma pergunta para nossa reflexão: qual seria o modelo prototípico dessa situação, onde o sujeito necessita ser um objeto da exclusividade da atenção do outro (ou da outra)?

Nas palavras de Conrad Stein, tratar-se-ia de "suprimir o desejo para substituí-lo por uma modificação de mundo exterior; fazer de modo que não haja mais oposição, entre as duas representações do analista (tendo desaparecido aquele que está presente na imaginação, restará apenas uma representação, a do analista real)". O "amor de transferência" parece se constituir no sentido de uma busca de onipotência, significando que o analista na sua condição de objeto, bem como todos os seus atos, será regido pelos desejos contidos no inconsciente do paciente. A bem da verdade, quando estamos frente a uma experiência desse tipo, é a de estarmos a uma busca irrefreável de uma "totalização do amor" por parte do paciente, a qual deverá ser entendida no sentido do que o que faz a busca pelo princípio da totalização, não é outra coisa senão a morte; muito embora seja da morte não realizada, de tal forma que assegure ao ego a função de unidade psicológica, de identidade pessoal, a tal ponto que se a palavra amor vem a se abrir em seus componentes contraditórios, é o ego que se vê ameaçado. Em outras palavras, e , frente a esse estado de coisas, poderíamos dizer que: "a pessoa do analista ficaria como que fetichizada em função do Ideal do ego". Entendemos que o que estaria em jogo nessa totalização do amor, seria um medo frente ao esfacelamento do ego. Assim pensamos que enamorar-se não é algo apenas que ocorra no sentido de uma resistência, mas também a da procura de uma situação de dominação, uma vez que o processo analítico teria começado a se ampliar e fazendo com que o paciente, e por que não o analista, se defrontem com angústias de morte, terror de aniquilamento e assim por diante. Assim, observar-se-ia uma tentativa do paciente, no sentido de agarrar-se ao analista, para passar a existir com ele numa unidade indissolúvel. Sabemos que esta "tentativa" seria o protótipo da manifestação de uma angústia psicótica.

Chegamos a um momento crucial do processo analítico, uma vez que o analista de seu lado, poderá vir a tomar atitudes defensivas, deixando o paciente numa situação onde a angústia predomina.

Em outras ocasiões, já deixamos clara a nossa admiração pela obra de Pierre Fédida e, sendo assim, vamos trazer as suas palavras: o analista fica comparado, nestas circunstâncias, ao adulto que "excita" o bebê para lhe dar prazer e que, em seguida o deita e vai embora. É necessário, ao contrário, admitir a situação, torná-la parte integrante do tratamento, para que assim possamos "entender o afeto, para instaurar o afeto na linguagem. Fédida critica com veemência, o artigo de Freud: "Observações sobre o amor de transferência" e o faz de forma bastante irônica: "Pareceria que Freud quer explicar ao analista como deve proceder para não ser pedido em casamento pelo paciente.

Nesse artigo de Freud, mais do que "a negação aparente da morte", as reservas de Fédida se dirigem ao modo como Freud trata ali da relação analista-paciente, como uma simples relação entre um homem e uma mulher, deixando de lado não só a questão da bissexualidade na transferência, mas também o fato de que a transferência "é um investimento imaginário do objeto, ausente da palavra". Dessa forma, estamos diante de um aspecto bastante ressaltado pelos autores da assim chamada, escola francesa de psicanálise: "o destinatário da fala do paciente é sempre um ausente, ficando, portanto, como função do analista, significar essa ausência, e jamais se tomar pelo ausente. Se assim o fizesse, o analista tornar-se-ia o "destinatário único da fala do paciente e este não teria nenhuma possibilidade de fazer a elaboração da ausência". A explicação para esta tomada de posição por parte de analista, ficaria a cargo de suas razões narcísicas, tomando-se como "o objeto de amor ausente que a palavra designa". Encarado sob este prisma, "o amor de transferência" seria o "suporte defensivo" da integridade narcísica. Fédida ressalta também que o analista, sem ignorar que é a ele a quem o paciente se dirige, responde de um outro lugar, mantendo sempre a sua posição de "metáfora", a qual é imprescindível para se garantir a dissimetria da situação analítica.

Entendemos que a psicopatologia, abarca "um sofrimento que porta em si mesmo, a possibilidade de um ensinamento interno". Assim, uma paixão que "não possa ensinar nada, pelo contrário, conduz à morte se não for ouvida por aquele que está fora, por aquele que é ‘estrangeiro', enfim, por aquele que pode cuidar dela" ("O sítio do estrangeiro", P. Fédida).
Penso que aqui as cores ficam mais carregadas no que tange ao aspecto vivencial, pelos aspectos transferenciais e contra-transferenciais envolvidos na situação analítica. Quanto a isso, encontramos na clínica aqueles pacientes que não suportam que o analista se apresente, na sua percepção, como um técnico. Isso se constitui para eles, numa "injúria ao amor". Percebem o analista como rígido e atacam essa rigidez. Encontramos em seu artigo "O amor e a morte na transferência", no sentido de que o analista é tanto mais analista, quanto sua maneira de ser e de agir, encontra uma inventividade, uma criatividade em si mesmo.

Neste momento de minhas reflexões e como já havia anunciado no início do trabalho, passarei a fazer uma ilustração clínica de ordem pessoal. Quero ressaltar que, não me parece à toa, que várias lembranças me ocorreram, logo após ter lido as considerações de Fédida, sobretudo entre aquelas que versaram sobre a criatividade e a inventividade do analista. Assim, quando estava pensando em minha experiência clínica com a referida paciente, não pude me furtar de entrar em contato com sentimentos da ordem da frustração e da inveja, não necessariamente nessa ordem. Assim, a imagem que eu tinha e que persiste até hoje sobre aquela mulher, a qual me parecia absolutamente determinada a me provar que era a mim a quem amava intensamente, é a de um "jogador de futebol-analista", que mantinha o firme propósito de "marcar um gol-interpretação", mas que sempre se via frente a "um goleiro-paciente", o qual possuía as exatas dimensões das traves (ou seriam "entraves"?), às quais defendia. Parecia-me que os espaços simplesmente inexistiam, ou eu não os podia visualizar. Para exemplificar, me recordo que numa dessas tentativas sem sucesso, e foram muitas, o que ouvi como resposta da paciente foi algo assim: " tudo o que você me diz me parece ser muito importante, mas enquanto você falava sobre essas coisas, eu pensava que numa tarde linda como essa, eu preferia estar com você numa banheira de espuma".

Como já disse, tratava-se de uma mulher muito bonita, inteligente e sempre muito bem trajada (parecia "vestida para matar", ou mesmo "morrer"), a quem a priori a realidade, e nela se incluía o analista, ou melhor a representação fantasmática que ela se fazia do analista, não tinha porque negar-lhe a concretização de seus objetivos erótico-afetivos. Seus sintomas iniciais pareciam totalmente relegados ao passado, permanecendo a paciente com a firme crença, de que se encontrava pronta para viver uma "grande paixão". Como um outro agravante dessa situação, se não bastassem os já existentes, a afirmação de que sua "análise anterior", fora interrompida pelo fato dela e do analista terem se apaixonado, e de terem dado início a um relacionamento.

Muito bem, sabemos que em seu artigo sobre "o amor de transferência", de 1915, o mesmo figura como fazendo parte do que se denomina: "Os escritos técnicos" de Freud, contudo parece colocar uma questão para a qual não apresenta resposta, configurando, pelo menos aparentemente, mais uma espécie de recomendação ético-moral. Essa questão parece ser melhor conceituada nos trabalhos de 1920 e seguintes, bem como no trabalho de 1914: "Uma introdução ao narcisismo". Ao longo desses trabalhos, podemos notar que Freud aborda à oposição entre a pulsão e vida e a pulsão de morte, pulsões de auto-conservação e pulsões do eu. Da leitura atenta desses trabalhos, nos fica a impressão de que o ponto central encontra-se na "compulsão à repetição" em ação na transferência, onde em vez de rememorar, o paciente mergulha numa situação de reminiscência, sim a mesma da qual padeciam as histéricas, já citadas em 1895. Seria darmo-nos conta de que a problemática central é a da transferência, da auto-conservação do eu na transferência, da significação da morte na auto-conservação, bem como de tudo aquilo que se refere à problemática da intolerância sobre a efração sexual. Em trabalhos como "Além do princípio do prazer", Freud coloca que "a psicanálise não pode ser mais a interpretação do inconsciente e, que a tarefa terapêutica da análise ainda não começou". Observa-se que Freud vai tomando cada vez mais consciência sobre a insistência da pulsão de morte. Assim, até a data de sua morte, Freud parece cada vez mais pessimista, quanto às possibilidades da psicanálise, enquanto prática curativa.

A compulsão à repetição é sempre enunciada como sendo o motor de toda a pulsão, e nos parece que é contra esse aspecto que se choca o analista. No amor, encontramos configuradas as pulsões parciais, vindo a existir sempre o amor mais a morte, o amor mais o ódio, enfim, o amor mais o negativo. Analisar é estar constantemente em contato com o negativo. Nessas condições, o que se verifica é que até o final do tratamento, o analista é aquele que ocupa a "posição da insistência do negativo", o que possibilitaria a análise da polissemia em relação à palavra amor, ao contrário da sua síntese. Ao continuarmos numa tentativa, muitas vezes árdua, de seguir os passos de Fédida, nos damos conta de que se o paciente nos fala de seu mor, é a inatualidade do infantil que aí é ouvida, contudo não podemos explicar ao paciente o que é o infantil. O que nos resta é significar, por certas palavras empregadas pelo paciente, que o que ele vive, é acolhido como verdadeiro, mas não pode receber uma resposta do atual. A possibilidade do estabelecimento dessa relação é que vai definir "a temporalidade ambígua de todo tratamento psicanalítico."

Gostaríamos de retomar, agora, a função da metáfora, ou seja, a questão da dificuldade da "função metafórica transferencial da palavra". Dela depende que o paciente possa ou não receber reconhecimento e reencontrar seu lugar no interior de uma palavra afetiva, de uma palavra singular, na qual exista a possibilidade de um reconhecimento quanto à sua identidade. Fédida nos diz: "Se, ao me gritar seu sofrimento, eu tomasse o paciente em meus braços, ele teria todo o direito de duvidar que é ele quem tomo em meus braços, pois com o corpo pode-se sempre duvidar que se reconheça a identidade. No amor, o enamorado pede ao outro o amor e, quando o outro parece não responder, ele pergunta: o que eu represento para você?. Na situação amorosa teme-se sempre ser enganado: com quem o outro faz amor, quando fazemos amor com ele? Com o corpo tudo é possível, inclusive a loucura. Mas, na situação do tratamento, penso que é por uma palavra ou mesmo por um gesto que tem a função de metáfora, que o outro pode se reconhecer".

Freud dizia, que o que torna o paciente capaz de entender as palavras que o analista lhe diz é sempre uma situação de amor, que não é "amor de transferência", mas sim, "amor na transferência". O analista, por sua vez, é um enamorado das palavras e sobre o desconhecido inerente ao próprio tratamento, além do desconhecido em nós mesmos. Assim, a resposta ao pedido de amor do paciente viria a impedir a vinda do desconhecido. "Ter uma aventura com o paciente, é a melhor maneira de impedir o surgimento do desconhecido" (Fédida). A identificação do analista como o ausente é própria para organizar o que se pode chamar de "o lugar do delírio no tratamento", se constituindo portanto a transferência, como sendo "a reativação hipnótica do objeto ausente".

Queremos também enfatizar uma vez mais a presença (silenciosa?) da pulsão de morte, no que concerne à questão do "amor de transferência". Sabemos que a hipótese teórica freudiana teria gerado discussões apaixonadas, uns a favor, outros tantos contra, porém, todos discutindo. À rigor, Freud não mais opõe à pulsão de morte às pulsões sexuais, mas sim, as pulsões de vida, às quais chamará de Eros ou pulsões de amor. Essa mudança de sentido leva Freud a não mais falar de pulsão sexual, mas sim de função sexual, como um meio através do qual seria possível o conhecimento de Eros, com o qual não se confunde. Freud também enfatiza o fato de que não possuímos nenhum indício análogo ao que a libido representa para a função sexual, para entrarmos em contato com a pulsão de morte de maneira tão direta. Nesse momento de nosso trabalho, trazemos a importante participação de André Green, o qual afirma que a questão fundamental é sabermos qual seria a função que poderia desempenhar o papel correspondente de representante da pulsão de morte, relembrando que só conhecemos a pulsão, através de seus representantes psíquicos. Em Freud, destacamos que é a auto-destruição, que é a expressão fundamental da pulsão de morte; ficando estendida à hetero-destruição, como sendo uma tentativa de alívio da tensão interna. Seguramente, sabemos que este ponto de vista não passou despercebido das várias teorizações pós-freudianas. Green, por exemplo, assume a posição onde adere à hipótese de que a função auto-destrutiva desempenha para a pulsão de morte, um papel correspondente àquele que desempenha a função sexual para Eros. Contudo, diferentemente de Freud, não crê que se deva defender a idéia de que esta função auto-destrutiva se expressaria primitivamente, de forma espontânea e automática.

Para Green, se tomarmos o problema a partir da experiência clínica, verificaremos que o mesmo permanece teórico! Com o que parece concordar Jean Laplanche. Depois de estabelecer uma análise crítica sobre o conceito de pulsão de morte, próprio à teorização freudiana, Green levanta uma "hipótese pessoal", a qual comporta dois pressupostos básicos:

1) Para falar de pulsão de morte é imprescindível que haja referência ao outro termo do par que ela forma com a pulsão de vida.
2) Se não perdemos de vista que a teoria das pulsões pertence à ordem dos conceitos percebemos que estes tem por finalidade esclarecer a experiência e não poderiam ser dissociados dela. Ressalta que mesmo se formularmos as pulsões como entidades primeiras, fundamentais, originárias, devemos sempre admitir que o objeto é o revelador das pulsões. Ele não as cria, no entanto, é criado por elas de certa forma.

Em função desses pressupostos, torna-se importante termos presente a idéia de Freud, de que os grandes mecanismos descritos por ele, como sendo característicos da pulsão de vida e da pulsão de morte, são a "ligação" e o "desligamento". Para Green, essa idéia é correta, porém insuficiente. Dessa forma, a pulsão de vida pode muito bem admitir nela a coexistência desses dois mecanismos de ligação e desligamento, da mesma forma que pode absorver nela, uma parte da pulsão de morte, que desta maneira se transforma. Mas, no que tange à pulsão de morte, esta parece não comportar apenas o desligamento, tornando-se necessário se precisar de quê? A hipótese fundamental, proposta por Green, é a de que a meta essencial das pulsões de vida é a de garantir uma função "objetalizante", o que não apenas significa que seu papel é o de criar uma relação com o objeto (interno e externo), mas que ela se revela capaz de transformar estruturas em objeto, mesmo quando o objeto não está mais diretamente em questão. Em outras palavras, a função objetalizante não se limita às transformações do objeto, mas pode fazer chegar à categoria de objeto, aquilo que não possui nenhuma das qualidades e atributos do objeto, desde que uma única característica se mantenha no trabalho psíquico realizado: "o investimento significativo". Notemos, que se levarmos essa consideração ao extremo, podemos inferir que é o "próprio investimento" que é objetalizado.

Penso que daqui procede a importância de marcarmos a distinção entre o objeto e a função objetalizante, onde a ligação acoplada ou não ao desligamento, parece entrar em jogo. Já, no que concerne à pulsão de morte, podemos notar que, ao contrário, sua meta é a de realizar ao máximo, o que foi denominado por Green como função desobjetalizante, a qual seria processada através do mecanismo de desligamento. Tal ocorrência parece que nos permite compreender que não é somente a relação com o objeto que é atacada, mas também todos os seus substitutos, como o Eu, por exemplo, assim como o próprio investimento, na medida em que ele sofreu o processo de objetalização. Compreendamos que todas essas reflexões apontam para a hipótese, a título de conclusão, de que a manifestação própria à destrutividade da pulsão de morte é o desinvestimento. Enfim, quando Green nos fala da existência de um narcisismo negativo, podemos observar que o que está em jogo é uma aspiração ao nível zero, expressão de uma função desobjetalizante, a qual não se contentaria em incidir sobre os objetos ou mesmo sobre os seus substitutos, mas que também recairia sobre o próprio processo objetalizante.

Assim, depois de muito caminhar pela estrada destas reflexões, voltei a pensar na paciente de quem falei. Alguns dados da sua história, como, por exemplo, o fato de ser casada, de ter três filhos, de cursar uma faculdade para a qual se mostrara inicialmente bastante motivada, e tantos outros, depois de um certo tempo, eu tinha a sensação de que todas essas coisas só tinham um significado pra mim, ao passo que ela parecia apenas interessada em se manter na posição da sedutora irresistível. Notem que eu não estou com isso querendo dizer que a sedução não deva ter seu lugar, reconhecido como legítimo. Contudo, neste caso, me parecia suscitar uma sensação de algo em demasia, a tal ponto que a minha reação contra-transferencial era, por muitas vezes, da ordem de um extremo desconforto. Faz-se importante ressaltar, que a transferência erótica, como uma modalidade de transferência negativa, se alterna com o seu complemento, ou seja, com a transferência agressiva. Muito embora presente por vezes, esta não se mantinha por muito tempo, retornando à sua posição anterior.

Outros dados de conduta

A paciente começou a passar pelo meu consultório em horários que não correspondiam aos seus, me deixando sempre um cartão, ou uma "lembrança", na portaria do prédio. Declaro que todas as tentativas que fiz no sentido da retomada de um enquadre, foram sentidas pela paciente, como no bem dizer de Fédida: "uma injúria ao amor". Note-se que neste tipo de situação, o analista pareceria estar colocado num lugar de extrema valia pela paciente; mas, por outro lado ocupa para a paciente o lugar de alguém "sem desejo", ou, em outras palavras, ela até pode reconhecer nele um desejo, mas desde que o mesmo esteja endereçado a ela. Seria alguém que ficaria capturado pelo fascínio da sua presença, não se importando com mais nada, e, muito menos com a sua posição de analista.

Quando Fédida nos fala que nessa tentativa totalizante em relação ao outro encontram-se presentes angústias arcaicas de aniquilamento, de esfacelamento do eu, notamos que isso nos leva a pensar no matiz agressivo que sentimos, enquanto no registro do analista, como sendo um ataque maciço à nossa condição de um ser desejante. A impressão que temos é a de estarmos diante de alguém que nos grita seu amor, mas que se prestarmos atenção às suas entonações, poderemos identificar esse grito como sendo o grito que representa uma intensa angústia, como que num pedido desesperado para ser reconhecido, no sentido de que é, através do outro, a sua única possibilidade de se reconhecer como uma alteridade possível. É também a sensação de estarmos diante de alguém que está afundando e nos pede ajuda, porém, ao lhe estendermos as mãos, nos diz que a única forma em que poderá ser ajudada é se pularmos junto com ela, para que aí sim, num segundo momento, sairmos à salvo.

Salta aos nossos sentidos, a rigidez que assume essa tomada de posição, não parecendo passível de nenhuma contra-argumentação, seja ela interna ou mesmo externa. Vemo-nos assim, diante de uma daquelas cenas tão comuns em nossos sonhos de angústia, onde temos a paciente nos pedindo ajuda, nós com os braços estendidos, mas sem que possamos nos tocar de forma alguma. Entendemos que a proposta de estarmos tão perto, ao mesmo tempo, nos coloca tão longe um do outro. Olhamo-nos, articulamos palavras, mas que são ditas e ouvidas, de registros diferentes, de "lugares" diferentes.

O que existe parece-nos uma mímica daquilo que seria um processo de comunicação.

Por último, quero ressaltar que muito embora eu tivesse pensado, por várias vezes, sobre a adequação de darmos seguimento àquele processo, foi a própria paciente quem tomou uma atitude nesse sentido, me dizendo não estar mais suportando aquela situação, e que, portanto "não mais pisaria" em meu consultório (e, talvez, em mim).

Quando ouvimos e pensamos que a pulsão de morte atua de forma silenciosa, começamos a refletir, a partir de uma experiência como esta, que o que nos parece é que estamos diante da situação inversa onde é a pulsão de vida, que só teria uma maneira de existir, que seria de forma silenciosa, contextualizando, servindo de palco para as articulações e performances da pulsão de morte.

De qualquer forma, ao fazer com que de certa forma essa paciente participasse da "elaboração deste trabalho" (trabalho acadêmico e trabalho psíquico), embora pelas marcas predominantes da pulsão de morte e do narcisismo, não pude deixar de perceber que, de alguma forma, continuo com os meus braços estendidos: para a paciente. Por que não? Mas também com relação a mim mesmo, numa tentativa de recuperação narcísica.

Quero ressaltar, finalmente, que a proposta da realização desta monografia de conclusão do curso de especialização em Psicanálise, trazia em seu bojo a utilização dos conceitos analisados em profundidade, ao longo dos 4 anos de duração do curso.

Procuramos fazer o nosso melhor!
Saudades!

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