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Nós humanos somos uma falácia. Ou não.

Apesar das descobertas de Darwin, no século XIX, e das constatações do mapeamento genético das diferenças entre as espécies, empreendido no Projeto Genoma no século XXI, quase todas as escolas de pensamento partem do pressuposto de que nós humanos somos radicalmente diferentes dos outros animais. Argumentamos que essa crença humanista não passa de uma ilusão.

Este artigo é um ataque às crenças impensadas de pes­soas pensantes. O humanismo liberal dos dias de hoje possui o poder disseminado que antes pertencia à religião revelada. Os humanistas gostam de pensar que têm uma visão racional do mundo, mas sua crença essencial no progresso é uma su­perstição, mais afastada da verdade sobre o animal humano do que qualquer outra das religiões existentes.

Fora da ciência, o progresso não passa de um mito. Em alguns de meus leitores essa observação produziu um pânico moral. Será mesmo verdade, perguntam eles, que ninguém pode questionar o principal artigo de fé das sociedades liberais, o progresso? Sem ele, não nos desesperaremos? Como trêmulos vitorianos aterrorizados diante do risco de perder a fé, esses humanistas agarram-se ao brocado roto das esperan­ças progressistas. Os crentes religiosos atuais são mais livres-­pensadores. Levados para as margens de uma cultura na qual a ciência reivindica autoridade sobre todo o conhecimento humano, tiveram que cultivar uma capacidade de duvidar. Já os crentes seculares – firmemente subjugados pela sabedoria convencional do tempo – estão sob a forte influência de dogmas não examinados.

A visão de mundo secular predominante é um pastiche da ortodoxia científica atual e de esperanças piedosas. Darwin mostrou que somos animais; mas – como os humanistas nunca se cansam de pregar – a maneira como vivemos "de­pende de nós". Diferentemente de qualquer outro animal, dizem-nos, somos livres para viver como escolhermos. No entanto a idéia de livre-arbítrio não vem da ciência. Suas ori­gens estão na religião – não numa religião qualquer, mas na fé cristã contra a qual os humanistas se batem tão obsessiva­mente.

No mundo antigo, os epicuristas especulavam sobre a possibilidade de que alguns eventos pudessem ser não-causa­dos; mas a crença de que os humanos se distinguem de todos os outros animais por terem livre-arbítrio é uma herança cristã. A teoria de Darwin não teria causado tanto escândalo se ti­vesse sido formulada na Índia hinduísta, na China taoísta ou na África animista. Da mesma forma, é apenas nas culturas pós-cristãs que os filósofos se esforçam tão piedosamente por reconciliar o determinismo científico com uma crença na ca­pacidade única dos humanos de escolher o modo como vi­vem. A ironia do darwinismo evangélico é que ele usa a ciência para apoiar uma idéia da humanidade que tem sua origem na religião.

Podem pensar que isso tudo seja uma ten­tativa de aplicar o darwinismo à ética e à política, mas em parte alguma, sugerimos que a ortodoxia neodarwiniana dete­nha a última palavra sobre o animal humano. Em vez disso, o darwinismo é estrategicamente exposto, a fim de romper a visão de mundo humanista predominante. Os humanistas buscam em Darwin um apoio para sua abalada fé moderna no progresso; mas não há progresso no mundo revelado por ele. Uma perspectiva verdadeiramente naturalista do mundo não deixa espaço algum para a esperança secular.

Entre filósofos contemporâneos, é uma questão de orgu­lho ser ignorante em teologia. Por conseqüência, as origens cristãs do humanismo secular raramente são compreendidas. No entanto eram perfeitamente claras para os seus fundado­res. No início do século XIX, os positivistas franceses Henri Saint-Simon e Auguste Comte inventaram a Religião da Hu­manidade, uma visão de uma civilização universal baseada na ciência; o positivismo tornou-se o protótipo das religiões polí­ticas do século XX. Através do impacto que tiveram sobre John Stuart Mill, fizeram do liberalismo o credo secular que é hoje. Através da profunda influência que exerceram sobre Karl Marx, ajudaram a moldar o "socialismo científico". Mas iro­nicamente, pois Saint-Simon e Comte eram críticos ferozes do laissez-faire econômico, também inspiraram, no final do século XX, o culto do livre mercado global.

O humanismo não é ciência, mas religião – a crença pós­-cristã de que os humanos podem fazer um mundo melhor do que qualquer outro em que tenham vivido até agora. Na Eu­ropa pré-cristã assumia-se que o futuro seria igual ao passa­do. O conhecimento e a invenção poderiam avançar, mas a ética permaneceria basicamente a mesma. A história era uma série de ciclos, sem nenhum significado geral.

Contra essa idéia pagã, os cristãos entenderam a história como uma narrativa sobre o pecado e a redenção. O huma­nismo é a transformação dessa doutrina cristã da salvação em um projeto de emancipação humana universal. A idéia de progresso é uma versão secular da crença cristã na providên­cia. É por isso que era desconhecida entre os antigos pagãos.

A crença no progresso tem uma outra fonte. Na ciência, o crescimento do conhecimento é cumulativo. Mas a vida hu­mana, como um todo, não é uma atividade cumulativa; o que se ganha numa geração pode ser perdido na próxima. Na ciência, o conhecimento é um bem puro; na ética e na políti­ca, tanto pode ser um bem quanto um mal. A ciência aumen­ta o poder humano – e amplia as imperfeições da natureza humana. Ela nos permite viver mais e ter padrões de vida mais elevados do que no passado. Ao mesmo tempo, permite-nos causar destruição – uns aos outros, e à própria Terra – numa escala jamais vista.

A idéia de progresso baseia-se na crença em que o cresci­mento do conhecimento e o avanço das espécies caminham juntos – se não agora, pelo menos a longo prazo. O mito bí­blico da Queda do Homem contém a verdade proibida. O co­nhecimento não nos torna livres. Ele nos deixa como sempre fomos, vítimas de todo tipo de loucura. A mesma verdade é encontrada no mito grego. A punição de Prometeu, acorrentado a uma rocha por ter roubado o fogo dos deuses, não foi injusta.

Se a esperança em (ordem e) progresso é uma ilusão, como – pode-se perguntar – haveremos de viver? A pergunta parte do prin­cípio de que os humanos podem viver bem apenas se acredi­tarem que têm o poder de refazer o mundo. No entanto a maior parte dos humanos que já existiram não acreditava nis­so – e um grande número teve vidas felizes. A questão pre­sume que o objetivo da vida seja a ação, mas isso é uma heresia moderna. Para Platão, a contemplação era a mais elevada for­ma de atividade humana. Uma idéia semelhante existia na Índia antiga. O objetivo da vida não era mudar o mundo. Era enxergá-Io corretamente.

Atualmente, essa é uma verdade subversiva, pois implica a vacuidade da política. A boa política é medíocre e improvi­sada, mas, no início do século XXI, o mundo está apinhado de grandiosas ruínas de utopias fracassadas. Com a esquerda moribunda, a direita tornou-se o abrigo da imaginação utó­pica. O comunismo global foi seguido pelo capitalismo glo­bal. As duas imagens do futuro têm muito em comum. Ambas são horrendas e, felizmente, quiméricas.

A ação política veio a ser um substituto para a salvação, mas nenhum projeto político pode salvar a humanidade de sua condição natural. Os progra­mas políticos, por mais radicais que sejam, são modestos expedientes concebidos para li­dar com males recorrentes. Hegel escreve em algum lugar que a humanidade só se contentará quando estiver vivendo em um mundo construído por si mesma. Ao contrário, nós argumentamos a favor de uma mudança que se afaste do solipsismo humano. Os humanos não podem salvar o mun­do, mas isso não é razão para desespero. Ele não precisa de salvação. Felizmente, nós humanos nunca viveremos em um mundo construído por nós mesmos.

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