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Educação – Os filhos da classe média – 2ª Parte

“(seus pais) Entendem seus direitos (mas nunca seus deveres) pela lógica da vida privada, como fizeram as elites portuguesas desde a colonização.
Quem disse que os jovens não lhes obedecem? Obedecem direitinho. Param em fila dupla, jogam lixo nas ruas, humilham os empregados – igualzinho a seus pais.
Vez por outra, quando os pais precisam impor alguma interdição, já não se sentem capazes”.

(Maria Rita Kehl – Coluna Folha de São Paulo – 1º de julho de 2007)

Convido a que continuemos nossas reflexões. Trocar idéias na atual conjuntura passa longe de prever eventos ou prescrever fórmulas mágicas para soluções onipotentes de problemas que desembocam no seio das famílias e dela se originam. Teremos necessariamente, que entender essa família como instituição formada, formatada e atravessada pelo meio sócio-econômico e cultural. É de dentro do conceito de “Instituição” que teremos que pensar essa família brasileira classe média, perdida em seus emaranhados, criados a partir da própria fragilidade social onde está inscrita. O isolamento em nossas próprias regras e sintomas, não me parece ter sido até aqui, uma opção muito promissora.

Entendamos que nossos adolescentes vivem as mais diferentes situações emocionais, porque essas dependerão do grau de comprometimento com seu bem-estar que encontraremos em suas famílias, isso não poderá ser negligenciado. Há jovens de todos os tipos e pensamos que a identificação com suas tribos, talvez estudada, pudesse nos trazer várias informações semelhantes, e talvez algumas delas, nos apontasse para dinâmicas familiares parecidas (embora sempre e sempre originais e singulares) que se encontrariam em cada uma das principais “tribos” existentes hoje onde eles se agrupam e montam sua “potência criativa”, muitas vezes destrutiva.

“Que motivos tem a sociedade para não modificar as suas rígidas estruturas, para empenhar-se em mantê-las tal qual, mesmo quando o indivíduo muda? Que conflitos consciente e inconsciente levam os pais a ignorar ou a não compreender a evolução do filho? O problema mostra assim o outro lado, escondido até hoje debaixo do disfarce da adolescência difícil: é o de uma sociedade difícil, incompreensiva, hostil e inexorável, às vezes, frente à onda de crescimento, lúcida e ativa, que lhe impõe a evidência de alguém que quer atuar sobre o mundo e modificá-lo sob a ação de suas próprias transformações”.

Desde a vivência da super carregada (no sentido de carga de investimento) da sexualidade juvenil, até seu desamparo frente ao mundo adulto que,  exige a ele, cada vez mais ações sistematizadas e menos lúdicas, faz frente ao mundo esse adolescente, desengonçado e desencontrado em si mesmo, e muitas vezes, abandonado às próprias ondas de sua instável maneira de estar no mundo, nessa fase de emoções exacerbadas e, muitas vezes, fragmentadas.
Como veio esse adolescente de sua infância? Essa é a pergunta que tentamos nos fazer no artigo anterior, com o mesmo título. É fundamental, que possamos responder a isso, ou não poderemos entender, o que queremos aqui fazer, com o auxílio dos preciosos constructos da psicanálise.
Durante a infância foram construídos conceitos fundamentais na entrada desse ser psíquico no seu mundo afetivo e social. Por identificação com os conceitos de ética e de regras sociais de seus circundantes, se desenvolve essa criança, pai do adulto que nos habitará para todo sempre. Por outro lado, seus pais também estiveram ‘envolvidos’ pela infância de seus filhos, e a tudo que ela constrói em termos de auto-estima para seus pais.
Vejamos Aberastury/Knobel novamente:

“Ao perder para sempre o corpo do seu filho criança, Vê-se enfrentando a aceitação do porvir, do envelhecimento e da morte. Deve abandonar a imagem idealizada de si mesmo, que seu filho criou e na qual ele se acomodou. Agora não poderá funcionar, como líder ou ídolo e deverá, em troca, aceitar uma relação cheia de ambivalência e de críticas”.

Há no crescimento dos filhos um grande luto a ser elaborado, talvez um dos mais sentidos. Perder aquele olharzinho de adoração, as respostas escutadas quase que com devoção, os carinhos trocados com facilidade. Há no crescimento dos filhos um profundo sentimento de perda, por eles e por nós mesmos, e a partir disso cada pai e cada mãe construirá maneiras diferentes de lidar com isso. Mas sempre haverá uma zona de desconforto e estranhamento, não só para os filhos que mudam com suas adolescências, mas também para seus pais, que sentirão isso intensamente, alguns se reencontrando consigo mesmos e com seus aspectos positivos da adolescência, quando podem resgatar algo daí; outros resgatando aspectos sofridos e de solidão quanto à sua juventude. Quanta coisa então estará envolvida nesse crescimento dos filhos, não é mesmo? Minimizar ou tentar enquadrar em regras toda essa diversidade é no mínimo, um assassinato do ser, daquele ser que pulsa em direção à vida, utilizando a melhor maneira seus impulsos de vida e morte, Eros e Thanatos.
Nosso convite permanente com essas reflexões, beira ao piegas, ou talvez se abrace a ele, qual seja ele: pensem com seus corações, ou seja, reflitam a partir de uma escuta verdadeiramente emocionada, na quantidade máxima que cada um, com suas vicissitudes, e que seja capaz de realizar, sem fórmulas ou conceitos fechados. Caso o canal esteja um pouco entupido, avariado ou cheio de ruídos, torna-se á urgente à busca de ajuda, sem com isso sentir-se avaliado, essa ajuda poderá ser muitas vezes, apenas, encontrar-se com velhos amigos.
Escutar e acompanhar passo a passo nossas crianças e adolescentes, tem se constituído em nossa principal tarefa, no intuito de construirmos um mundo melhor, particular e coletivo, então tudo será válido e “qualquer maneira de amor valerá”.

“Entretanto, esta dor é pouco percebida pelos pais, que costumam fechar-se numa atitude de ressentimento e reforço da autoridade, atitude que torna ainda mais difícil este processo” (1)

Nossa tese aqui é a de que impor limites rígidos demais se torna igual à não impô-los de nenhuma maneira, como somos a toda hora acusados  fazê-lo pelos educadores que propagam suas idéias em livros e veículos de comunicação de massa. Viramos a moeda do outro lado, e continuamos “como nossos pais”, surdos aos clamores de alegria e sofrimento que partem de nossos jovens, perdidos e fragmentados pela violência do seu meio e pelo distanciamento do mundo adulto de seus cuidadores, perdido esses, em si mesmos, ensimesmados em suas conturbadas emoções. Penso que precisamos muito falar, trocar idéias e impressões, sem o medo de sermos acusados por nossas limitações advindas dos nossos próprios processos de crescimento. Somos vítimas de anos de silêncio, coerção, censura e aniquilamento que nos ceifaram em meio a nossa infância ou juventude, deixaram com certeza marcas profundas com as quais ainda estamos lidando. Conheço trabalhos de psicanalistas (sócio-analistas) que escreveram sobre a questão da função pai desautorizada e castrada durante o regime militar. O discurso hoje da falta de limites, beira a um convite para que voltemos à dura imposição de um autoritarismo impostor. Por mais batido e senso-comum que isso seja, acreditamos que limite terá sempre que ser originado no mais puro afeto ‘cuidador’ e no olhar para o outro e não para as próprias necessidades e faltas do mundo adulto.
Se pensarmos isso no nosso atual momento, onde nossos jovens gritam em desespero, promovendo os mais duros debates sobre humanidade e ética, devemos então aprofundar o debate sobre posturas. Recusar-se a fazer isso, nesse momento, será como apontar uma arma para o próprio pé.
Sejamos comuns se assim se fizer necessário, sejamos incomuns se assim tiver que ser, mas sejamos algo urgente para nossas crianças e jovens. Como disse, repito, há algo de particular em cada dinâmica, mas há muito de um coletivo que construímos também a partir do particular e individual.

“O adulto se agarra a seu mundo de valores que, com triste freqüência, é o produto de um fracasso interno e de um refúgio em conquistas típicas de nossa sociedade alienada. O adolescente defende os seus valores e despreza os que o adulto quer lhe impor; ainda mais, sente-os como uma armadilha da qual precisa escapar” (1)

Talvez nessa “desorganizada” participação juvenil, encontremos o que buscamos para mudar o mundo, transformar nossas desesperançadas realidades, trazer mais Eros, mais potencia criativa. Talvez em emoções exacerbadas (Emocore) vejamos o resgate dos diferentes matizes do sentimento, tentando abrir caminhos; talvez nas fantasias de animes (Coldplay) encontremos o resgate da possibilidade de sonhar; talvez nos hackers e crackers encontremos o desejo por um mundo livre etc. Tantas são as tribos, tantos são também, aqueles hoje, vagam perdidos e desgarrados, ou ainda aqueles que em grupo sublinharam a potência de destruição voltada contra si mesmos e/ou dirigida ao mundo que os cerca, como forma de mostrar o que sofre, muitas vezes no lugar da privacidade que deveria acolhê-lo; ou apenas mostra que nada-sofre, sem qualquer eco de afeto, seja esse positivo ou negativo.  Ilimitadas são as possibilidades, e, menos que fazer levantamento de suas variações, podemos entender que o jovem “fala” através de suas escolhas e atos. Precisará ele de “ouvidos” atentos, ligados a um motor que gera compreensão, que vem direto de algo que chamamos de afeto.
Tentar lidar com aquilo que não está dito, que se revela e se oculta em seus actings.

O medo é terrível porque traz o silêncio, um silêncio sonoro sem harmonia alguma que pudesse remeter a uma ordem do mundo. Não há aí perfeição alguma, unidade alguma; uma solidão sem som que espera sem defesa uma sorte irremediável, lá onde o real mata o simbólico definitivamente” (3)

“O não-dito está pleno de morte, da própria, é claro, mas, sobretudo da do outro, a começar pela dos pais” (3)

Abandoná-los neste momento a própria sorte, seria como completar nosso serviço de fazê-los desacreditar de tudo, de suas potencialidades e possibilidades, seria perder o rumo de vez, e não apenas quanto a eles, mas também de tudo aquilo que nós, os adultos, sonhamos fazer ao mundo em nossas, no passado, idealistas juventudes.
Se pudermos ser um mau exemplo nessa sociedade de consumo, que possamos ser, através de nossas conquistas e dos nossos fracassos também, mas sempre resgatando a ética do cotidiano.
Como bem disse a psicanalista Maria Rita Kehl, terminando sua coluna já citada aqui:

“No limits”, diz um anúncio de tênis. Ou de cigarro, tanto faz. E os meninos obedecem.  No fundo, são rapazes muito obedientes. Se a ordem é passar dos limites, pode contar com eles. (2)

Nossos jovens são obedientes sim, são como todos os jovens já foram, rebelam-se tanto quanto reproduzem sublinhando, os padrões assumidos pelo meio adulto onde estão inseridos. Não há como não olhar pra isso.
Enquanto o social apontar seus dedos apenas para as famílias que geram a “adolescência difícil” ou “problema”, nada encontraremos para nos apoiar, o problema não é só do nosso vizinho. Muitos irão descobrir tarde demais, que ao seu lado estava gritando o “não-dito do não-dito” (Olievenstein), apenas era inaudível para ouvidos surdos de afeto. Vamos bater na porta do quarto de nossos filhos e sentar pra conversar? E se eles não quiserem? Vamos continuar tentando.

 

Bibliografia de apoio:

1 – Adolescência Normal    Arminda Aberastury e M. Knobel.

2 – Coluna– Folha de São Paulo – domingo 1º de julho de 2007- Maria Rita Kehl

3 – O Não-Dito Das Emoções(cap. “O Não-Dito do Não-Dito”) 

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