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Encontramos em Dora, homossexualidade ou transtorno narcisista de gênero

Estaremos retomando, através desse artigo, o famoso "Caso Dora", o qual se tornou emblemático no que concerne ao campo das histerias.

Sabemos que, sem sombra de dúvida, o famoso "Caso Dora" foi um marco freudiano na compreensão da histeria.

Sabemos também que esse caso não teria durado mais do que três meses, tendo Dora interrompido o seu tratamento com o Dr. Freud, o qual teria ficado extremamente insatisfeito, uma vez que tinha para si, a nítida impressão que muito ainda havia para ser caminhado naquele histórico tão interessante e, ao mesmo tempo, instigante.

Desta forma, a psicanálise freudiana se deteve diante de algumas interrogações sobre Dora:

– Como se explica a sua repulsa na cena do lago ou, pelo menos, a forma brutal e indignada desta repulsa?

– Como teria podido uma moça apaixonada, sentir-se insultada em uma declaração que nada teve de ofensiva?

Compreendemos que a razão fundamental que mobiliza a repressão, no sentido do recalcamento (ver Vocabulário da Psicanálise de Jean Laplanche e J-B. Pontalis), surge em decorrência do caráter incestuoso dos desejos que se dirigem, seja em relação ao pai, ao Sr. K. ou à Sra. K.

A sexualidade infantil, os atos masturbatórios, aliás, foi essa a temática do primeiro sonho, os desejos sexuais atuais, como, por exemplo, as fantasias de defloração, gravidez e parto, temáticas relacionadas ao segundo sonho, em conflito com as idéias morais, os sentimentos filiais, bem como à culpa edípica, encontram como única solução à repressão de todas as manifestações sexuais.

Os sintomas corporais de Dora, como a asma, a enxaqueca, a tosse e a afonia, surgem como uma quebra ao bloqueio da consciência e do Superego, abrindo assim caminho para a satisfação por meio das substituições fantasmáticas.

No que concerne à abordagem freudiana, sabemos que os sintomas corporais, as fantasias e os sonhos, surgem sobre aqueles agentes responsáveis pela sua frustração sexual.

Em primeiro lugar seu pai, o qual teria prescindido dela duplamente: por sua mãe e pela Sra K. e, logo o Sr. K., o qual além de ser marido da amante de seu pai, acaba por seduzir uma preceptora, ou babá.

As coordenadas da histeria:

– Conflito edípico no registro libidinal-fálico, triangularidade, repressão, identificação histérica e conversão.

Uma pergunta de extrema importância: "mas, por que Dora deseja a Sra K. e não a mãe, quando no histórico, o desejo heterossexual parecia poder deslizar-se do pai ao Sr. K., e deste, facilmente ao pai? Será que Dora deseja no fundo a sua mãe, sendo a Sra K., uma substituta? Haverá simetria entre o deslocamento do desejo do pai ao Sr. K., por um lado e, por outro, entre a mãe e a Sra. K.?

Vejamos como Dora caracterizava as mulheres com quem se relacionava:

_ mãe: "psicose das donas-de -casa".

_Sra. K.: "Dora sentia por ela uma profunda admiração, apesar dela se constituir em sua máxima rival, além do que, Dora admirava muito o seu corpo.

Durante o tempo de seu tratamento com Freud, segundo este, Dora nunca teria proferido uma só palavra hostil contra a Sra. K.

Sabemos que esse dado contraditório, com relação ao esquema da triangularidade histérica, teria conduzido Freud finalmente à hipótese sobre a existência de correntes afetivas masculinas em relação à Sra. K. Freud acrescenta que isso se encontraria no último estrato do inconsciente de Dora.

Entre 1901 e 1905, no auge da descoberta da importância do desejo sexual edípico, podemos perceber que Freud vai sustentar essa tese até às últimas conseqüências. Contudo, de acordo com uma avaliação a respeito realizada pela psicanalista Emilce Dio Bleichmar, em sua obra: "O feminismo espontâneo da histeria", podemos nos encontrar diante de uma outra perspectiva: "Dora se encontrava efetivamente mais interessada na mulher do que no homem, mas não em seu sexo, senão em sua feminilidade, na busca de um Ideal de ego feminino que, longe de perfilar-se como já instituído e facilmente localizável, encontrava-se muito confuso.

Como poderia a mãe de Dora, com as suas idiossincrasias pessoais, vir a constituir-se num ideal admirado por uma moça, a qual, segundo Freud era "uma jovem madura e de juízo muito independente (…), que rechaçava os cuidados de casa, preferindo os estudos sérios, cursos e conferências para senhoras". Desta forma, vamos encontrar na Sra. K., um modelo muito mais qualificado para representar a feminilidade, além de ter sido escolhida por seu pai, e de realizar várias leituras sobre temas sexuais.

Continuando nos passos de Emilce: "Se levarmos em conta o juízo sobre Dora ser uma mulher inteligente, não será em função dessa inteligência e, através dela, que a relação com a mãe como um duplo de seu gênero e pólo de identificação, no registro narcisista, poder-se-ia ver como seriamente afetada?

"O contraste entre a personalidade dos homens e das mulheres é claro. Seu pai "(…) pessoa dominante em seu círculo, tanto por sua inteligência, como por questões de caráter, como pelas circunstâncias de sua vida". Um grande industrial, com dotes intelectuais pouco vulgares, encontrava-se em excelente condição financeira.

"Seu irmão, um ano e meio mais velho do que ela era" (…) o modelo, a partir do qual suas ambições se haviam forjado".

# Nota: o irmão de Dora, Otto Bauer, foi um dos principais líderes socialistas da Áustria.

Ainda, como se articulam no interior do Ideal de ego de Dora, as ambições "masculinas", um registro de um domínio de algo, muito além do domínio doméstico materno, com o Ideal feminino, como uma complementaridade daquilo que falta ao homem?

Em outras palavras: como se harmonizam os desejos narcisistas, as ambições em um terreno masculino, e o desejo sexual de Dora por um homem, mas não para sê-lo, senão para tê-lo?

Dora, sabemos, apresentava como queixas freqüentes, ser um objeto a serviço do narcisismo dos personagens que constituíam o seu drama pessoal. Um objeto de transação para o pai, vendida ao Sr. K., em troca do silêncio daquele sobre suas relações com a Sra. K.; um objeto de capricho sexual para o Sr. K.; um objeto encobridor para a Sra. K., a qual cultivava a amizade de Dora, e se aproximava de seu pai; além de ser um objeto para a sua própria preceptora, que a tratava bem na presença do pai, com o intuito de seduzi-lo.

# Quais seriam os sentimentos que predominavam em Dora?

Conseguimos identificar pelo estudo do caso: a humilhação, a raiva narcisista e a indignação. Mas, aqui podemos nos perguntar o seguinte: não serão estes, os termos racionalizadores pré-conscientes de formulação do conflito, quando em realidade, o desejo sexual reprimido, tanto hétero como homossexual, seria sim o motivo real, gerador dos sintomas, e responsável pela eclosão da histeria.

Em Freud, encontramos a argumentação de que a luta se dava entre a tentação de ceder ao desejo sexual e às resistências a lhe sucumbir. Freud enumera, entre os motivos da defesa: razões de respeitabilidade e prudência, hostilidade provocada pelas confidências da preceptora, além de um elemento neurótico: a repressão sexual edípica.

Voltamos com Emilce: "Como se modifica a perspectiva conceitual se, às primeiras duas ordens de motivos, lhe outorgamos uma dimensão psicanalítica, dentro do marco do narcisismo? Pode-se, então sustentar que, aquilo que opõe como repulsa, como rechaço, o que provoca a indignação de Dora não é somente a transformação de um impulso sexual em seu contrário, em asco, asco ligado à cloaca, ao fluxo, ao sêmen sifilítico, à ereção, mas que o asco ou a repugnância física é uma "conversão" de um sentimento de humilhação narcisista".

O narcisismo ferido, não deixa que o desejo sexual se organize, porque apesar de Dora entrever que o valor máximo da feminilidade está associado ao sexo, a sexualidade que vive não se acha investida de um valor narcisista e, pelo contrário, opõe-se ao narcisismo de seu gênero, o qual Dora trabalhosamente tenta situar.

Destaca-se o caráter incestuoso dos sentimentos de Dora como sendo o motivo de sua profunda repressão e, de seus sintomas concomitantes, sem reparar nem no tom incestuoso quanto na proposição do Sr. K., como com a complacência com que o pai tolerava os avanços de seu amigo em relação à sua filha, nem nos efeitos desestruturantes, que à transgressão à lei por parte de um adulto, pode vir a produzir na mente de uma adolescente.

Não deixa lugar a dúvidas, que não se pode subestimar o desejo edípico de Dora, o impulso sexual que uma adolescente pode sentir para com um pai atraente e prestigiado, ou mesmo por um homem adulto, também atraente e prestigiado e que a corteja, mas também se faz necessário precisar as diferenças existentes entre o desejo sexual edípico de uma menina por seu pai, na etapa fálica, e o complexo universo psíquico em que este desejo reemerge em uma adolescente como Dora.

Vejamos: se Dora é convidada a esquecer sua castidade com a anuência do pai, assustar-se-á somente de seu impulso sexual, ou também confundir-se-á ante o que ela supunha que esperavam ambos os sexos de uma "mulher que significara algo", ou seja, que contivera o seu desejo?

Uma outra questão se nos coloca: A indignação de Dora não seria, ao mesmo tempo, uma lúcida captação sobe a sua pouca importância como ser humano, como um outro significativo para o seu pai, a quem ela considerava o seu ideal de ego, ideal que não somente não a reconhecera, mas que também não conseguia sustentar-se como tal?

Da teorização freudiana surge a pergunta: "como fará Dora para sentir em forma pura, o seu conflito, o seu desejo sexual?"

Podemos notar que toda a insistência freudiana, sobre a masturbação infantil, bem como em seu desejo sexual não correspondido, não estaria colocando Dora como sendo uma adolescente agitada, obsedada pelo sexo, o que a humilhava e confundia cada vez mais?

Em que consiste a especificidade da luta fálica entre o homem, o médico, a ama e a histérica, senão em uma luta de poder, objetivando sempre um maior reconhecimento?

Ainda no que concerne ao seu relacionamento com a mãe, penso que podemos dizer que Dora não aceitava o menosprezo ao gênero, e que fugia da mãe por horror à inferioridade e não por falta de sentimentos filiais. Em verdade, Dora teria sentido na Sra. K., sua introdutora no mundo dos adultos. Assim, a Sra. K. parecia saber as respostas para as perguntas, como por exemplo: "Que sentem as mulheres? Que vivem as mulheres em relação aos homens?"

Para a autora citada por nós, Emilce, se existe algo de "homossexual" na histérica é o seu desejo de homologação e de conhecimento sobre o seu gênero. Assim, se para "saber sobre a mulher", a mulher se dirige ao homem, não é por uma homossexualidade latente, buscando que o homem lhe fale das mulheres, nem por uma sofisticada relação com o "saber sobre o objeto da tendência", mas sim porque a intimidade sexual é o único âmbito de discurso sexual permitido e existente para uma adolescente.

"O que Dora chamou de 'a traição da Sra. K.', consiste na própria traição que a mulher se faz a si mesma, ao não reconhecer a si o direito à atividade sexual, identificada com os paradigmas e sistemas de representações do homem em nossa cultura".

Agora, de forma geral, não será esse o conflito da histérica: como gozar sexualmente em um mundo em que tanto as mulheres quanto os homens não consideram esse gozo como sendo algo legítimo e, menos ainda, engrandecedor da mulher? Em Dora, pensamos que a ferida imposta era muito mais com relação ao narcisismo do que em relação à libido. Se a única mulher (a Sra. K.) do universo simbólico de Dora se desmoronava, quem poderia então sustentar a feminilidade?

Através de todas essas considerações surge a tese: "não é que a mulher histérica rechace o homem por causa de sua corrente homossexual ou por um acentuado narcisismo – produto de alguma fixação a uma etapa fálico-uretral de seu desejo – senão que a mulher histérica rechaça o homem porque não encontra uma outra forma de valorizar a mulher que há nela, sendo esse o preço que tem que pagar, o de uma luta sexista entre ela e o homem a quem ama."

Numa tentativa de conclusão, pelo menos parcial, a estas considerações, diríamos que o que é objetivado não é a obtenção do falo, não se tratando do surgimento de uma "outra mulher" que se deseja sexualmente, mas sim de uma mulher que represente uma "imagem valorizada da feminilidade". Tratar-se-ia de uma busca desesperada pela reivindicação narcisista de um gênero pouco narcisizado na história da cultura.

Bibliografia sugerida:

Bleichmar, ED O feminismo espontâneo da histeria. Porto Alegre: Artes Médicas.

Langer, M Maternidade e sexo.

Sauri, J (org.) Las histerias.

Existem também Las fobias e Las Obsessiones.

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