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A Psicanálise e suas tentativas de elaborações técnicas

Denise Deschamps & Tovar Tomaselli

Este trabalho que ora publicamos, nasceu de uma comunhão de idéias e reflexões sobre a teoria e a técnica psicanalíticas. Através desse denominador comum, fiz a proposta e a querida colega colunista Denise Deschamps a acolheu prontamente, para a minha grande alegria. Esperamos que os colegas gostem da melodia desse "piano tocado a quatro mãos".

Sabemos que as questões relativas à "técnica psicanalítica" sempre suscitaram e continuam suscitando discussões apaixonadas entre os psicanalistas. Como um exemplo que nos parece emblemático desse tipo de discussão apaixonada, encontramos na história do movimento psicanalítico, as grandes discussões realizadas entre Freud e Ferenczi.

Sobre Ferenczi, nos conta Peter Gay (1), entre outras coisas que:

"Suas contribuições mais vigorosas, e discutíveis, à análise foram no campo técnico. Eram tão vigorosas e discutíveis em larga medida por brotarem visivelmente de seu extraordinário dom empático, sua capacidade de exprimir e conseguir amor" (pág 184).

Em seu trabalho de 1987, o psicanalista suíço André Haynal, escreveu em "La technique em question", que Freud teria afirmado que: "Esta técnica (a técnica psicanalítica) é a única que me convém pessoalmente. Talvez um outro médico com um temperamento totalmente diferente do meu poderia ser levado a adotar (…) uma atitude diferente". Essa afirmação data de 1912.
Algum tempo depois, se pronunciará em relação às regras analíticas que vale mais a pena anunciá-las "apenas a título de conselhos sem exigir sua estrita observância". Apresenta-se como totalmente contrário àqueles que, entre os seus alunos, levavam as prescrições ao pé da letra, chegando inclusive a exagerá-las.

Penso não ser do desconhecimento de ninguém que se interesse pela psicanálise, que Freud nunca foi um grande aficionado pelas questões da técnica, a não ser na medida em que tivesse o valor de "método" e, que a prática desse método estivesse a serviço das concepções teóricas sobre o psiquismo humano.

Freud escreveu, em "Novas conferências introdutórias a psicanálise", que "Nunca fui um terapeuta entusiasta", além do que encontramos também em Kardiner, uma referência a uma outra frase de Freud, bastante ilustrativa de sua posição: "Os problemas terapêuticos não me interessam muito. Atualmente sou impaciente demais. Sofro de um certo número de deficiências que me impedem de ser um grande analista". Conta-se também que teria ele confessado á Melanie Klein: "Só me interessei pelo inconsciente".

"Ele confessava sacrificar de bom grado o interesse do paciente em nome de sua curiosidade científica. Estava muito mais interessado em compreender e teorizar suas intuições clínicas que em ajudar a curar. Ele deixou poucos trabalhos técnicos"(4).

Pensamos não ser difícil acreditar que Freud teria se inclinado mais às especulações metapsicológicas, tendo ele se desviado bastante cedo de uma teorização especializada sobre a técnica psicanalítica, no que concerne aos seus objetivos terapêuticos.

Sabemos que até o final de sua vida, pela própria entrada no construto teórico da conceituação da Pulsão de Morte, ele teria se tornado um tanto descrente da capacidade de "curar" da psicanálise.

Encontramos por outro lado Sandor Ferenczi, o qual sempre foi um grande apaixonado pelo manejo clínico da técnica, voltada para os objetivos terapêuticos. Vale lembrar que Ferenczi via na questão da auto-análise de Freud, um limite para a percepção que este poderia ter da importância, quer numa linha terapêutica, quer devastadora, da transferência. Ele não teria como avaliar adequadamente, os "restos não resolvidos" da análise da transferência ao tornar-se um analista-terapeuta. Sabemos do interesse tardio e, ainda assim, limitado de Freud pela questão da contra-transferência. Para Ferenczi, uma auto-análise, sem uma análise prévia a dois, seria denunciada como responsável pelo fracasso de uma não fundação da psicanálise na sua técnica, constituindo-se numa verdadeira renegação do valor traumatogênico de um método aplicado sem técnica.

Dessa forma, parece que é consenso entre os analistas, que Ferenczi poderia ser considerado como sendo "o verdadeiro fundador da psicanálise como técnica clínico-terapêutica". Teríamos, assim, enunciada praticamente uma "segunda regra fundamental", onde para se tornar analista, ter sido analisado por alguém outro e de forma suficientemente profunda.

Hoje, essa questão também será questionada, pelos mecanismos institucionais normatizadores que as instituições formadoras acabaram por desenvolver, resultante do próprio modelo de formação de analistas, o que também acaba impedindo maiores debates e aprofundamentos relativos à aplicação da técnica psicanalítica.

Assim reformulada a questão da técnica, vai agora se centrar em problemáticas focais articuladas e acarretará na comunidade analítica— primeiro anglo-saxã (Melanie Klein, Michael e Alice Balint, Donald Winnicott, Bion, etc.)— uma incitação ao trabalho teórico, apoiando-se na experiência sincera e modesta da prática.

Uma auto-clínica psicopatológica do analista no trabalho:

Sabemos que não basta ser recomendada uma re-análise regular do analista, sendo conveniente que ele possa identificar e conhecer os seus próprios funcionamentos psicopatológicos na experiência cotidiana com os seus pacientes. Ferenczi falava de uma "higiene psíquica" do analista.

A noção de "equação pessoal do analista":

Isso implica em que o analista possa pensar metapsicologicamente o que faz e que a metapsicologia forme as bases "doutrinárias" de um discurso consensual da comunidade analítica.


A problemática da contra-transferência

Essa é uma noção que vai adquirir progressivamente uma abordagem que lhe é própria, assim como o trabalho do analista com relação aos seus afetos presentes na situação analítica, além da interpretação da resistência e da transferência.

Historicamente, em sua pesquisa de 1938, intitulada "La technique de la psychanalyse (1958), E. Glover demonstrava a diversidade das práticas técnicas decorrentes da descoberta freudiana, demonstrando que numa mesma comunidade, era muito difícil encontrar uma identidade técnica entre os seus membros.

Segundo Otto Fenichel, em seus "Problemas da técnica psicanalítica", diria: "Tudo é permitido com a única condição de que se saiba por que" (…) "devemos sempre esperar que o paciente nos conduza a algo muito diferente do que prevíamos". Fenichel dirá em 1935 que "o instrumento da técnica psicanalítica é o inconsciente do analista".

Numa tentativa de retomarmos o clima passional entre os analistas, citaremos os dizeres de uma aluna de S. Ferenczi, Vilma Kovacs (mãe de Alice Balint), sobre o Congresso de Munique em 1913: Freud teria sido forçado a reconhecer nos analistas o mesmo fenômeno constatado no trabalho analítico: assim que as revelações dolorosas se impunham, todo insight desaparecia.

Após termos tecido essas considerações sobre "técnica psicanalítica", pensamos ser importante destacar que nunca deveremos nos esquecer que a epistemologia própria à teoria psicanalítica, não é de forma alguma dissociável da experiência da análise e, neste sentido, de sua "techné", neste caso, da condição de linguagem do trabalho psicanalítico.

Pierre Fédida, se coloca uma questão, a qual queremos aqui destacar: "Nos perguntaríamos se a questão da técnica da psicanálise não acaba se refletindo totalmente sobre a da formação dos analistas e sobre os problemas institucionais da" didatização dessa formação?".

O mesmo autor nos deixa uma outra questão para a nossa reflexão: "pode a técnica psicanalítica ser pensada fora de sua referência à linguagem?".

Maud Mannoni também irá nos trazer importantes reflexões em sua obra intitulada de "Da Paixão do Ser a Loucura de Saber"(6), principalmente em seu capítulo dedicado a pensar sobre a Formação de Analistas, onde propõe que pouco ou nada resta de criativo após se adentrar em suas regras e normas.  A técnica, seu estudo e desenvolvimento seriam relegados a um "Plano menor", principalmente porque ao pensá-la, se leva junto ao questionamento à atuação de cada psicanalista, com suas necessidades narcísicas ou de aceitação.

Um nome que também poderemos pensar junto ao desenvolvimento da técnica seria o de Winnicott, menos pelas inovações que pode propor, mas principalmente, por sua disposição de fazê-las, o que sabemos levou-o a um certo recolhimento durante toda sua carreira.

Conta-nos Lydia Flem(4) em sua obra "A vida Cotidiana de Freud e seus Pacientes", uma passagem sobre Freud e sua posição perante a técnica que é no mínimo libertadora.

"Distante da ‘neutralidade indulgente' contemporânea, Freud não hesita em participar no tratamento, em fazer reflexões pessoais a respeito de personagens que conhece ou das obras que leu. Sinal de amizade, encorajamento, transbordamento de uma ‘contratransferência' cuja dimensão técnica lhe escapava, escolha magistral? Freud oferece pequenos presentes aos seus clientes: em pleno inverno, dá a H.D. (Hilda Doolitle) um galho de laranjeira, cheio de laranjas que um de seus filhos tinha trazido do sul da França. Ao doutor Blanton dá suas obras em quatro volumes, o que desencadeia neste uma série de sonhos complexos onde os trabalhos de Freud se associam à guerra, a uma caixa de explosivos e a um verso de Shakespeare".
"Estes últimos dias
[Freud lhe diz] seus sonhos têm ficado cada vez mais obscuros. Isto só pode ter uma significação: houve provavelmente uma modificação no seu espírito devido à doação que lhe fiz dos meus livros".Transformando talvez o que lhe parece então um erro numa demonstração didática, acrescenta: isto demonstra que dificuldades os presentes criam sempre no trabalho de análise."

E talvez, possamos pensar que a baixa produção e questionamento em relação à técnica psicanalítica venham justamente contra essa didática daquilo que mais identifica a psicanálise enquanto um modelo que lida com o absurdo, "escutando o inaudível, o vergonhoso e o incoerente dos seres humanos"(4). Nesse sentido, a questão da análise torna-se um ponto de referência, desde que possa manter-se afastada dos mecanismos de aprovação para a formação de um psicanalista. Só escuta o inaudível do outro aquele que não se recusa a lidar com seu próprio absurdo, parte inerente de sua condição de sujeito psíquico.

Talvez a questão trazida por Ferenczi sobre a técnica aliada ao grande desejo de "curar", tenha acabado embotada por questões inerentes à própria dinâmica que havia em sua relação de transferência com o amigo Sigmund Freud, nos conta Peter Gay que Ferenczi atuava na direção de colocar Freud no lugar de um pai receptivo, enquanto Freud desejava uma relação de par, simétrica e de troca, longe da demanda que Ferenczi apresentava reiteradamente.

"Disse a Ferenczi que, embora recordasse o período que passou em sua companhia com ‘sentimentos calorosos e de simpatia', ele ‘desejava que o senhor tivesse se libertado de seu papel infantil para se colocar junto a mim como uma companhia igual – o que não consegue fazer'…"(1)

Freud está se referindo a uma viagem que empreendeu junto a Ferenczi à Sicília, no verão de 1910. Poderemos pensar talvez, na questão transferencial e a didática, como que atravessadas e distorcidas pelas produções do Inconsciente.

Propomos então a hipótese, que pensar a técnica psicanalítica, passa necessariamente por questionar os dispositivos formadores de psicanalistas e suas instituições formadoras.

"Longe de ser austero, rígido e silencioso como as caricaturas geralmente descrevem os psicanalistas – e como eles se tornaram com freqüência -, Freud se mostrava muito presente, atento e respeitador do outro e também cheio de humor e, algumas vezes mesmo, de jovialidade. Mas podia, da mesma forma, revelar-se impaciente, e, quando se irritava, ficava tamborilando no montante do divã, ou mesmo, batendo com a mão fechada na almofada para apoiar a cabeça, ou ainda, com um largo gesto do braço, apontando com o dedo, que surgia então por sobre a cabeça do paciente" (Lydia Flem). (4)

Vê-se com facilidade como o mestre facilmente se entregava aos diferentes matizes do campo transferencial, partindo seu trabalho dessa premissa, por mais que não tenha aprofundado essa questão quanto ao estudo da técnica. Mas, estava lá presente na didática que ousou acreditar, se espalharia pelos grupos formadores. Pensamos que talvez Sigmund, não tivesse a dimensão exata do que se transformaria a psicanálise mundo afora, nessa força monumental e gigantesca, que por isso mesmo, foi perdendo-se da didática tranqüila do velho mestre.

Foi ali na Berggasse, 19, no encontro daqueles seres que passavam sessão a sessão pelo gabinete de Freud ou freqüentavam animadamente às reuniões das quartas-feiras, onde a questão dos pares se fazia mais do que nunca presente, por sob o olhar cúmplice do velho mestre, que a psicanálise tomou sua dimensão inquestionavelmente revolucionária. Talvez por isso mesmo Sigmund tenha se preocupado tão pouco em desenvolver rigores técnicos, talvez porque a técnica da psicanálise resida fundamentalmente em se reinventar dentro do "enquadre" a cada nova sessão. Nada é fixo, nada é permanente, enquanto os Inconscientes passeiam livres pelos minutos da sessão, ou assim sempre deveria ser.

Bibliografia:

1 –  Freud – Uma Vida Para o Nosso Tempo  –  Peter Gay

2 –  La technique em question – André Haynal

3 –  Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise – Obras Completas –     S.Freud

4 -A Vida Cotidiana de Freud e de Seus Pacientes – Lydia Flem 

5 -Clínica Psicanalítica- Estudos – Pierre Fedida

6 – Da Paixão do Ser À Loucura de Saber –  Maud Mannoni


Artigo escrito por: Tovar Tomaselli e Denise Deschamps

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