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Neurociência e Teoria da Técnica Psicanalítica

 

Penso que o progresso da teoria psicanalítica dependerá de afi­nar suas hipóteses com os achados da neurociência, enquanto que o desenvolvimento da técnica consistirá no aprofundamento da com­preensão das estruturas afetivas implicadas na transferência, para que possam ser vinculadas pelas estruturas ideativas.

 

O conceito metapsicológico de afeto ainda é escassamente compreendido, mas seu papel fenomenológico foi sempre reconhecido como essencial no processo psicanalítico. Por isso, o uso da empatia tem sido empírico, sem um conhecimento científico para fundamentá-Io, es­tando sempre ligado a procedimento intuitivo. A intuição é instru­mento importante do arsenal terapêutico psicanalítico, mas deve ser usada com parcimônia e sabedoria, para evitar o risco de interpreta­ção leviana, como Freud já chamava a atenção em 1900. Hoje que se dispõe de conhecimentos não só metapsicológicos, mas também neurocientíficos para dissecarmos as entranhas da empatia, pode­mos conduzir-nos empaticamente com segurança científica e canali­zar a intuição para uma compreensão não-leviana.

Não quero, contudo, passar a idéia de que o trabalho da análise se encerra com a restauração por via empática de falhas estruturais do ego. Por mais básica que seja, essa é apenas uma parte da tarefa analítica. Ficar somente nela é fazer o que se chamou de psicanálise de espectro restrito. Se quisermos fazer uma psicanálise de am­plo espectro, não podemos perder de vista que, além da restauração dessas estruturas, cumpre ainda desenvolver o ego, tornando-o me­nos dependente do superego e anexando novas porções do id. Para isso, é preciso atuar também nas estruturas ideativas e imergir no id reprimido, papel desempenhado pelas interpretações propriamente ditas. A empatia diz respeito a uma fase pré-verbal de narcisismo primário, ou seja, da identificação primária. Transposta essa fase, penetra-se na etapa propriamente verbal, de relação objetal e de identificação secundária. É aqui que a psicanálise convencional ou clássica, com predominância de interpretações do conteúdo do re­primido, assume a plenitude de seu papel. Não me deterei neste lado da prática psicanalítica, pois constitui a psicanálise propriamente dita, sendo objeto de toda a literatura que trata da teoria da técnica. Incli­no-me antes a falar de falhas estruturais do ego derivadas de relações afetivas deficientes, que têm participação substancial no processo psicanalítico, e suas relações com a neurociência.

A finalidade última da psicanálise, em função da qual gravitam todas as manobras técnicas, consiste em promover elaborações nor­mais pelo ego, meta traçada desde a Comunicação Preliminar, que continua prevalecendo mais de um século depois. A elaboração nor­mal é parte da função precípua do ego de vinculação e síntese, a mais básica de todas as funções, que Freud situou além do princípio do prazer. Uma vez que a capacidade de vinculação exprime a tendên­cia primeira do sistema nervoso de dominar excitações, não pode­mos deixar de voltar a estabelecer uma ponte com a neurociência.

Depois de já ter construído sua teoria em tomo de um todo ­poderoso princípio do prazer, Freud (1920) constatou a existência de uma função anterior a ele, independente dele e mais básica que ele, sem a qual seria impossível a existência do prazer. Referia-se à função primária de vinculação, impeditiva da descarga automática da energia livre que tornaria inviável não só o prazer, mas a própria vida. Portanto, o prazer é uma tendência do aparelho psíquico que nem sempre pode atingir seu objetivo, na medida em que há prazeres incompatíveis com a vida. Em sentido estrito, o princípio do pra­zer é em si o princípio da morte – o nirvana. Freud mostrou também (1900 e 1915) que a energia livre que ocupa uma repre­sentação-coisa (concreta) é vinculada pela representação-pala­vra (abstrata), mediante a qual se torna consciente (1900 e 1915).

Sabendo-se que o hemisfério cerebral esquerdo é a sede da lin­guagem verbal e do pensamento racional, enquanto que o direito é literal e concreto; sendo a sede das emoções, pode ser inferida uma semelhança com as duas formas de energia psíquica, livre e vinculada. Há também similitude com as defesas do ego contra a invasão de impulsos capazes de desestabilizá-Io, que são impedi­dos de se tornarem conscientes.

Quando o ego domina esses impulsos, permite sua livre entrada, elaborando-os e absorvendo-os como seus. Se não pode dominá-Ios, repele-os, excluindo-os de seu campo e impedindo-os de ter acesso à consciência. É flagrante a analogia com as especificidades dos dois hemisférios descritas antes. Porém, o papel do hemisfé­rio esquerdo de guardião da estabilidade tem a função adaptativa de preservação da vida. Podemos ver um papel similar nos mecanismos de defesa do ego, que, por não ser suficientemente forte, se mutila para impedir a penetração de impulsos desestabilizadores de sua or­ganização. Essa mutilação, observada clinicamente sob a forma de enfraquecimento do ego, tem expressão anatômica e fisiológica, como observou Teicher, ao relatar a diminuição de volume no hemisfério esquerdo. Releva notar que esse neurocientista relatou experiências com transtornos de personalidade; nossa experiência clínica revela, todavia, que transtornos de desenvolvimento ocasionados por incontáveis microtraumas cotidianos, conducentes a debilidades (mu­tilações) diversas do ego, também devem corresponder a distúrbios no nível fisiológico, embora estes não sejam ainda detectados em exames laboratoriais. Essa é uma ilação natural, se pensarmos que todo o psí­quico exprime algo que está se passando no cérebro. O ego portador desse tipo de mutilação não pode fazer face a certas demandas instintuais, das quais se afasta por meio de mecanismos de defesa. A função precípua do trabalho analítico é desenvolvê-Io e fortalecê-Io para dominar os impulsos e incorporá-Ios a seu campo de ação, isto é, vinculá-los – nisto consiste a elaboração almejada.

Em vista da natureza vital do processo vinculatório, há muito a ser observado em sua convergência com a neurociência. A respeito da característica do hemisfério esquerdo de demorar algum tempo antes de absorver experiências afetivas, a psicanálise deve estar atenta ao que se passa nos dias atuais, quando experiências novas se suce­dem em ritmo vertiginoso, em decorrência das transformações in­cessantes trazidas pelo desenvolvimento científico e tecnológico. A globalização ameaça desestabilizar culturas longamente constituí­das; a velocidade com que novidades se sucedem, criando costumes que não se sustentam, dando a impressão de transitoriedade inces­sante, tudo isso faz com que o ego não tenha tempo suficiente para a absorção desses lances vividos freneticamente, não sendo, por isso, capaz de vinculá-Ios e incorporá-Ios. A pletora de novas informa­ções põe em risco a estabilidade conseguida pelo hemisfério es­querdo, ao passo que apenas os egos fortes se adaptam às mudan­ças e conseguem acompanhar o ritmo acelerado da vida moderna sem se deixar desestruturar. Quando me refiro ao ego como ins­tância metapsicológica, cuja função capital é a de síntese e or­ganização, parece-me válido supor que sua contrapartida neurocientífica é o funcionamento equilibrado e harmônico dos dois hemisférios cerebrais em ação recíproca.

Os egos mais frágeis defendem-se da forma que estiver a seu alcance. Em conseqüência dessas defesas, nota-se uma contração narcísica, observada, no plano individual, na tendência ao desenvol­vimento de transtornos de personalidade de tipo narcísico, borderline e anti-social, os quais, como foi observado por Teicher, podem corresponder a contração anatômica do hemisfério esquerdo e do corpo caloso. No plano social, uma faceta da reação ao progresso desabalado é o recrudescimento de duas tendências conservadoras: (1) o renascimento do apego às mais diversas modalidades de reli­giões, que se ramificam sob a forma de práticas alternativas de cu­nho mágico, e (2) o fortalecimento de movimentos ideológicos radi­cais, fenômenos que provavelmente serão a marca da primeira meta­de do século. Outra forma de defesa consiste em um alheamento à realidade por meio de busca irrestrita do prazer, através de encastelamento narcísico de cunho auto-erótico, às vezes revestido de pseudogenitalidade, sob cuja máscara atitudes de cunho masturbatório oral, anal e fálico se deixam entremostrar.

A psicanálise deverá estar atenta a esses fenômenos, pois todo psicanalista tem experiência com a resistência, através da qual o analisando procura evitar a penetração em região de seu aparelho psíquico que procurou manter inexpugnável durante toda a vida. Com essa barreira natural reforçada pelas peculiaridades inerentes à civilização pós-industrial globalizante, também chamada pós­-moderna, resistências surgem contra a própria psicanálise, muitas vezes disfarçadas de apoio, com a intenção sub-reptícia de retirar-­lhe o papel de investigadora da verdade e indutora do desenvolvi­mento psíquico.

Considerando que a civilização contemporânea gera uma su­perabundância de estímulos não vinculáveis de modo conveniente, a psicanálise tem de se preparar para acompanhar a transformação dos costumes, bem diferentes daqueles em vigor durante o primeiro sé­culo de sua existência, pois atuam sobre a mente de modo também diferente, influenciando sua estruturação. Aos poucos, os motores que impulsionaram o progresso industrial foram sendo superados, como impacto sobre as atividades humanas, pela tecnologia que in­troduziu a informática e a navegação virtual.

Diante dessa novidade, a tendência inicial dos psicanalistas é a conservadora de negar legitimidade ao processo de mudança, con­denando o modo de vida atual e negando o fato de que o rumo toma­do pela civilização científico-tecnológica é irreversível. Em vez de estudar as transformações e ver suas repercussões sobre a personali­dade humana, preferimos considerar os conhecimentos psicanalíti­cos definitivos, em vez de vê-Ios com capacidade plástica suficiente para acompanhar os rumos da civilização e analisá-Ios. Em uma pos­tura contrária, que tem a mesma raiz da outra, há também uma ten­dência a introduzir afoitamente todas as modificações, em um vale-­tudo que retira a identidade da psicanálise. A primeira atitude asse­melha-se à ação conservadora do hemisfério esquerdo; a segunda, à do hemisfério direito. Em qualquer circunstância, a integridade da mente estaria em risco, pois, a mente hígida depende da ação recíproca de ambos os hemisférios.

Em qualquer caso, essa postura me parece existir em razão de a psicanálise não se ter adaptado às transformações, mantendo uma visão da estrutura psíquica delineada pelos padrões da civilização industrial que se fizeram prevalentes pelo menos até o terceiro quar­tel do século XX. Naquele período histórico, as diversas novidades trazidas pela ciência foram introduzidas em um ritmo assimilável pelo ego médio da população, que podia dispor de uma quantidade de energia suficiente para exercer suas funções de modo razoável, mantendo estável pelo menos a função de organização e síntese. Era o chamado ego íntegro, capaz de relacionar-se em suas três frentes distintas e produzir psicopatologia derivada precipuamente de con­flito com o id. Sempre existiram outros quadros psicopatológicos, decorrentes de conflitos nos outros fronts (superego e realidade), contudo, os compreendidos pelas psiconeuroses de defesa foram o traço marcante da sociedade industrial em fase de boom que prevale­ceu no primeiro século da psicanálise.

Não foi sem razão que as coisas ocorreram assim. As exigências de mudanças feitas pela realidade ao ego se fizeram de modo paula­tino ao longo da história e da pré-história. A primeira grande revolu­ção cultural representada pela agricultura e pela domesticação dos animais surgiu há cerca de dez mil anos, provavelmente ligada ao término da última glaciação, e a segunda, a industrial, só surgiu há cerca de dois séculos. O longo intervalo entre essas grandes rupturas no processo cultural contribuiu para que mudanças de costumes ocor­ridas nesse período fossem assimiladas e elaboradas de maneira mais ou menos natural, dando ensejo a que sólidos sistemas de crenças e ideais pudessem ser estabelecidos e mantidos como cláusulas pétreas consensuais e paradigmáticas da civilização. Tais crenças e ideais, além de constituírem forte identidade entre o ego e o superego, re­presentavam uma limitação da capacidade do ego de esquadrinhar a realidade e percebê-Ia de forma mais acurada, além de impedir a satisfação de desejos do id que pudessem pôr em risco a estabilidade alcançada. Grosso modo, essa situação, com algumas variações, pre­valeceu por alguns milênios, durante os quais as estruturas psíquicas não devem ter entrado em conflito em nível de conflagração indutora de desorganização radical da mente coletiva.

Quando Freud se interessou pelo estudo dos fenômenos psicopa­tológicos, a humanidade estava nesse estágio de civilização em que as pessoas possuíam, em média, um ego integrado o suficiente para impedir, por meio de elaboração, sublimação ou repressão, a satisfa­ção original dos impulsos instintivos censurados pelo superego. Os estímulos externos feitos ao ego não eram de magnitude suficiente para promover defesas maciças contra a realidade externa ou contra o superego, na medida em que esses estímulos externos pudessem despertar desejos reprimidos.

Ainda no tempo de Freud teve início a eclosão de novos acon­tecimentos que iriam mudar definitivamente a face da humanidade. Neste sentido, a Primeira Guerra Mundial parece ter sido o embrião da globalização. De lá para cá, o processo de globalização tomou vulto inimaginável, passando pelo rádio, cinema, televisão, culmi­nando na informática e na navegação virtual, em conseqüência de avanço científico sem precedentes na história da humanidade. O de­senvolvimento possibilitou que os desejos humanos se tornassem realizados como nunca foram sequer imaginados, com as facilidades exigindo pouco esforço do ego. Fantasias que nunca se pensou pu­dessem sair do estágio de imaginação podem hoje ser concretizadas através de uma realidade virtual, que provoca identidade entre fanta­sia e realidade. Em suma, o ego passou a receber estímulos em pro­porções antes impensáveis, que passaram a pôr em xeque diuturna­mente sua capacidade de integração e síntese.

Em conseqüência de tantas novidades em tão pouco tempo, o ser humano não vive como há pouco tempo. Ainda não foi bem avaliado o impacto que a realidade virtual tem sobre o psiquismo humano. Pode-se supor que ela tende a ocupar grande parte do espa­ço da realidade propriamente dita. Ao contrário do que possa pare­cer, a realidade virtual não é imaterial, mas apenas nova feição de determinada realidade, cuja relatividade é hoje bem conhecida. Quan­do vemos uma estrela imaginamos que ela esteja no lugar em que a vemos, quando na verdade está muito distante dali, pois o que ve­mos é apenas a luz por ela emitida quando esteve ali há milhares ou milhões de anos. Do ponto de vista do nosso cérebro, é indiferente se ela se encontra ali ou não, pois em qualquer circunstância, só poderia ser percebida a luz dela emanada. Essa é a realidade do cérebro: ele é que constrói as imagens que percebe, a partir de si­nais eletroquímicos. Mesmo as representações mentais do que se percebe do mundo externo e do interior do corpo são apenas sinais eletroquímicos dispostos de modo semelhante ao de um código Morse. Do ponto de vista do cérebro, toda realidade é virtual, na medida em que só existe a criada por ele a partir de sinais que lhe chegam dos órgãos sensoriais.

Esse é o ponto de partida para a compreensão da mente como manifestação virtual do trabalho real do cérebro. Através da imagem virtual em um monitor de televisão um médico pode executar sofis­ticadas intervenções cirúrgicas em órgãos reais situados no interior do corpo, mesmo sem vê-Ios em seu estado real. De forma seme­lhante, engenheiros da NASA podem atuar sobre uma nave espacial em órbita de Marte, corrigindo-lhe rumos ou consertando-lhe instru­mentos, pois a realidade virtual não é uma ficção, mas sinais eletro­magnéticos emanados de uma realidade material. Por outro lado, a realidade material não passa de um conjunto de sistemas físico-quí­micos que, decodificados em circuitos neurais, tomam aquela feição particular que lhe é dada pela percepção, sem que se possa saber como ela é fora do que está no cérebro como representação. Com certeza, a total realidade externa não é a percebida pelo cérebro, pois este tem capacidade para apreender apenas alguns aspectos daquela. Em última análise, toda realidade é virtual, e não só a psíquica; ou ainda, só podemos ter certeza da realidade psíquica. Parece ser este o sentido da já citada afirmação de Llinás e Paré de que "a vigília pode ser descrita como um estado de sonho modulado pela entrada de estímulos sensoriais".

Não é desejável que a psicanálise desconheça o que tem sido descrito pela neurociência, sob pena de continuar querendo viajar só de trem, como se fazia no tempo de Freud, quando a civilização já está no rumo dos vôos espaciais. O ritmo de novos avanços é tão acelerado, que um descompasso pode levar a uma perda de rumo sem retorno. As viagens de trem provavelmente continuarão existin­do ainda durante muito tempo, todavia seus percursos tendem a ser cada vez mais limitados e seu uso também restrito. Do mesmo modo, a psicanálise, mesmo se se mantiver em seu estado atual, propende também a continuar seu caminho ainda durante muito tempo, apesar de suas limitações se tornarem progressivamente mais notórias. Se quiser ter vida mais longa e ampliar seu campo de ação deverá estar atenta às mudanças da civilização e suas repercussões sobre a estru­tura psíquica. Quando as neuroses de transferência dominavam os quadros clínicos, era possível deixar de lado as neuroses narcísicas e considerá-Ias fora do escopo psicanalítico. Agora que a situação se inverteu, a atitude está tendo de ser mudada sem que a psicanálise tenha se preparado convenientemente para a transformação.

Apresso-me a ressalvar que a analogia com o trem se refere apenas às mudanças estruturais da mente provocadas pela civiliza­ção pós-industrial, sem qualquer alusão à demora do método analí­tico. Ao contrário, as conseqüências narcísicas da vida pós-moder­na fazem com que o processo psicanalítico tenda a alongar-se ain­da mais, por ter de abranger falhas do ego, além de continuar lidan­do com o id reprimido. Sendo um método que trata de transtornos de desenvolvimento por meio de um processo regressivo-­transferencial, ele é não só intrinsecamente demorado, mas tam­bém deve ser feito com uma freqüência tão grande quanto possí­vel. Os métodos desenvolvidos em tempo curto tendem a aplacar situações conjunturais, sem removerem falhas estruturais e sem promoverem o desenvolvimento psíquico.

Podemos aqui raciocinar sobre a teoria da técnica psicanalítica que deve acompanhar essa civilização com superabundância de in­formações e estímulos, cujas repercussões se fazem sentir em todos os consultórios do mundo, onde os transtornos narcísicos predominam de forma avassaladora, deixando um estado de perplexidade universal, pois a psicanálise passou um século voltada para outra espécie de patologia. A saída dessa perplexidade passa pelo exame dos efeitos desses copiosos estímulos sobre o aparelho psíquico, que o impedem de estabelecer um sistema sólido de conhecimentos a partir das informações recebidas, os quais, para serem realmente sólidos, têm de abranger a afetividade.

De acordo com o que aqui tem sido exposto, sabe-se que a maturação e o desenvolvimento das tendências cognitivas do ego se dão através de interação afetiva com o objeto, e que esse acontecimento psíquico encontra correspondência cerebral na interação entre estru­turas corticais cognitivas e subcorticais afetivas, mediada por neurotransmissor liberado durante a relação afetiva intersubjetiva. A vida contemporânea produz efeitos negativos sobre a fase crucial de interação afetivo-cognitiva, ocorrida na segunda metade do primeiro ano de vida, na medida em que as mães são solicitadas a participar febrilmente das atividades socioeconômicas sem que outro objeto possa substituí-Ias à altura. Falhas no ego decorrentes dessa defici­ência podem desencadear efeitos em cascata sobre o desenvolvimento posterior, levando o ego a não manter a integridade harmônica ideal para desenvolver-se adequadamente. Pode haver desenvolvimento desigual de suas diversas funções, de acordo com as situações exter­nas estimulantes.

No ego íntegro atuante nas neuropsicoses de defesa, seu conflito é predominantemente com o id. No caso do ego com falhas estruturais básicas, uma vez que suas funções se desenvolvem irregularmente, muitas delas entram em conflito entre si, criando o que Hartmann (1950) chamou de conflito intra-sistêmico (dentro do sistema ego), para contrastar com o conflito intersistêmico (entre os sistemas ego e id). Enquanto nas psiconeuroses de defesa o ego se enfraquece pelo uso excessivo da função defensiva, no conflito intra­sistêmico sua debilidade é intrínseca, não podendo sequer lançar mão do mecanismo de defesa básico da repressão. São usados ou­tros processos defensivos muito mais radicais e lesivos à integrida­de do ego, como divisão, projeção e negação (Verleugnung), que implicam mutilação do ego. O transtorno do pânico, por exemplo, tão comum nas personalidades narcísicas atuais, reflete um temor da iminência de dissociação do ego, uma espécie de despersona­lização abrupta, experimentada como sensação de desfalecimento ou de morte próxima.

Os quadros patológicos implicados nesse processo dizem res­peito ao próprio ego, afetando seu caráter, constituindo o que Freud denominou neuroses de caráter, nome que vem sendo substituído pelo que a psiquiatria clínica chama de transtornos de personalida­de. Do ponto de vista metapsicológico, são quadros narcísicos, cujo cenário é o centro do ego, tendo origem em uma fase auto-erótica em que ainda não existia noção de objeto. As falhas básicas oriundas dessa fase, quando não são extensas o suficiente para gerar psicoses, costumam levar à estruturação de personalidades narcísicas, nome genérico que inclui personalidades de tipo imaturo, histriônico, esquizóide, paranóide, anti-social e borderline, as quais, por serem todas narcísicas do ponto de vista estrutural, costumam intercambiar suas características.

Deve ser esclarecido que esses tipos de patologia do ego sempre existiram, ao lado das psiconeuroses de defesa, só que geralmente em função de distúrbios individuais nos contatos iniciais com os primeiros objetos. Aqui, estou tratando do fenômeno que ocorre em massa na atualidade, em decorrência de injunções culturais, à semelhança do que aconteceu no passado, quando sociedades extremamente repressi­vas da sexualidade induziam os grandes quadros histéricos. O que era sintoma neurótico se transmudou em transtorno de caráter.

Em se tratando de falhas estruturais primárias do ego, e não propriamente de debilidade secundária derivada do exercício de fun­ções defensivas, é evidente que a atitude analítica não pode ser a mesma nos dois casos, como foi observado por Freud, ao afirmar que os distúrbios narcísicos introduziriam modificações técnicas. Não se trata, para ser mais preciso, de alteração da técnica propriamente dita, mas de mudança de enfoque na compreensão do que o analisando mostra na relação, o que influencia a atitude analítica. Em um sentido estrito, é antes uma extensão da metapsicologia freudiana, enriquecida do conhecimento neurocientífico, à prática clínica de correntes atuais que se desenvolveram sem uma fundamentação ci­entífica. Uma vez que nas psiconeuroses de defesa o ego íntegro estabelece uma ligação objetal, está capacitado a participar ativa­mente do diálogo analítico, com transferência em um nível objetal. Nas patologias narcísicas, não há um objeto verdadeiro, mas um ob­jeto narcísico, confundido com o sujeito, como Freud mostrou ao se referir à escolha narcísica de objeto (1914). Nesse caso, não há na análise uma transferência para a pessoa do analista como tal, e sim para o analista confundido com o paciente: é o que Kohut (1971) chamou de transferência narcísica para um objeto-self.

Não sendo um verdadeiro objeto, o analista não pode esperar de início que o paciente preste atenção a suas intervenções como pessoa distinta, pois se interessará apenas pelo que lhe diz respeito diretamente. Qualquer intervenção do analista que não corresponda à expectativa do paciente será recebida ou com indiferença total, como se o analista nada tivesse dito – Freud mostrou que a indife­rença é uma forma de ódio (1914) -, ou com ódio explícito, às vezes sob a forma do que Kohut (1972) chamou de fúria narcísica, ou daquilo que Kernberg (1984) denominou narcisismo maligno. É natural que seja assim, pois, uma vez que o analista é vivenciado como o próprio paciente, qualquer atitude do primeiro que contrarie a expectativa do segundo será experimentada como ferida narcísica, uma dor insuportável como costuma ser qualquer frustração para um bebê. Nesses casos, se o analista insistir em uma conduta interpretativa parecida com aquela desejável nas psiconeuroses de defesa, as rea­ções narcísicas de hostilidade podem criar uma transferência negati­va capaz de tomar a análise inviável.

A atitude adequada deve ser a de deixar-se levar pela necessi­dade do paciente de estabelecer uma transferência narcísica simbió­tica, durante a qual a fala do analista deve ser prudentemente com­preensiva, com escassas interpretações, para tomar-se continente da necessidade do paciente de reviver seus primeiros estágios de desen­volvimento, na linha do continente-contido de Bion. A compreensão prudente implica aceitação empática da transferência, desde que isto signifique não perder de vista a condição de objeto transferencial narcísico, o que exclui a tendência do analista de nessas situações sentir-se como objeto real, quando costuma atuar anti-analiticamen­te, isto é, como se fosse pai e mãe reais do paciente.

Ser objeto de transferência significa tornar-se o monitor atra­vés do qual o laço real que o paciente teve com os primeiros objetos pode ser visto em um plano virtual. Assim como um médico pode observar o que se passa no interior do corpo real de um paciente pela imagem virtual do monitor, também o analista, se mantiver a convic­ção de que a relação com o paciente é transferencial, isto é, virtual, é capaz de observar as relações do paciente com os objetos reais em seu passado revivido na transferência. Assim como o médico execu­ta cirurgias no corpo real através do que vê na imagem virtual, o analista é capaz de promover modificações nos circuitos neurais re­ais do paciente através das representações virtuais contidas nesses circuitos que são projetadas na relação virtual da transferência. As representações dos antigos objetos de identificação primária locali­zadas nos circuitos neurais formam as estruturas afetivas primordi­ais, de modo que o elo transferencial será a atualização do laço anterior, agora passível de alteração.

O objetivo central da técnica diante de falhas estruturais é dimi­nuir tanto quanto possível a dimensão dessas falhas, o que se torna viável através da inserção do analista na relação anterior em que o objeto falhou na função materna. Isto se torna factível quando a rela­ção anterior é repetida de forma virtual no aqui-e-agora, situação em que o analista, ao ser introjetado, propicia nova identificação primária, formando nova representação capaz de exercer influência positiva so­bre a preexistente. Embora esse processo aparente ser inexeqüível, sua viabilidade se torna compreensível se tivermos em mente que estamos em presença de representações, isto é, de realidade virtual. Neste caso, a quota de afeto ligada à representação do objeto que exerceu a fun­ção materna é transferida para a representação do analista, que pas­sa a ter valor afetivo semelhante à daquele objeto.

Assim como na videolaparoscopia tem de haver um cirurgião capaz de usar a imagem virtual para operar como pessoa real os ins­trumentos no interior do corpo real do paciente, na situação analítica o analista exerce o duplo papel de participante da relação virtual e de observador real dessa ligação, tendo em vista a capacidade do ego normal de se dividir em uma parcela que participa da experiência e outra que se mantém observadora da mesma experiência, caracterís­tica a que Greenson (1967) atribuiu um papel decisivo na técnica psicanalítica. Da mesma forma, o paciente regredido transferen­cialmente mantém íntegra uma parte adulta apta a estabelecer rela­ção real com o analista, uma vez que só esta pode constituir a aliança terapêutica através da qual a virtual, induzida por um processo técni­co, pode ser compreendida e desfeita com o tempo para tornar-se real. Assim como a contratransferência é superada pelo analista atra­vés da capacidade de auto-análise de seu ego-observador, a transfe­rência do paciente é desfeita pelas interpretações do analista, que dão ao ego-observador do paciente a capacidade de elaborar essas interpretações e refletir sobre os insights adquiridos. Só depois que essa complexa cirurgia tiver sido feita no âmago da estrutura psíqui­ca, o ego do analisando pode tornar-se íntegro e diferenciar-se do ego do analista, trocando as identificações primárias pelas secun­dárias, circunstância em que os conflitos intersistêmicos podem ser interpretados de maneira eficaz, bem como ser desfeita paulatina­mente a relação transferencial.

A capacidade do analista de modificar estruturas psíquicas por meio empático, conquista inequívoca da técnica psicanalítica, tem hoje alguns de seus mecanismos neuroquímicos desvendados, quan­do se sabe que neurotransmissores provenientes da porção medial do cérebro, onde são liberados por estimulação afetiva da função materna, produzem o efeito de desenvolver circuitos neurais no córtex pré-frontal, responsável pela cognição e pela regulação dos afetos (Schore, 1994). Sabe-se agora que a revivência transferencial dessa interação afetiva pode ter a função de atuar nesses circuitos insufici­entemente estimulados na infância precoce. Experiências neurocien­tíficas mostram que mesmo em pessoas adultas estímulos ambientais podem continuar influindo sobre o crescimento dos neurônios. Diamond (1988) demonstrou que ratos adultos, mesmo com lesões de neurônios, tiveram crescimento de sinapses quando expostos a ambientes estimulantes. Kandel e Hawkins (1992) confirmaram que o estímulo pela aprendizagem causa mudanças no crescimento dos neurônios, com liberação de neurotransmissores e formação de no­vas sinapses. Por sua vez, Kempermann e Gage (1999) mostraram que o hipocampo, que desempenha papel decisivo no processo de memória, apresenta crescimento celular mesmo nos adultos. Schore (1994, 1997) não só fala da existência de uma plasticidade cerebral que perdura por toda a vida, como afirma que essa característica per­mite que mudanças nas estruturas cerebrais podem ser obtidas a partir de método psicológico, mediante processos não-verbais im­plicados na transferência-contratransferência. Diz que "há agora evidência convincente de que o córtex órbito-frontal medeia funcio­nalmente a capacidade de empatia com os sentimentos de outros e de reflexão sobre estados emocionais internos, da própria pessoa e de outras" (1997, p. 831). Segundo esse autor, diversas patologias ligadas a distúrbios de funcionamento do córtex órbito-frontal são atribuídas a transtornos precoces do desenvolvimento afetivo, como autismo, mania, fobias, alcoolismo e adição a drogas.

Por isso, todos os métodos psicoterápicos, sem exceção, sejam científicos ou de índole mágico-supersticiosa, podem ser efetivos para determinadas situações focais, já que sua ação se faz pela rela­ção afetiva em si, de que participa um processo transferencial da função materna, mesmo que o agente não tenha noção disso, como M. Jourdan, o clássico personagem de Molière que fazia a prosa sem saber, ou a musa dos inefáveis versos do seresteiro, que, em um "chão de estrelas, pisava nos astros distraída". A psicanálise diferencia-se de qualquer desses métodos por usar conhecimentos científicos das estruturas afetivas e ideativas para fundamentar uma técnica que visa ao desenvolvimento global da personalidade e não à remoção de sintomas isolados. Esses conhecimentos permitem mergulhar nas regiões abissais do oceano anímico, de onde dados de um passado imemorial são reco­lhidos e trazidos para uma superfície virtual. Esses dados são examina­dos meticulosamente e reconstituídos na medida do possível, de modo a deixarem de causar turbulências na superfície real. O mergulho é reali­zado em segurança quando monitorado por psicanalista familiarizado com as singularidades do campo observado.

A propósito, impende consignar que esse mergulho é metáfora semelhante àquela apontada por Freud (1900, pp. 536 e 610/11) em memorável advertência sobre a necessidade de não confundir o vir­tual com o real. Neste caso, não se trata de uma viagem ao passado concreto como se faz em filmes de ficção científica, pois quando se fala em mente pressupõem-se idéias ou representações – estas são sempre presentes, mesmo que representem o passado. Uma quota de afeto ligada à representação faz reviver a situação passada como atu­al. É evidente que a recuperação do conteúdo dessas representações nunca será total, pois estas já se transformaram em estruturas psíqui­cas, que poderão ser modificadas, mas não substituídas. Deste modo, aprender uma nova língua diferente da nativa é o melhor exemplo para ilustrar o que pode ser feito pela psicanálise, uma vez que a capacidade de aquisição da língua-mãe só ocorre uma vez e na época propícia: outra língua está fadada a carregar um sotaque quase sem­pre indisfarçável. A revivência de experiência afetiva anterior no aqui-e-agora se dá em uma situação em que o ego atual observador está atento ao que se passa e não participa da transferência, razão por que a restauração de uma falha básica nunca é completa.

Muito da teoria psicanalítica dos fenômenos psicopatológicos poderá vir a ser reformulada ou substituída com o tempo, porém é difícil imaginar que em futuro previsível a técnica psicanalítica dei­xe de ser o método de escolha na reestruturação de mentes com trans­torno de desenvolvimento – este deve ser o verdadeiro nome para os chamados processos psicopatológicos -, tendo em vista sua condição de método científico emulador das relações afetivas mais precoces e fundamentais. A aplicação desse método sempre ocasi­ona ganhos no desenvolvimento do ego, desde que o analisando estabeleça aliança terapêutica e transferência positiva, e que o ana­lista preserve o setting e se faça digno da confiança básica inerente ao processo transferencial – enfim, que seja recriado virtualmente o ambiente afetivo do passado mais distante.

Considerando a profundidade a que se deve chegar para reali­zar essa cirurgia da alma, é evidente que o processo de desenvolvi­mento é lento e longo, devendo realizar-se com a maior freqüência possível. O que parece fora de dúvida aqui, através do estudo obje­tivo da neurociência, é que o método científico da psicanálise é indutor de uma espécie de psicofarmacoterapia natural, endógena e virtual.

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