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Algo sobre as Perversões

 

Introdução a partir do século XIX

                                                     

Transformado, em razão do desenvolvimento das perícias judiciárias ao longo de todo o século XIX, num bem legítimo e inconteste da medicina, ainda que ela tivesse de partilhar seu usufruto com os juízes de instrução e, posteriormente, com os do tribunal, o estudo supostamente científico dos comportamentos comumente tidos por perversos passou a ocupar um lugar discreto, a princípio, e depois um lugar extenso na patologia; uma patologia geral, no começo, e mais tarde, ao que parece, definitivamente psiquiátrica. Ora, se é sabido, além disso, que houve diversas sínteses clássicas, dentre as quais a de Krafft-Ebing é a menos desconhecida, admite-se de bom grado, sem maiores discussões, que a publicação por S. Freud, em 1905, dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade constituiu uma etapa decisiva na própria história da elaboração desse saber. Consi­dera-se, sem dificuldade, que ela rompeu com todas as teorias anteriores ou contemporâneas, através de um corte que ainda não se sabia qualificar de epistemológico nos primórdios do século XX. Aliás, o artigo de 1905 viu-se comumente reconhecido como a expressão primeira de uma doutrina da qual, mais de cem anos depois, continuamos a ser, ao mesmo tempo, legatários e usufrutuários: essa é nossa herança, e basta que nos beneficiemos dela como de uma renda imutável, protegida de qualquer desvalorização, ainda mais que Freud, ao longo de sua obra, variou pouquíssimo no tocante a esse assunto.

 

Desdobramentos semânticos

De acordo com os acontecimentos históricos das perversões, operou­-se certa divisão das condutas sexuais entre lícitas e proibidas; essa distribuição dos comportamentos foi consoante a certa reorganização do vocabulário, e devemos considerar por um momento o campo semântico desses fenômenos, para determinar os principais termos do léxico em questão. A própria palavra perversão só teve um aparecimento tardio na linguagem médica, mas temos de considerar, primeiramente, o que aconteceu com ela na língua co­mum, de um lado, quanto às origens e à evolução de seu sentido, e de outro, quanto à estrutura de sua área semântica.

Em francês, o significante perversion aparece registrado desde 1444; trata-se de um empréstimo do latim clássico perversio, criado a partir de perversum, supino do verbo pervertere, cujo sentido primário era "revirar", "inverter", mas que assumiu muito depressa a acepção de "virada inoportuna"; aliás, desde as primeiras vezes em que foi empregado, o termo perversão comportou uma significa­ção pejorativa, e a metáfora subjacente era de uma reviravolta ruim. Por muito tempo, esse termo prestaria serviços à linguagem corrente, sem nenhum emprego técnico particular, e foi somente em meados do século XIX que veio a pertencer, em partes iguais, ao uso corriqueiro e ao emprego médico. Lemos em Littré: "perversão. Transformação do bem em mal. A perversão dos costumes. Distúr­bio, desarranjo. Há uma perversão do apetite na pica, e da visão na diplopia." Retomemos cada um desses termos, observando que apenas a última acepção foi tomada de empréstimo à medicina. O tema básico aparece claramente: uma mudança do melhor para o pior, uma degradação da qual os costumes fornecem imediatamente o exemplo tradicional, o tempora, o mores… Esse tipo de mudança é esclarecido através de "distúrbio", que alude à alteração de uma função e também a uma clareza que se obscurece, e de "desarranjo", que remete, ao mesmo tempo, a algo inoportuno e à destruição de uma ordem prévia. Por último, aparece a medicina. Note-se, de passagem, que a locução perversões sexuais não faz parte do texto de Littré, e que os campos médicos em causa são inteiramente diferentes. Que vinha a ser essa pica que serviu de exemplo'? A palavra fora cunhada a partir do latim pica, "pega", uma ave com a reputação de caçar qualquer objeto, carregando-o no bico, e desig­nava um estado em que o doente, enfadado com os alimentos habituais, tinha vontade de comer objetos impróprios para o consu­mo; a "perversão do apetite", portanto, era tida como o desarranjo da função alimentar, como sua transformação de bem em mal, que fazia o paciente recusar os objetos naturalmente adequados em prol dos que não o eram. Perversão designava, assim, essa modificação pejorativa de uma função fisiológica. O mesmo se dá no segundo exemplo: a fisiologia normal da visão faz com que, com os dois olhos, veja-se apenas um único objeto; quando a convergência funciona mal, vêem -se dois. Ou seja, para Littré, a palavra perversão pressupunha, na medicina, funções fisiológicas como o apetite ou a visão, e a possibilidade de que elas fossem alteradas.

Entretanto, o vocabulário médico comumente acompanhava o vocabulário cotidiano, ou até se atrasava em relação a ele. No ilustre dicionário Dechambre, enciclopédia da medicina de meados do século XIX, entre os verbetes Pervenche e Pervinca, não encontra­mos nenhum verbete Perversion, e todo o verbete Sexo trata da zoologia comparada e da reprodução, mas não diz uma palavra sobre as anomalias sexuais. Posteriormente, o mesmo compilador, num outro dicionário, que era então um vocabulário, e não mais um tratado em ordem alfabética, redigiria um verbete Perversão: "No sentido médico, perturbação diferente da que resulta do excesso ou da falta. O fato de ser incomodado pelos mínimos odores ou de não sentir nenhum deles não constitui uma perversão do olfato. Ela existe apenas quando há uma sensação de odores que de fato estão ausentes, ou a confusão de um odor com outro. A perversão confun­de-se, em certos aspectos, com a depravação." O esclarecimento é perfeito: o distúrbio não é quantitativo, mas qualitativo, os exemplos fornecidos pertencem aos campos das alucinações ou dos erros e, quando se trata de precisar o distúrbio qualitativo, é uma metáfora moralista, porém genérica, que surge na pena do autor. Quanto ao que é comumente chamado o Littré médico, ele retoma o verbete do grande dicionário, mas com um codicilo etiológico: "perversão. Transformação do bem em mal: há, por exemplo, perversão do apetite na pica, da visão na diplopia etc. … Perversão moral dos instintos, V. Loucura hereditária." Aí encontramos, portanto, a expressão perversão moral, a idéia de que ela concerne aos instintos (no plural), mas, principalmente, de que só se pode tratar de uma variedade de degeneração mental; aliás, perversão moral é calcada em loucura moral, que, na linguagem psiquiátrica de meados do século XIX, traduzia em francês a locução inglesa moral insanity [insanidade moral]; resta dizer que, ao colocar perversão no lugar de loucura, introduziu-se uma certa dúvida quanto ao fato de esses fenômenos dizerem respeito à alienação mental propriamente dita. Finalmente, foi Magnan que impôs o uso habitual do termo perver­sões sexuais, a partir de um título que fornecia três sinônimos: "anomalias, aberrações e perversões sexuais". Depois dele, foi perversões sexuais a expressão que prevaleceu em francês e, a partir dos primórdios do século XX, bastava empregar perversões, sem adjetivo, mas no plural, para falar das singularidades da sexualidade, enquanto uma expressão como perversão do paladar tornou-se de­susada, rebuscada e meio ridícula. Em francês, anomalias sexuais e aberrações sexuais logo desapareceriam do uso corriqueiro em prol de perversões, certamente na medida em que anomalia, registrada na biologia desde 1808, tinha sobretudo o sentido quantitativo de um desvio em relação a uma média, e em que aberração significava, ao mesmo tempo, "afastamento" e "erro". Em inglês, porém, o que prevaleceu foi o termo aberration, cuja referência etimológica é bastante próxima da de delírio: afastar-se da trilha. Em alemão, duas expressões concorreriam entre si. De um lado, sexuellen Abirrungen, aberrações sexuais, termo de que S. Freud se serviria e que com ele se tornaria clássico; mas também, de outro, uma locução totalmente diferente, Anomalien der Geschlechtstrieb, utilizada por Krafft­Ebing e cuja tradução literal seria: "anomalias das pulsões de reprodução da espécie", o que situa antecipadamente o problema em referência à procriação, tomada como norma.

Um último comentário se impõe nessas reflexões lexicológicas. Perversion, em francês, pertence à mesma série de perversité, per­vers, perverti, e não deixa de ter interesse refletir sobre suas relações recíprocas. Examinemos, primeiramente, perversion e perversité: a origem é a mesma, tratando-se de empréstimos dos derivados latinos de pervertere, o primeiro deles registrado, como já dissemos, por volta de 1444, e o segundo, bem antes disso, por volta de 1190; o primeiro era, sobretudo empregado no plural, e o segundo, no singu­lar; perversões designava comportamentos, enquanto perversidade denotava uma disposição permanente do caráter; por fim, as perver­sões eram condutas que se passavam na realidade dos atos de alguém, enquanto a perversidade era uma falha mais ou menos grave que residia num sujeito. As perversões relacionavam-se com o comportamento sexual, ao passo que a perversidade remetia à agres­sividade, bem como à duplicidade cruel e maligna, determinando inexoravelmente o mal em outrem. Perversidade pertencia ao mes­mo campo da mania sem delírio, ao delírio dos atos e, mais tarde, à psicopatia. Nesse aspecto, as perversões apareciam como os sinto­mas manifestados pelo perverso: indagava-se, então, se eram apenas sinais delas mesmas ou indícios de que a perversidade dominava o perverso. E, aliás, podia-se chamar perverso a qualquer um que não atualizasse em seu comportamento nenhuma perversão, mas fosse movido por uma perversidade moral. Já basta o vocabulário para nos comprometer com um problema: é a perversidade que faz o perver­so, ou as perversões? Onde estão o acessório e o essencial?

Por outro lado, perverso versus pervertido: esse par de termos remete à oposição entre o inato e o adquirido (nature/nurture) e, principalmente, a uma interrogação fundamental sobre o caráter contingente ou neces­sário desse tipo de distúrbio.

Essas poucas elaborações anteriores permitem-nos compreender quando e como a psiquiatria começou a se interessar especificamen­te pelas perversões no século XIX. Nas origens, herdeira do Século das Luzes, cuja ideologia lhe permitira tomar o poder, a burguesia, tanto no Império quanto durante a Monarquia de Julho, não fez questão de se ocupar delas, formulou uma legislação que não punia as perversões como tais e só pedia aos médicos para conhecê-­Ias na qualidade de peritos; para ela, a perícia médico-legal devia esclarecer os juízes ou os jurados sobre fatos precisos, à imagem das autópsias judiciais, muito mais do que sobre a significação sexual das condutas do acusado. Compreendemos que, a partir de certo momento, mais ou menos situado em meados do século, os especia­listas interessaram-se por uma coisa diferente e quiseram demonstrar que as singularidades do comportamento sexual, a partir de certo momento, correspondiam a variedades parciais de alienação mental. A partir daí, o discurso médico iria interessar-se pela sexualidade a começar pelas formas comumente consideradas, na época, desvian­tes. Resta dizer que os médicos não corresponderam de modo algum à demanda inicial da sociedade; entretanto, a sociedade deixou-os à vontade e, em essência, aceitou seu discurso.

Ocorre que, na verdade, o liberalismo da sociedade burguesa não resolvia todas as questões que ela se formulava a propósito de sua vida sexual. Durante o século XVIII, em que ela procurou conquistar o poder, mas só o fez muito parcialmente, sua posição havia parecido bem simples. A Igreja romana continuava a ser sua inimiga, e a Igreja romana condenava todas as originalidades em matéria de gozo, vendo nelas menos um excesso de luxúria, aliás, do que uma revolta contra a natureza, filha de Deus, revolta essa muito próxima da heresia e, pelo menos em tese, passível, à semelhança dela, de arder na fogueira; assim, a burguesia ascendente, pela voz e pela pena de seus porta-vozes, só podia reivindicar, contrariando a Igreja, uma grande tolerância para com a variedade dos comportamentos sexuais, e, aliás, julgava que a maioria das anomalias provinha de um desconhecimento das exigências da natureza humana. Voltaire, em seu verbete "Amor socrático", no Dictionnaire philosophique, após indignar-se com o uso da fogueira, terminou por denunciar a hipocrisia da moral religiosa: "a moral cristã, ao ligar a vergonha a ligações entre pessoas livres, ao tornar o casamento indissolúvel, ao perseguir o concubinato com censuras, tornou comum o adultério; como qualquer espécie de volúpia era igualmente pecado, convinha realmente preferir aquela cujas conseqüências não pudessem ser públicas: e, por uma reviravolta singular, vimos verdadeiros crimes se tornarem mais comuns, mais tolerados e menos vergonhosos, na opinião pública, do que simples fraquezas." A posição de Diderot era análoga: através de suas proibições, a religião e, com ela, a sociedade intolerante obrigavam os homens e as mulheres a satisfa­ções vergonhosas e escusas; a liberdade acarretaria a generalização dos gozos sexuais naturais, que ainda podiam ser encontrados no Taiti, onde os preconceitos não imperavam; bastava, pois, deixar as pessoas fazerem amor como quisesse. Para elas, aliás, as anoma­lias continuavam sem importância e o essencial prendia-se a uma volúpia natural.

Essa ideologia, adotada, sobretudo por seu valor anti-religioso, e portanto, político, não deixava de ter algumas falhas: conviria ver nas pretensas anomalias apenas variedades do gosto de cada um, ou conseqüências bastante desculpáveis, apesar de anormais, de certo modo, de proibições abusivas? Por outro lado, a partir do momento em que a liberdade dos costumes comportasse certa violência, ainda seria possível tomá-Ia por uma liberdade legítima? A burgue­sia, herdeira do Século das Luzes, não descobriu nenhuma liberdade, mas, ao contrário, uma abominação total nas obras do marquês de Sade; e, quando os setembristas de 1792 praticaram suas cruelda­des com o corpo decapitado e desnudado da princesa de Lamballe, os efeitos da liberdade dos costumes pareceram inquietantes aos mais liberais.

Em 1830, de qualquer modo, a burguesia liberal havia tomado o poder e, pouco a pouco, teve cada vez menos necessidade da ideo­logia libertária que antes lhe fora tão útil. A religião, em que ela já não acreditava desde longa data, não podia servir-lhe para nada; e a herança do Século das Luzes não a garantia nem contra os perigos, nem contra o fascínio das singularidades mais extremas da vida sexual. Ela precisava de razões para se precaver contra elas, de razões em que pudesse confiar: o discurso médico chegou em boa hora.

O Conhecimento Positivista das Perversões

A medicina, portanto, só começou a se interessar positivamente pelos problemas das perversões aproximadamente em meados do século XIX, e o fez, a princípio, através de um estudo detalhado da homossexualidade, que precedeu as sínteses gerais de Krafft-Ebing e H. Ellis. Essas pesquisas desenvolveram-se, sobretudo nos países de língua germânica e visaram, ao mesmo tempo, a fazer com que se conhecessem melhor os fenômenos em causa e a modificar, num sentido liberal, uma legislação penal que continuava uniformemente repressiva. De fato, não se pode esquecer que se, nos países que haviam conservado, após 1814, o Código Penal de 1810, como os Estados da Itália, Espanha, Holanda e alguns Estados soberanos da Alemanha ocidental, as práticas homossexuais entre maiores de idade que dessem seu consentimento já não tinham mais nada de delituoso, o mesmo não acontecia em outros lugares. Por seu artigo 175, o Código Penal do reino da Prússia punia a sodomia entre homens e, após a proclamação do Império alemão, essa medida foi estendida a todos os Estados que o compunha, inclusive aos que já não puniam a homossexualidade. Na dupla monarquia austro-húnga­ra, a lei punia, além disso, a homossexualidade feminina. Observe-se de passagem que o direito penal prussiano condenava não um aspecto qualquer da homossexualidade masculina, porém precisa­mente o coitum in ano, tanto que a verdade, na maioria das vezes, só era estabelecida pela confissão de um dos parceiros, e os chanta­gistas comumente tiravam proveito disso.

Os primeiros estudos tenderam, pois, opondo-se a essa legislação bárbara, a tomar a homossexualidade conhecida como um fenômeno que nada tinha de monstruoso, mas representava uma variedade rara e talvez doentia de acesso ao gozo, susceptível de eventual tratamen­to e imprecisa, mas, sobretudo digna de respeito e tolerância. As principais obras foram as de Casper, C. H. Ulrichs, C. Westphal e, em especial, A. Moll, precedidas por indicações parciais em Ram­dorm, Meiners, Hessli, Kaan e Schopenhauer, este último conside­rando que a homossexualidade protegia a humanidade da degenera­ção, uma vez que o homossexual não se reproduzia.

Já nesse período, os autores lembravam a freqüência da homos­sexualidade nos grandes homens, dos quais compilavam uma lista variável, mas onde eram sempre encontrados, além de Sócrates, soberanos como Eduardo II e Jaime I da Inglaterra, Henrique III da França, Rodolfo II de Habsburgo e Luís II da Baviera; papas como Paulo lI, Sexto IV e Júlio lI; pintores como Michelangelo e il Sodoma (Ruzzi); e escritores como Shakespeare, Winckelmann, Byron etc. Assim, elaborou-se um grupo de referência que atestava tudo o que a humanidade devia aos homossexuais. Aliás, o primeiro trabalho científico foi a obra de C. H. Ulrichs, um jurista que, já em 1860, inventou o termo uranismo, tomado de empréstimo à locução Afrodite Urânia, que permitira a Platão separar os aspectos divinos (celestiais, ouranios) do amor de seus aspectos vulgares; para Ul­richs, os uranistas, dos quais ele fazia parte, tinham, congênita e irredutivelmente, uma alma de mulher num corpo de homem, e só podiam experimentar desejo e paixão por homens viris: não se tratava de nada patológico, mas de uma disposição singular da natureza, na qual nada se podia modificar. Os uranistas não eram doentes, era ilusório esperar uma mudança no objeto de sua paixão, era atroz impedi-los de serem felizes a sua maneira, e a ciência devia mostrar à sociedade que era preciso aceitá-los como eram, como uma variedade da espécie humana. Ulrichs contrastou o uranismo, natural e moral, com a devassidão e a pederastia; insistiu muito no fato de que os uranistas, almas de mulher em cérebros de homem ou cérebros de mulher em corpos masculinos, desejavam o homem enquanto totalmente masculino, inversamente aos pederastas, que desejavam o adolescente masculino na medida em que este ainda não era viril e comportava traços andróginos. Ulrichs descreveu, assim, um tipo particular de homossexualidade masculina, caracterizou-o por uma singularidade não-patológica da natureza, distinguiu-o de outras formas de homossexualidade e defendeu seu direito à liberda­de. Esse foi o primeiro trabalho completo que, para obter a abolição de uma legislação repressiva – que, aliás, ele não conseguiria fazer com que fosse modificada -, deu uma descrição detalhada de  certo tipo de homossexualidade, afirmou sua origem natural e rejei­tou, ao mesmo tempo, a identificação com o vício e a assimilação à doença: tratava-se de uma maneira específica de gozar, própria de homens moral e socialmente dignos de estima, que não eram devas­sos nem doentes mentais, e já era hora de deixá-Ios viverem a seu gosto. A afirmação do caráter congênito dessa disposição não assu­miu, nessa ocasião, nenhuma significação pejorativa: ela queria dizer que se tratava de um dado da natureza. Ulrichs situou o uranismo fora do campo da patologia, distinguiu-o da doença mental e da devassidão e reclamou seu direito à liberdade, sem repressão penal. Tratava-se de um modo particular de satisfação sexual, deri­vado de um dado natural, expresso pelas metáforas da alma de mulher num cérebro de homem e do cérebro de mulher num corpo de homem, mas, como quer que fosse, relacionado com a natureza, e não oposto a ela. O pensamento positivista seria mais complexo, porém nunca iria mais longe do que isso.

A segunda etapa foi marcada pela obra de WestphaI, que publi­cou, em 1870, um longo artigo sobre o caso de uma jovem que só gostava de mulheres; para caracterizar casos similares, ele criou a locução conträre Sexualempfindung, que pode ser traduzida por sensibilidade sexual inversa, modo de experimentar o sexual de maneira contrária à média. Na totalidade dos casos, a metáfora remetia a uma maneira de sentir o sexual que era oposta ao habitual e, em suma, a uma espécie de agnosia ou daltonismo de tal natureza que a atração concernia às pessoas do mesmo sexo. Westphal, que desempenhou um grande papel nas tentativas que se fizeram de emendar o código penal germânico, multiplicou as observações análogas em mulheres e homens e pode, justificadamente, ser consi­derado uma das primeiras autoridades médicas a realizar um traba­lho global sobre esses problemas. Ele tomava esses casos por con­gênitos: não insistia numa eventual hereditariedade, mas, exatamen­te como Ulrichs, calculava que o sujeito era invertido desde o nascimento e que se devia considerar sua inversão sexual como sua própria natureza; congênito significava natural e queria dizer que, para a ciência, a locução "costumes contrários à natureza" não tinha nenhuma significação. Além disso, essa natureza congênita da inver­são sexual permitia distingui-Ia da devassidão: apoiando-se nos testemunhos sucessivos de Suetônio e Gilles de Rais, muitos autores consideravam as práticas homossexuais como obra de devassos que, cansados de gozar com parceiras do sexo oposto, buscavam novas sensações com pessoas do mesmo sexo, e o exemplo de Oscar Wilde seria comumente interpretado nesse sentido. Para Westphal, os invertidos nada tinham em comum com os devassos, nunca eram atraídos senão por pessoas do mesmo sexo e consideravam a hete­rossexualidade com extrema repugnância. Mais pareciam puritanos do que camaradas folgazões, e o caráter congênito de sua singulari­dade excluía qualquer vício. Certo moralismo homossexual começou então a se desenhar. Os invertidos certamente não eram alienados; a obra de Westphal destruiu definitivamente qualquer explicação extraída das monomanias instintivas e afirmou, na verda­de, que os problemas suscitados pela homossexualidade não se pautavam na existência, aliás excepcional, de atividades homosse­xuais em alguns delirantes: a medicina manicomial nada tinha a dizer sobre isso. Contudo, Westphal encontrou nos invertidos, mui­tas vezes, traços comuns com o que então se entendia como sendo o grupo dos neuróticos, que abarcava, além das síndromes coréicas e da epilepsia, a histeria e a neurastenia: esse parentesco permitiu, portanto, ligar a inversão à medicina, sem assimilá-Ia em nada à alienação mental. Essa postura de Westphal viria a gozar de grande influência e seria reencontrada em múltiplas obras posteriores.

Ela depararia com uma viva oposição, entretanto, em alguns autores um pouco posteriores e, em particular, em Schrenck-Not­zing, na Alemanha, e A. Binet, na França. Juntamente com outros, eles enfatizariam a importância de uma associação muito nítida adquirida na infância, por ocasião de uma emoção muito intensa ou de uma tentativa de sedução por parte de um adulto, e considerariam a inversão como um estado adquirido, fazendo intervir nela uma patogênese próxima da do fetichismo. Assim, Schrenck-­Notzing apregoaria o tratamento através da hipnose, aconselhando a multiplicar as sessões e empregando sugestões sob hipnose. A inver­são afigurava-se a esses autores como resultado das contingências fortuitas da vida psicológica da infância, contingências essas que uma terapêutica psicológica deveria poder corrigir; Schrenck-Not­zing, o mais empenhado na terapêutica, propunha ordenar ao inver­tido, sob o efeito da hipnose, que procurasse uma prostituta e tivesse sucesso num coito heterossexual, graças à obediência pós-hipnótica. Não faltou, aliás, a imaginação pseudo-Iocalizacionista: "podemos conceber a importância de um meio assim na medicina mental. Armazenar nos centros intelectuais secundários associações de idéias de tal ordem que o que parece repulsivo ao sujeito se lhe torne agradável, e vice-versa; – que o que ele não consegue fazer se lhe torne fácil, e, com isso, venha a noção da obrigação de executá-Io; numa palavra, suprimir seu centro superior, substituindo-o pelo do terapeuta; concebemos haver nisso um meio extremamente poderoso de agir sobre um centro e, em particular, sobre o centro sexual"; a suposta eficácia do tratamento o levou a escrever: "o hipnotismo é um meio brutal de poderosa energia. O que equivale a dizer que deve ser empregado com circunspeção e progressivamente. Como no parágrafo precedente, convém repetir: 'Não é o ato normal que convém buscar inicialmente, mas a tendência normal.' "

Depois de Westphal, foi o trabalho de A. Moll, sem dúvida alguma, que representou o estudo mais exaustivo sobre a homosse­xualidade; Moll fundamentou-se numa investigação clínica muito extensa, a partir de sujeitos tratados por ele mesmo e de múltiplos depoimentos indiretos, a qual o levou a considerar os aspectos sociais e, em seguida, os aspectos propriamente sexuais desses casos. Ele assinalou a precocidade desse amor e seu caráter apaixo­nado, amiúde muito vivificante para quem o experimentava, mas também, muitas vezes, trágico. Todas as características das paixões heterossexuais eram nele encontradas, principalmente o ciúme.

O drama provinha de que, em pelo menos um em cada dois casos, o objeto não podia ser outro uranista, mas um homem muito viril e absolutamente heterossexual. Moll interrogou-se sobre a etiologia e, se admitiu a existência de casos autenticamente adquiridos, julgou­-os excepcionais, considerando que a única variedade freqüente era congênita e assinalando, nesses casos, a ocorrência de traços dege­nerativos e de antecedentes hereditários; contudo, ele atribuiu certa importância a causas fortuitas – cenas vistas na infância, oportunidades favoráveis, adestramento, vida reclusa e sem mulhe­res – e deu valor ao desprezo pela mulher em algumas culturas e às tradições que separavam os sexos. Reafirmou a total independên­cia entre a inversão sexual e o hermafroditismo.

Moll rejeitou qualquer explicação periférica: "Mantegazza tam­bém considera como causa da pederastia o desejo que alguns expe­rimentam de sentir seu membro circumclusum no mais alto grau, o que faz com que prefiram o ânus, estreito, à vagina, mais larga. Se assim fosse, esse desejo nos explicaria, ao mesmo tempo, a paedi­catio mulieris, id est immissio membri in anum feminae. O que permanece inexplicável é como pode essa prática dar margem à pederastia viri vel pucri." A explicação tinha de ser central: "já que reconhecemos como insuficiente a teoria que atribui a inversão sexual a uma anomalia nervosa periférica, somos levados a buscar do lado de um processo psíquico uma explicação para a aberração do sentido genital. Como os órgãos genitais propriamente ditos funcionam normalmente nesses casos, é impossível buscar ali a sede da doença. O que fica perturbado na inversão do instinto genital é a ação da mente sobre o sentido genital. Ora, todas as representações mentais que despertam o instinto genital agem como excitantes dos órgãos genitais. No estado normal, o sentido genital do homem é excitado pela representação mental da mulher; no uranista, a excita­ção é provocada pela idéia do homem. Nele, a influência das idéias sobre o pendor sexual encontra-se, portanto, desviada. As­sim, somos levados a situar a sede da inversão sexual no lugar onde as idéias despertam o instinto sexual, isto é, segundo os dados modernos, no sistema nervoso central e, mais particularmente, no cérebro." Aliás, para A. Moll, a sexualidade era uma função fisiológica entre outras, cujo exercício acarretava o máximo de prazer, mas que, na espécie humana, só estava ligada à reprodução por um finalismo teleológico que a ciência não podia corroborar, e que era incapaz de definir as fronteiras da normalidade e da patolo­gia: "em geral, o homem consuma o ato sexual com a mulher, não com o objetivo consciente de ter filhos, mas em prol da satisfação de um pendor a que ele não pode resistir. O uranista não faz nada diferente e, portanto, seu ato sexual não é delituoso." Aliás, não era mais nem menos fisiológico introduzir o pênis na vagina do que em qualquer outro orifício anatômico: "como dissemos, não podemos estabelecer uma relação entre os órgãos genitais do homem e sua inclinação pela mulher senão do ponto de vista teleológico. Caso contrário, não vemos por que razões o homem se sentiria impelido para uma aproximação da mulher, já que a ejaculação do esperma pode ser obtida de qualquer outra maneira." Portanto, cada um se proporcionava o orgasmo como melhor lhe aprouvesse; o juiz só tinha de se intrometer nisso se houvesse violência ou desvio de menores, e o médico, se o interessado assim lhe pedisse. Mesmo considerando a inversão como tendo um certo aspecto patológico, A. Moll não hesitou em levar a investigação positivista até o fim, apesar de escandaloso: a sexualidade correspondia, primeiramente, à pro­dução do orgasmo; os membros da espécie humana chegavam a este de diversas maneiras, e alguns só conseguiam fazê-Io com parceiros de sexo igual ao deles; somente quando sofriam com isso é que o terapeuta devia ocupar-se do assunto, tendo, aliás, pouca probabili­dade de êxito.

Foi assim que os primeiros estudos sobre a inversão sexual, feitos com o intuito de corrigir a legislação penal, acabaram por mostrar a normalidade dos invertidos e admitir que existiam diversas vias para se chegar ao orgasmo, sem que o médico se achasse no direito de fazer outra coisa senão descrever, compreender e, eventualmente, aliviar.

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