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Cronobiologia (Ritmos Biológicos). Ritmopatias em Psicopatologia – parte II

 
Introdução

Já vimos na parte I, que são vários os ritmos biológicos, que valem tanto para os animais como para os vegetais. Os ritmos mais estudados estão relacionados às 24 horas do dia. Halberg em 1959 criou a expressão circadiano. A palavra circadiano provém do latim circa diem, "em torno do dia". Um ritmo circadiano tem a duração de 24h com um desvio – para mais e para menos – de 4h. Portanto, um ritmo circadiano pode corresponder a um intervalo de 20 a 28 horas.

 

Quando há uma alteração horária na relação dia-noite, jet lag das viagens, dar plantões em turno noturno, assim como alterações de fatores sociais, horários de refeições etc., estamos ante uma dessincronização, em que diferentes ritmos previamente sincronizados cursam em períodos diferentes. Quando os ponteiros de nosso relógio biológico estão fora de horário, a isso se chama de ritmopatia.

O nível de atividade flutua ao longo do dia, tendo um pico a determinada hora do dia, em uns casos de manhã cedo, em outros casos para o fim da tarde. Diversos estudos sugerem que os indivíduos noctívagos se adaptam bem aos turnos da noite e mal aos turnos da manhã, enquanto os indivíduos matinais se adaptam bem aos turnos da manhã e mal aos turnos da noite (dormem menos).

Observações cronobiológicas correlatas aos transtornos do humor

Nos estados depressivos os cronobiólogos puderam evidenciar várias modificações circadianas dos sistemas indol (serotonina) e catecolaminérgicos (noradrenalina, adrenalina e dopamina). Sobretudo, as depre­ssões neuróticas e psicóticas foram diferencia­das à base das correlações com os ritmos bioquímicos de certos sistemas adrenérgicos.

Em outro registro endócrino, a atividade córtico-supra-renal apresenta também flutuações temporais cujo interesse psicopatológico deve ser destacado. Assim, o nível sangüíneo de hormônios 17-hidroxiesteróides flutua no homem paralelamente com as variações diurnas da tonalidade afetiva da participação mental. Os hormônios 17-cetosteróides, também intervêm na cronobiologia da emoção e de suas disfunções. Se indivíduos normais (grupo controle) apresentam um máximo de excreção urinária deste hormônio para as doze horas, deprimidos (grupo experimental) apresentam um máximo de excreção no final da fase diurna do nictâmero. Enfim, ao nível temporal dos hormônios do córtex das supra-renais pode-se considerar como valor preditivo na avaliação da tendência ao suicídio dos depri­midos.

Nas síndromes dissociativas e na esquizofrenia, o nível de secreção de hormônios esteróides pode ser anormalmen­te elevado e apresentar flutuações aberrantes ao longo do nictâmero.

Os patterns circadianos dos hormônios 17-hidroxicorticosteróides caracterizam-se nos esquizofrênicos por uma forte diminuição noturna, seguida de um aumento agudo às seis horas.

O papel central de geração das oscilações rítmicas nos mamíferos é determinado pelos núcleos supraquiasmáticos (NSQ) do hipotálamo anterior.

Numerosos trabalhos, a maioria em roedores, demonstram vários aspectos dos mecanismos fisiológicos pelos quais os NSQ funcionam como marcapasso circadiano, sendo evidenciados por uma atividade metabólica e elétrica rítmica mantida tanto " in vitro" como "in vivo".

Foi demonstrado que lesões bilaterais nos NSQ de mamíferos alteram ou eliminam os ritmos circadianos de secreção de vários hormônios como cortisol, aldosterona, GH (Hormônio de Crescimento), LH (Hormônio Luteinizante); bem como ritmos de atividade locomotora e de ingestão de água e alimentos, além do ritmo circadiano de temperatura corporal, atividade sexual e ritmo ultradiano do sono de ondas lentas, que também se relacionam com alterações no ciclo sono-vigília.

Além disso, o transplante de NSQ fetal (entre roedores), para receptores previamente enucleados é capaz de restaurar a ritmicidade circadiana destes, demonstrando, mais uma vez, o papel relevante, mas não único e exclusivo, dos NSQ na temporização dos ritmos biológicos de mamíferos.

Como o ciclo claro-escuro parece ser o principal estímulo ambiental de arrastamento do relógio biológico em mamíferos, supõe-se que existam vias evidentes entre a retina e o NSQ. Esta projeção fótica retiniana, parte de neurônios ganglionares retinianos específicos, juntamente com as fibras do nervo óptico, recebem o nome de trato retinohipotalâmico (TRH), conectando-se com quase toda a extensão do NSQ. Existem evidências indiretas de que o neurotransmissor desta via é o glutamato, agindo em receptores NMDA e AMPA do NSQ.

O mecanismo de funcionamento dos NSQ ainda não é inteiramente conhecido, mas sabe-se que envolve a participação de osciladores autônomos celulares e a interação entre as populações neuronais e gliais. As entradas dos neurônios no NSQ são especializadas para desencadear respostas duradouras intracelulares de acordo com a variação da luminosidade que ocorre por volta do amanhecer e do anoitecer.

As eferências do NSQ voltam-se para outras áreas do hipotálamo, como regiões do núcleo paraventricular ventro e dorsomedial (NPV), hipotálamo posterior, além de projeções para rafe, tálamo, núcleo arqueado e área pré-óptica. Além disso, há evidencias indiretas de um controle do NSQ sobre a adenohipófise, através de uma população de células da eminência mediana contendo dopamina, que são inervadas pelo NSQ. Isto não implica em nenhum efeito direto do NSQ sobre a adenohipófise, mas oferece uma via indireta através dos sistemas neurais hipotalâmicos que podem regular a secreção hormonal hipofisária, particularmente a de prolactina.

Ritmos circadianos das aminas cerebrais

A cartografia cerebral das modificações circa­dianas das aminas biógenas (é uma expressão redundante, mas em pleno uso) foi realizada em 1968. Essas investigações foram efetuadas em gatos, e referiram-se a metabólitos centrais diferentes, tanto da noradrenalina como da serotonina. Esses autores puderam objetivar um ritmo circadiano da noradrenalina ao nível das zonas cerebrais diencefálicas (hipotálamo e tálamo lateral), mesencefálica e metence­fálica. É evidente a presença de um ritmo circadiano autônomo da noradrenalina ao nível da medula espinhal cervical, ainda não explicado.

Havia-se comprovado variações circadia­nas da serotonina ao nível das zonas telencefálicas (córtex visual), diencefálica (hipotálamo) e mesencefálica (núcleo rubro).

Entre as instâncias cerebrais que intervêm na periodicidade circadiana das funções afetivas e com­portamentais, a epífise (glândula pineal) parece ocupar um status fisiológico privilegiado. Sua riqueza em mediadores quími­cos, sua intensa atividade enzimática e sua capacidade intrínseca de receptividade aos fatores do meio am­biente conferem-lhe um papel de primeira magnitude na modulação temporal das inte­grações cerebrais. Se os ritmos neuroquímicos são in­fluenciados pelo fotoperíodo, essas variações desaparecem quando o regime de luz ou de obscuridade permanece cons­tante, ainda que as variações circadianas da seroto­nina manifestem certa independência frente aos sincronizadores fotoperiódicos.

Trabalhos psicofisiológicos similares realizados em roedores confirmam a periodicidade circadiana da atividade química dos neurotransmissores.

Se a serotonina cerebral acusa um pico máximo ao longo do sono, a dopamina apresenta flutuações mais complexas com a existência de três picos máximos no transcurso do nictâmero. A noradrenalina apresenta em suas variações uma bimodalidade circadiana caracterizada por um pico máximo ao princípio e ao final da fase nictameral de des­canso. No plano funcional, as relações de fases entre os picos máximos e os mínimos destas diferentes variações metabólicas são ainda de difícil estabelecimento na me­dida em que a vida bioquímica do tecido cerebral constitui um campo de exploração desafiador.

Certas modificações circadianas da afetividade normal ou patológica teriam correlatos legitimamente tributários do estado metabólico momentâneo, ou dessas diferentes variações dos níveis bioquímicos.

Na prática clínica ante uma depressão típica serotoninérgica, com insônia e inapetência, vale a pena lembrarmos dos ritmos inversos entre os níveis de cortisol e de serotonina. Pela manhã estamos no pico mínimo de serotonina e máximo de cortisol. Para quem já está deprimido, o período da manhã será o mais terrível do dia. Ao longo do dia o nível de cortisol vai diminuindo enquanto que o de serotonina vai aumentando, assim à noite temos o pico máximo de serotonina, e mínimo de cortisol. Vale dizer, que para o deprimido, este será seu melhor período: o da noite. Os deprimidos tentam curtir o máximo possível a noite, pois nesse período voltam, quando a depressão não é muito intensa, os apetites da vida em geral. Vão dormir muito tarde. Tornam-se boêmios. Tentam no dia seguinte acordar bem tarde para eliminar o período da manhã.

Uma boa pergunta para testarmos o tipo neuroquímico correlato de um deprimido é dizer, qual o pior período do dia para você: o da manhã, o da tarde ou o da noite?

Ante um deprimido típico ouviremos que o pior é o da manhã, sem dúvida alguma. Diz que à noite é outra pessoa: faz muitos planos para o dia seguinte. Na manhã seguinte se dá conta que nada conseguirá fazer do que foi projetado. É como se tivesse duas personalidades diferentes: uma à noite, outra pela manhã.

A objetivação da periodicidade circadiana dos fenômenos psicopatológicos  encontra-se, de fato, do­minada pelas investigações sobre a neuroquímica ce­rebral e pelos trabalhos de ordem endocrinológica; a utilização cada vez maior em psiquiatria  de escalas de comportamento e os progressos de tratamento unidos aos procedimentos das neuroimagens funcionais devem permitir uma aproximação mais direta às flutuações tempo­rais da atividade mental.

Contudo, em cronopsicologia quantitativa, o in­vestigador deverá estar prevenido contra o descuido epis­temológico relativo a uma aproximação exclusivamente mecani­cista e comportamental: uma correlação demasiadamente direta entre as integrações psicológicas e os mecanis­mos bioquímicos do tecido cerebral como ao reducionismo dos fenômenos da vida mental a funções estritamente comportamentais.

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