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Psicopatologia das Epilepsias e quadros afins – parte II

(continuação)

Transtorno do humor (psicose afetiva)

As psicoses afetivas dos períodos intercríticos foram estudadas menos extensivamente do que a psicose esquizomorfa, apesar de apresentarem prevalência muito mais elevada. Sintomas ou distúrbios depressivos são mais comuns em pacientes epilépticos do que episódios de mania ou hipomania. Depressão maior consti­tui o distúrbio do humor interictal mais freqüente, tendo sido relatada em cerca de 80% dos pacientes epilépticos. Quando ocorrem episódios graves, as tentativas de suicídio são muito mais freqüentes do que em outros grupos de pacientes deprimidos.

A etiologia da depressão interictal é difícil de se estabelecer, podendo ser diretamente causada pela epilepsia ou se desenvolver como uma reação aos problemas gerados por uma doença crônica. Na maioria dos casos, fatores reativos e endógenos coexistem. Uma série de autores defende que a depressão ocorre como uma reação de ajustamento à natureza crônica e socialmente debilitante da epilepsia. Entre os fatores de contribuição para a depressão reativa, foram apontados impossibilidade de manter uma vida independente, superproteção ou rejeição por parte dos familiares, estigma e ostracismo por parte da sociedade, dificuldade para manter relações interpessoais e profissionais, disfunções cogni­tivas, efeitos colaterais de medicações e medo das crises.

Um estudo comparativo entre psicose afetiva e esquizomorfa em cinqüenta pacientes com epilepsia do lobo temporal, mostrou uma associação significativa entre es­tados maníaco-depressivos e envolvimento do hemisfério direito, o que não foi confirmado em investigações subseqüentes. Foi observado prevalência elevada de sintomas afetivos em pacientes com foco temporal no hemisfério esquerdo, o que é consistente com relatos de associação entre depressão em Acidente Vascular Cerebral em hemisfério esquerdo. Novas investigações estão sendo realizadas para a obtenção de achados consistentes em relação ao papel da lateralidade na etiologia da depressão em pacientes epilépticos.


Demência epiléptica ou "Demência em outras doenças espe­cíficas classificadas em outros locais" (F02.8) da CID-10

Apesar de a maioria dos pacientes adequadamente controlados com monoterapia não apresentar prejuízo das funções cognitivas, uma grande proporção de epilépticos apresenta dificuldades no que diz respeito sobretudo a atenção, concentração e memória verbal. Em algumas situações, o distúrbio demencial mostra-se grave o suficiente para interferir de maneira dramática sobre a vida profissional ou escolar, relações familiares e outros aspectos do cotidiano.

Uma série de estudos comprovaram que a institucionalização representa o mais importante fator de risco para o declínio inte­lectual em pacientes epilépticos. Entre os outros fatores relacio­nados com déficit intelectivo e mnêmico, foram apontados crises tônico-clônicas generalizadas, episódios de crises repetidas de grande mal ou de status epilepticus, idade de início precoce e freqüência elevada de crises. Descargas epileptiformes subclínicas recorrentes (interictais), particularmente difusas e bilaterais, tam­bém foram consideradas fatores de risco.

Alguns autores encontraram associação significativa entre pre­juízo da memória verbal e foco epiléptico em lobo temporal esquerdo, e outros entre déficit mnêmico visual não verbal e foco temporal em hemisfério direito. Há evidências de que anomia e outras disfunções na fala respondem pela maior parte das perdas na memória verbal em pacientes com foco temporal em hemisfério dominante. Em pacientes com crises originadas no lobo temporal direito, encontrou-se ruptura no processamento das características prosódicas da fala, o que, em parte, contribuiu para os problemas de relacionamento interpessoal.

A maioria das investigações que evidenciaram disfunções cognitivas examinaram pacientes com epilepsia refratária a tra­tamento, em centros de atendimento terciários, ou seja, aqueles com maior prevalência de fatores de risco. De fato, pacientes com epilepsia bem controlada com monoterapia mostraram pre­juízos muito discretos nas funções cognitivas.


Problemas secundários ao uso das Drogas Anti-Epilépticas (DAE)

Dentre os medicamentos, o mais criticado em relação a pro­blemas mentais é o fenobarbital, apesar de outros também terem este tipo de participação. O fenobarbital sofre particularmente grande rejeição da literatura anglo-saxã em função dos seus efeitos embotadores mentais. No entanto, há de se ressaltar o seu baixo custo e alta efetividade para o controle de vários tipos de CE.

A avaliação dos efeitos das DAE sobre as funções cognitivas e comportamentais permitiu concluir que, de fato, o fenobarbital e os benzodiazepínicos provocam efeitos mais deletérios do que as outras drogas. Há controvérsias no que diz respeito ao grau de responsabilidade da fenitoína, da carbamazepina e do valproato sobre incapacidades cognitivas. Todos os estudos que compararam os efeitos da monoterapia com os da politerapia demonstraram que esta produz grau muito maior de incapacidade do que aquela.


A angústia entrecrises (intercríticos): fatores psicodinâmicos

O medo e a ansiedade são as manifestações afetivas mais comuns tanto como manifestação espontânea como expressão de crise parcial simples. Há também aumento generalizado de ansiedade e desordens do pânico entre os epilépticos.

A espera ansiosa de uma nova CE pode produzir intensos sintomas fóbicos nos quais a angústia está ligada a uma repre­sentação mental dificilmente definida pelo paciente. É uma an­gústia descrita muitas vezes como "estado de aflição".

A passagem do "estado de aflição" para a angústia psíquica é uma aquisição onde se observa um aumento significativo da tensão física. O dilema da angústia epiléptica, angústia-tensão física e da angústia-sinal de alarme a serviço do ego colocam um difícil problema para a criança. Incapaz de avaliar uma situação de perigo externo antes de ter passado pela experiência dolorosa da primeira crise, a criança epiléptica vive um momento de fobia intensa, desencadeada a partir de associações e repre­sentações psíquicas frágeis, lançando-a em um estado de "catástrofe" interior, próxima àquela que experimentou em seu nascimento, onde somente existiam regulações imaturas.

Na adolescência, esta angústia surge quando o paciente perde a possibilidade de estabelecer a diferença entre o que ele fantasia em relação à crise e o que na realidade ela é. A desconexão entre o que ele imagina da crise e o que ela é na sua realidade corporal reatualiza as fobias e medos infantis, produzindo uma sensação de algo ao mesmo tempo estranho e familiar.

Uma outra angústia surge no período ictal. É uma intensa angústia moral associada à vergonha que o epiléptico sente por ter rompido com um comportamento social padrão. As normas sociais que são internalizadas na infância parecem desabar junto com a crise. A terrível angústia de estar exposto socialmente, na rua, no chão, onde o seu corpo sem o seu controle exibiu o segredo de seu "mal". O paciente é tomado por intenso pânico e novamente fobias intensas, seguidas de profunda depressão.

O período entre crises é sentido como angústia de morte acrescida de uma ausência (amnésia) e perda momentânea da realidade. A semelhança desse quadro com os sintomas psicóticos cria para o profissional que o assiste um difícil problema diag­nóstico, pois efetivamente o epiléptico vive um momento de disruptura com a realidade psíquica e social, se aproximando de um quadro psicótico.

A angústia de morte entrecrises remete o epiléptico ao problema da perda do amor por si, vivida como um ataque pulsional interno. Sente-se culpado por não controlar seu corpo e teme que uma lei maior, uma lei auto-sancionante, lhe imponha a perda do amor do outro. O paciente sente-se punido por estar (imaginariamente) "possuído por algo ruim", ser punido por um pecado que não sabe se cometeu, punido exatamente no corpo como representante-sede do pecado.

O sentimento de culpa que pode ocorrer no epiléptico decorre, possivelmente, pela culpa por um delito que ele não cometeu. O período entre crises é o momento em que parece renunciar a todo prazer, expresso em renúncia sexual, onde se sente impotente e deprimido.

Ao mesmo tempo que a angústia do epiléptico está relacionada ao perigo, ao medo do desconhecido da nova crise, existe também uma relação estreita com a neurose. A angústia psíquica pode precipitar uma CE assim como simulá-Ia, uma vez que a reação psíquica frente à angústia da crise pode consistir em liquidar pelas vias somáticas a excitação que não encontra um objetivo psíquico.

A diferença entre a angústia real e a angústia neurótica do epiléptico que simula crises convulsivas é muitas vezes de difícil percepção. A angústia interictal pode ser representada por uma simples reação de preocupação podendo atingir níveis muito altos.

O quadro depressivo, originário desta angústia, é uma reação frente ao perigo, frente ao desconhecido, a surpresa do momento seguinte, que antecipa a nova crise, vivida como um novo "ataque de morte". Estes processos psíquicos devem ser incluídos no conhecimento do clínico, que deve estar sempre atento à impor­tância de o epiléptico ser encaminhado para acompanhamento e tratamento psicológico.


Crises não epilépticas

As pseudocrises, mais recentemente chamadas de crises não epilépticas psicogênicas (CNEP), não são incomuns. O clínico deve estar sempre atento a discriminá-Ias das verdadeiras crises, apesar de às vezes isto poder ser muito difícil. No entanto, ele precisa reconhecer que crises orgânicas que não epilépticas tam­bém podem gerar incontinência esfincteriana, ferimentos, con­trações e perda de consciência. Também, crises de natureza emocional podem simular as epilepsias ao se apresentarem com alteração da percepção da realidade, espasmos carpopodálicos e inconsciência. Alguns indivíduos podem sofrer queda, se manter de olhos fechados com o típico tremor palpebral. Outros têm acessos de raiva com grande expressão motora, que é exacerbada à medida que se tenta uma contenção. Existem também aqueles que têm crises muitas vezes já em posição confortável, quando então prendem o fôlego, arqueiam o corpo, se debatem e somam autoflagelação. Freqüentemente, nestes casos de natu­reza emocional, é possível caracterizar um fator precipitante da crise, que pode ser uma dificuldade interpessoal, recordações desagradáveis tendo como base uma personalidade imatura.

Caracterizada a origem emocional das crises do paciente, isto deve ser sugerido a ele de forma gradual e gentil, sem conotação pejorativa ou de reprovação. Tanto ele quanto a sua família devem colaborar no tratamento, evitando assim a ansiedade por seus conflitos e a precipitação de novas crises.

Além disso, constatou-se que CNEP não tratadas adequada­mente levam a prejuízos graves da adaptação social, o que torna fundamental o diagnóstico precoce, bem como o reco­nhecimento dos conflitos que as crises estão sinalizando. Desta forma, é possível a tentativa de evitar que as crises se tornem cronicamente integradas à forma de o paciente reagir a uma série de estresses.

Enquanto que se percebe escassez de publicações compro­metidas com a comparação entre crises psicogênicas e crises epilépticas parciais complexas, uma série de autores esforçaram-se para definir critérios clínicos para o diagnóstico diferencial entre crises convulsivas generalizadas (tônico-clônicas generalizadas) e CNEP. Uma vez que as CNEP ocorrem mais comumente em pacientes que apresentam ou apresentaram CE genuínas, a função do clínico não deve ficar restrita a determinar se o paciente tem epilepsia ou convulsões de caráter conversivo, e sim evidenciar em que proporção os ataques verdadeiramente epilépticos estão presentes.

As CNEP do tipo tônico-clônico generalizado manifestam-se tipicamente com rigidez da musculatura do tronco, algum grau de opistótono, raramente com postura do tipo "arco de círculo", e atividade motora generalizada. A característica mais surpreen­dente das crises convulsivas psicogênicas consiste em movimentos de caráter intencional de extremidades, caracterizados por abalos assincrônicos dos braços e das pernas, quase sempre do tipo "debater-se", "agitar-se", seguindo um padrão "fora de fase".

Fases tônicas e clônicas alternam-se em intervalos não pre­visíveis. A fase clônica carece da seqüência típica de contração abrupta e relaxamento de grupos musculares das extremidades. Durante esta fase, a cabeça ou o tronco movem-se de um lado para outro, geralmente de maneira violenta. Movimentos pélvicos para frente e para trás foram classicamente associados à CNEP. Os movimentos convulsivos podem ser intensificados quando se impõe alguma contenção, e o paciente parece "lutar" para se livrar, o que contrasta com as convulsões tônico-clônicas de caráter estereotipado do grande mal epiléptico.

A expressão facial durante uma CE caracteriza-se por trismo na fase tônica e contrações simétricas na fase clônica, enquanto que, na pseudo-epiléptica, geralmente exterioriza uma variedade de emoções, como, por exemplo, êxtase e pavor. A vocalização em uma crise de grande mal epiléptica usualmente é descrita como um grito estridente que ocorre no início da fase tônica. Na CNEP, vocalizações consistem principalmente em gemidos, grunhidos, choro e, em algumas ocasiões, frases compreensíveis com temas vulgares ou obscenos.

A maioria dos autores defende que não há perda genuína da consciência durante uma CNEP. O nível de consciência pode flutuar durante o ataque, o que permite ao paciente se recordar de alguns ou de todos os eventos ictais. Pode-se evidenciar preservação de resposta a estímulos ambientais através da retenção dos reflexos corneanos, resistência ativa às tentativas externas de abertura dos olhos, manutenção da resposta a estímulos dolorosos, mudança de posição para evitar desconforto e desvio dos globos oculares em direção ao soIo.

A cianose é um sinal extremamente raro durante a CNEP. A resposta plantar em extensão imediatamente após a CE tônico­-clônica generalizada não ocorre na crise "histérica". A mordedura da língua nesse último é rara, porém, quando ocorre, as lacerações tendem a ser mínimas, envolvendo a ponta, e não os lados, e também os lábios. Incontinência urinária não tem utilidade para o diagnóstico diferencial, já que pode estar ausente na CE e presente na CNEP.

A presença ou ausência de aura e o seu padrão não fornecem informações úteis para o diagnóstico diferencial. Fenômenos sub­jetivos anunciam a CNEP em poucos casos. As manifestações mais específicas constituem palpitações, mal-estar, sufocação, vertigens, parestesia da face ou extremidades, dores, alucinações ou ilusões visuais ou auditivas. Dores no corpo ou extremidades são manifestações muito raras de aura epiléptica. Por outro lado, queixas prodrômicas de cefaléia são muito freqüentes nas CNEP. Auras que contêm grande número de sintomas somáticos e visuais e que variam de crise para crise sugerem pseudo-epilepsia.

Apesar de um número elevado de CNEP ter início abrupto, aparecimento e término graduais favorecem este diagnóstico. CE genuínas usualmente têm duração de menos de quatro minutos, e o período pós-ictal se caracteriza por sono ou confusão mental. Há autores que afirmam que uma CE de grande mal raramente tem duração de mais de dois minutos, enquanto que crises não epilépticas podem-se prolongar por horas. Apesar disso, alguns autores observaram duração semelhante para os dois tipos de ataque.

A recorrência de CE várias vezes durante o dia é extremamente rara, só ocorrendo no status epilepticus. Portanto, ataques de CE freqüentes apesar de evidência de adesão ao tratamento, doses adequadas e níveis séricos ideais de DAE devem levantar a suspeita de CNEP.

Costuma-se afirmar que a precipitação das crises por estresses emocionais é um indicativo importante de CNEP. Sabe-se, no entanto, que alterações afetivas, principalmente ansiedade e de­pressão, provocam CE mais freqüentemente do que as não epi­lépticas, como no caso da chamada "epilepsia reflexa afetiva" ou epilepsia psicogênica. CNEP em geral ocorrem na presença de outras pessoas, especialmente aquelas com quem o paciente possui vínculos mais estreitos, mas há exceções. Além disso, nunca foram relatadas durante o sono, ao contrário das CE ge­nuínas.

Estudos recentes confirmaram, através de testes neuropsico­lógicos e técnicas de neuroimagem, a existência de patologia cerebral orgânica em pacientes com crises comprovadamente CNEP. Isso sugere que a presença de patologia cerebral não distingue pacientes epilépticos de pacientes que apresentam so­mente CNEP, e que a existência de doença cerebral de fato predispõe à ocorrência de crises de origem não epiléptica.

Estudos recentes avaliaram a sensibilidade e a especificidade da utilização de técnicas de sugestão para o diagnóstico de CNEP. Foi constatado que a indução por sugestão mostrou-se um teste com sensibilidade de 77,4% e especificidade de 100% para o diagnóstico de crises psicogê­nicas. Diferentes métodos de indução têm sido usados, entre eles infusão de solução salina, hiperventilação, foto-estimulação, obs­trução das vias aéreas e hipnose.

A infusão salina tem sido considerada eficaz e segura, e representa o procedimento mais freqüentemente utilizado para provocar crises psicogênicas. A utilização de um pedaço de pano embebido com álcool colocado sobre o pescoço mostrou-se um método bastante eficaz. Outro estudo mostrou que dois de vinte pacientes epilépticos apresentaram CE quando submetidos à sugestão, e outros três apresentaram eventos não epilépticos, o que demons­trou que se deve ter muito cuidado ao confiar nos efeitos da sugestão isoladamente para o diagnóstico diferencial.

O caráter paroxístico das CE e pseudo-epilépticas implica que o traçado eletroencefalográfico, instrumento mais eficaz para o diagnóstico diferencial, seja obtido, na esmagadora maioria das vezes, no período intercrítico. A ausência de anormalidades ele­troencefalográficas não confirma que as crises sejam de origem psicogênica e também não descarta origem epiléptica. É sabido que, pelo menos, 25% dos pacientes epilépticos não apresentam atividade epileptiforme no EEG interictal, nem mesmo após a realização de múltiplos registros e com o auxílio de métodos de ativação.

Ao contrário, um EEG interictal revelando atividade epilep­tiforme pode ser usado como evidência de que o paciente possui CE. Apesar da constatação de que descargas epileptiformes podem ocorrer em cerca de 2% da população normal, estas são bastante sugestivas da presença de CE em pacientes com história com­patível. É digno de nota que cerca de 25% dos pacientes com CNEP também possuem crises genuínas, portanto atividade epi­leptiforme interictal não prova que todas as crises sejam epilép­ticas. Outro recurso diagnóstico é o da dosagem de prolactina pós-crise. No entanto, os níveis de prolactina podem gerar resultados falso-positivos quanto falso-negativos. Recurso de valor inegável no discrime diagnóstico é o da colaboração de especialista conhecedor de vários tipos de crises.

Foi demonstrado que CNEP respondem por 5 a 40% dos pacientes considerados portadores de distúrbio epiléptico refra­tário a drogas anti-epilépticas. É muito comum esse tipo de paciente receber tratamento inadequado com doses tóxicas de uma ampla variedade de drogas anti-epilépticas, levando, em muitos casos, a episódios de iatrogenia, tais como parada car­diorrespiratória e hipotensão grave.

Nos últimos anos, surgiram métodos que tornaram viável a realização de registros eletroencefalográficos durante a crise, entre os quais o EEG prolongado com monitoração simultânea com vídeo, também chamado de vídeo-EEG. Esta técnica propiciou o reconhecimento da alta prevalência e da ampla variedade de manifestações das CNEP e mostrou-se eficaz para o diagnóstico de CNEP em pacientes supostamente portadores de crises ex­clusivamente epilépticas. Além disso, demonstrou a ocorrência de CE genuínas em pacientes com manifestações clínicas atípicas, consideradas inicialmente de origem "histérica".

Os resultados de uma série de investigações com vídeo-EEG permitiram a conclusão de que os critérios clínicos tradicional­mente utilizados para o diagnóstico diferencial entre crises convul­sivas epilépticas e pseudo-epilépticas possuem baixa especifici­dade. Uma série de casos de pseudocrises manifestaram-se com incontinência urinária, lesões corporais, mordedura de língua, grito inicial idêntico ao relatado na CE de grande mal (tônico-clônica) e, até mesmo, dilatação pupilar (midríase), cianose e resposta plantar em extensão. Graus impressionantes de auto-injúria foram relatados em pa­cientes com pseudo-status epilepticus, levando a fraturas graves e necessidade de intubação.

Crises parciais complexas com origem no lobo frontal foram descritas com características clínicas bastante similares às das CNEP, sendo de curta duração, ocorrendo várias crises por dia em grupos, com início e término abruptos e sem confusão e letargia pós-ictais. As manifestações geralmente são de caráter bizarro, com atividade motora proeminente, posturas peculiares e automatismos com conteúdo sexual. O EEG pode estar normal ou evidenciar alterações inespecíficas durante a crise, o que dificulta ainda mais o diagnóstico diferencial. Descargas epilep­tiformes com origem na área motora suplementar correlaciona­ram-se com vocalização e preservação da clareza da consciência durante movimentos convulsivos bilaterais.

O emprego do vídeo-EEG permitiu também a constatação de que CE genuínas e CNEP coexistem em uma proporção muito maior do que a esperada pela casualidade, o que fala a favor da existência de relações etiológicas entre epilepsia genuína e crises psicogênicas. Já foi relatado uma taxa de comorbidade entre epilepsia e CNEP de 42%. Outros estudos registraram taxas de comorbidade variando entre 12% e 24%. Estes resultados levaram à conclusão de que a dúvida em relação a um paciente apresentar crises de natureza epiléptica ou histérica é simplista diante de relações mais com­plexas.

Avaliaram-se episódios ictais através de vídeo-EEG com o objetivo de identificar fatores de risco para a ocorrência de crises psicogênicas. Os autores confirmaram correlação significativa entre CNEP e sexo feminino, sugerida em uma série de estudos anteriores. História de abuso sexual na infância ou adolescência também representou fator de risco para distúrbios conversivos.

Pacientes com CNEP e outros sintomas conversivos possuem freqüentemente outras características, entre elas história familiar de distúrbio psiquiátrico, diagnóstico de transtorno de persona­lidade ou traços alterados de personalidade, não necessariamente do tipo histriônico, diagnóstico de distúrbio do humor e tentativas de suicídio. Outro fator freqüentemente associado à conversão consiste na manutenção de uma situação de ganho secundário promovido pela doença.

Algumas teorias foram formuladas para explicar a ocorrência de CNEP, tanto em pacientes epilépticos, quanto em não epilép­ticos. Sugeriu-se que episódios prévios de perda ou alteração da consciência vivenciados pessoalmente ou observados em membros da família ou no ambiente de trabalho fornecem um modelo para a escolha de comportamento de ganho secundário na forma de pseudoconvulsão. Pessoas com epilepsia estão predispostas a desenvolver mecanismos conversivos para lidar com situações de estresse.

O emprego de técnicas modernas de registro da atividade elétrica cerebral vem permitindo resgatar este tipo de discussão e levantar novas questões acerca das relações etiológicas com­plexas entre epilepsia e histeria. O vídeo-EEG, por exemplo, colocou em evidência a baixa validade dos critérios clínicos acima enunciados, que durante tantos anos auxiliaram ao diag­nóstico diferencial entre crises convulsivas epilépticas e "histé­ricas". Além disso, a constatação de que a ocorrência de CE e de patologia cerebral orgânica predispõem ao surgimento de CNEP mostrou que ainda não estão completamente elucidados todos os mecanismos responsáveis pelas síndromes conversivas.

Nota: Sugiro a leitura de meu artigo sobre Histeroepilepsia.

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