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Neuropsicopatologia da AIDS – parte I

Introdução

Este artigo fornece um sumário do espectro de doenças neuropsíquicas associadas com a síndrome de imunodeficiência adquirida (AIDS) e seu agente etiológico, o vírus da imunodeficiên­cia humana (HIV). Os déficits neuropsíquicos podem ser primários (causados diretamente pelo HIV), secundários (como quando a imunodefici­ência leva a infecções oportunísticas ou tumores, sistemicamente ou no interior do Sistema Nervoso Cen­tral [SNC]) ou iatrogênicas (resultantes do trata­mento do HIV ou suas seqüelas). Para mostrar a evolução da doença e seus comprometimentos foi feita uma metanálise de casos de pacientes hipersensíveis aos coquetéis terapêuticos.

Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV)

Epidemiologia

O HIV vem se difundindo no mundo desde os anos 70. O vírus, transportado pelo sangue, é transmitido através do contato sexual desprotegido, da utilização de agulhas ou outra parafernália para drogas com sangue contamina­do, da recepção de transfusão de sangue ou he­moderivados contaminados, ou pela infecção intra-uterina. O curso da infecção pelo HIV é ex­tremamente variável, mas é geralmente crônico, com uma duração média de cerca de 10 anos en­tre a inoculação e o desenvolvimento dos sinto­mas físicos. A maioria dos adultos com AIDS são homens homossexuais ou bissexuais (62%), mas a porcen­tagem dos usuários de drogas intravenosas infec­tados continua a aumentar. Também continua crescendo a porcentagem de mulheres e heterossexuais e o número de crianças com AIDS. A AIDS é a prin­cipal causa de morte entre os usuários de drogas intravenosas e pacientes hemofílicos.


Efeitos neuropsíquicos

O HIV ataca o SNC, bem como o sistema imunológico. A AIDS, sendo uma síndrome e não uma doença distinta envolve alterações mentais complexas, multietio­lógicas, resultantes tanto do próprio HIV e do hospedeiro, como dos estados de doença secun­dária que desencadeia.

Acredita-se que o HIV inva­de o cérebro logo após a infecção sistêmica, quan­do macrófagos portadores do HIV atravessam a barreira hematoencefálica. A liberação do vírus dentro do SNC causa uma meningoencefalite agu­da ou subclínica. Pacientes recém-infectados, não estando ainda comprometidos imunologicamen­te pela destruição crônica dos linfócitos T4, geral­mente podem conter esta infecção inicial. À medida que a imunocompetência diminui, atra­vés dos meses ou anos, a reprodução do vírus no SNC escapa ao controle das defesas imunitárias. Pode ocorrer leucoencefalopatia multifocal. Linha­gens diferentes do HIV e co-fatores constitucio­nais e ambientais podem explicar diferenças na patologia do SNC.


Histopatologia

O HIV afeta as áreas subcorticais de forma mais proeminente, incluindo a substância branca central e as estruturas cinzentas profundas como os gânglios da base, tálamo e o tronco cerebral. O córtex cerebral é relativamente poupado: daí o termo demência subcortical. A palidez da substân­cia branca pode ser acompanhada por reação as­trocítica e atrofia marcante, ou pode haver poucas alterações inflamatórias e pouca palidez.

Quando existe encefalite, encontram-se infil­trados reativos de células multinucleadas, macró­fagos espumosos parenquimatosos e perivascula­res, linfócitos e micróglia. Os oligodendrócitos e neurônios, em geral, são preservados. A lise neu­ronal mínima sugere que a neurotoxicidade se origina da resposta auto-imune, da sinergia do HIV com outros patógenos, ou da liberação de substâncias tóxicas dos próprios genes virais ou de células infectadas adjacentes. O envolvimento da medula espinhal, geralmente, consiste em "mielopatia vacuolar", devido à tumefação das bainhas de mielina.

Diagnóstico diferencial neuropsíquico

Transtornos Correlatos Órgano-Mentais (TCOM) ocor­rem freqüentemente entre pacientes hospitaliza­dos com AIDS; podem ocorrer na ausência de sintomatologia sistêmica e podem imitar doenças mentais funcionais. Os psicoclínicos devem considerar o espectro de doenças do HIV no diagnóstico di­ferencial de pacientes com situações e/ou comportamentos de alto risco e em casos de manifestações atípicas.


Comprometimento Neuropsicológico primário pelo HIV

Estadiamento do HIV

Vários investigadores estão pesquisando o comprometimento neuropsicológico precoce en­tre diversos grupos de adultos soropositivos para HIV que ainda não desenvolveram outros sinto­mas relacionados à AIDS. A maioria dos estudos utilizam o sistema de estadiamento para a infec­ção pelo HIV, desenvolvido pelo Centro para Controle de Doenças (CCD) dos USA.

A classificação do CCD desconsidera o "com­plexo relacionado com a AIDS" e a "pré-AIDS", termos clínicos imprecisos que podem correspon­der aos estágios III, IV-A, ou infecções oportunís­ticas leves, atualmente classificadas sob o estágio IV-C2. O estadiamento do CCD não descreve o prognóstico ou a severidade. Alguns pacientes nos estágios I a IV-A deterioram-se rapidamente. Em contraste, pacientes com "AIDS franca" (estágios IV-B a IV-E) podem ter sarcoma de Kaposi relati­vamente leve ou ter se recuperado há muito tem­po de uma infecção oportunística, e podem viver anos com debilidade física mínima. A longevida­de e a cronicidade da síndrome aumentaram des­de o advento das intervenções terapêuticas iniciais e a quimioprofilaxia, com medicamentos de ma­nutenção como a zidovudina (AZT) e a pentami­dina, compondo os salvadores coquetéis.

Estadiamento para a infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) dos Centros de Controle de Doenças (CCD)


estágio I

Infecção aguda pelo HIV:

Assintomática

Síndrome viral

Meningoencefalite


estágio II

Infecção latente


estágio III

Linfadenopatia crônica


estágio IV-A

Sintomas constitucionais:

Perda de peso

Febre

Diarréia crônica


estágio IV-B

Psiconeuropatologia induzida pelo HIV:

Demência

Mielopatia

Neuropatia periférica


estágio IV-C

Infecções oportunísticas:


estágio IV-C1

Doenças infecciosas secundárias, inclusive pneumonia por Pneumocystis carinii, toxoplas­mose e criptococcose


estágio IV-C2

Outras doenças infecciosas secundárias, inclu­sive leucoplaquia oral cabeluda, Herpes zoster multidermatômico, tuberculose e candidíase oral ("sapinho")


estágio IV-D

Tumores associados ao HIV


estágio IV-E

Outras condições, incluindo pneumonia inters­ticial linfóide crônica


Comprometimento neuropsicológico e o diagnóstico clínico

O DSM-III-R define os TCOM como, transtornos devido (correlato) a uma disfunção cerebral específica e conhecida, como distinção de transtornos que são reações a fatores psicológicos ou sociais (por exemplo, trans­tornos do ajustamento) e aqueles em que um fator orgânico específico ainda não foi claramente estabelecido (por exemplo, esquizofrenia). As eti­ologias orgânicas podem ser múltiplas em um indivíduo, com manifestações variando da demên­cia, delirium, ilusões e alucinações a alterações su­tis, mas clinicamente significativas no funciona­mento cognitivo, humor, personalidade e contro­le de impulsos.

O comprometimento neuropsicológico é um resultado de teste, e não um diagnóstico. "Com­prometimento" significa que os escores são anor­mais (presumindo-se que existam dados norma­tivos) ou caem abaixo do ponto de corte (habitu­almente dois desvios padrão abaixo da média da amostra), mas os resultados de testes neuropsico­lógicos não são específicos de doenças. Em geral, quanto mais sensível é o teste, mais carece de es­pecificidade. A relação entre o comprometimento neuropsicológico, o TCOM e a função social e vo­cacional permanece obscura nos indivíduos soro­positivos para o HIV. As baterias de testes podem verificar comprometi­mento neuropsicológico em pacientes que não satisfazem os critérios para o TCOM do DSM-III-R; de modo inverso, o TCOM pode coexistir com um exame neuropsicológico normal.


O complexo da demência relacionada à AIDS

A relação entre o complexo de demência da AIDS e o TCOM, de acordo com o DSM-III-R, tam­bém merece exame. Os neurologistas inventaram o primeiro termo para descrever os pacientes in­ternados com AIDS cuja perda das funções men­tais e motoras não era imputável a tumores, infecções oportunistas do SNC ou doença sistê­mica. A população estudada, originalmente, tinha sintomas neurológicos avan­çados, incluindo déficits intelectuais significativos – daí a "demência" – bem como um "comple­xo" de manifestações motoras e comportamentais, incluindo dificuldade de marcha e coordenação, agitação e alucinações. O estudo de uma gama mais ampla de pacientes em estágios diferentes da infecção pelo HIV indica que os pacientes po­dem ter alterações do estado mental relacionadas ao HIV antes de desenvolver a AIDS. As altera­ções cognitivas e comportamentais precoces não tendem a envolver predominantemente as fun­ções corticais superiores e por isso não são carac­terísticas de "demência". A tríade "complexa" de comprometimento cognitivo, motor e comporta­mental não está invariavelmente presente.


Estudos do comprometimento neuropsicológico primário

Várias evidências correlatas sugeriram que as alterações mentais orgânicas, pelo menos ocasio­nalmente, precediam os sintomas e sinais físicos da infecção pelo HIV. Relatos de casos indicavam que alguns adultos soro­positivos para o HIV, que ainda não tinham de­senvolvido a AIDS, experimentavam lentificação mental subjetiva, esquecimento, apatia, letargia, reclusão social, evitação de tarefas complexas e alterações da personalidade. Embora estes sinto­mas, inicialmente, parecessem "funcionais", a avaliação clínica completa sugeriu uma "demên­cia subcortical". Ou­tros pacientes soropositivos para o HIV inicial­mente se apresentaram com psicoses agudas, delirium, amnésia, depressão ou mania.

Encontrou-se o HIV no líquor de homens homossexuais assintomáticos com 6-24 meses de soropositividade conhecida. A presença precoce do HIV, a pleocitose e a proteí­na elevada no LCR, bem como o isolamento do HIV do tecido nervoso, su­geriram que o HIV podia afetar o SNC, antes de quaisquer manifestações físicas da doença. Antí­genos e imunoglobulinas específicas para o HIV também foram descobertos no líquor, tanto de pacientes infectados sintomáticos como assinto­máticos.

Anormalidades cerebrais ocorreram na tomo­grafia computadorizada (TC), ressonância mag­nética (RM) e no eletroencefalograma (EEG) de pacientes com AIDS e com o complexo relaciona­do à AIDS, na ausência de infecções oportunísti­cas e tumores do SNC. As imagens por TC mostraram marcante atrofia e ventrículos aumen­tados e a RM mostrou lesões parenquimatosas dispersas e calcificação e o EEG mostrou ritmos alfa lentos e ondas teta difusas. Os estudos neuropatológicos descreveram envolvimento sub­cortical consistente com alterações não-cognitivas sutis, que poderiam explicar os sintomas vagos, aparentemente psicológicos, na ausência de com­prometimento intelectual (cortical).

No início dos anos 2000, de 31 estudos publicados ou apresentados em simpósios acadêmicos, 18 relataram comprome­timento neuropsicológico, antes do início da AIDS sistêmica, mas 13 não encontraram um compro­metimento precoce significativo. Esses estudos, contudo, variaram amplamente no tamanho do recrutamento, seleção das amostras, desenho, extensão dos testes neuropsicológicos, análise de dados e interpretação dos resultados. Os estudos maiores até o presente derivam do estudo multicêntrico de coortes da AIDS (Multi­center AIDS cohort Study) de homens homosse­xuais e bissexuais. Foram adminis­trados uma bateria neuropsicológica a 838 sujei­tos nos estágios II e III da CCD e em 767 sujeitos soronegativos. Nenhuma diferença significativa foi encontrada entre os dois grupos.

Em contraste, estudos utilizando conjuntos de testes neuropsicológicos mais exaustivos, em amostras geralmente menores de pacientes, en­contraram sujeitos soropositivos para HIV nos estágios II e III do CCD tendo escores abaixo dos pontos de corte nos subtestes com taxas mais ele­vadas do que sujeitos-controle soronegativos. Es­ses resultados foram interpretados como evidência de que um pequeno subgrupo pode ter comprometimento induzido pelo HIV, antes de desenvolver AIDS. Outros contestam que esta infe­rência é prematura, dada a ausência de correção estatística apropriada para comparações para tes­tes múltiplos.

De modo geral, uma revisão da pesquisa indi­ca que, embora a demência como seqüela tardia não seja incomum, raramente é a manifestação inicial da infecção pelo HIV. A maioria dos sujei­tos soropositivos para o HIV não satisfazem os critérios nem mostram sinais expressos de demên­cia. De acordo com o CCD, ape­nas 3.0% de 38.665 adultos e 3.3% de 666 crianças apresentaram-se com encefalopatia pelo HIV como primeira manifestação da AIDS. Esses da­dos epidemiológicos corroboram com estudos clí­nicos que encontraram 6-14% de pacientes soropositivos para o HIV que se apresentam nas clínicas com demência como problema inicial.


Diagnosticando o TOCM inicial introduzido pelo HIV

Já que as alterações do estado mental podem ser sutis, as alterações emocionais, comportamen­tais e de personalidade podem ser diagnostica­das erroneamente como transtornos funcionais ou atribuídas ao estresse de viver com uma infecção incurável e estigmatizante. Nenhum achado clí­nico, teste neuropsicológico ou procedimento iso­lado, provou ser sensível e específico para o diagnóstico do comprometimento neuropsicoló­gico. Como em outros transtornos correlatos mentais orgâ­nicos, o diagnóstico, em geral, depende do julgamento clínico. Verificou-se que a queixa do paciente, o exame do estado mental, o exame físico e dosa­gens de laboratório contribuem de modo imper­feito para a detecção do comprometimento neuropsicológico precoce e do Transtorno Correlato Órgano-Mental induzido pelo HIV (TCOM-HIV) em pa­cientes soropositivos.


Queixas subjetivas de comprometimento cognitivo

Vários estudos corroboraram as impressões clínicas iniciais de que os paci­entes soropositivos para o HIV não relatam confi­avelmente a presença ou ausência de comprome­timento neuropsicológico precoce. Verificou-se que a severidade das queixas cognitivas relatadas por 102 homens homossexu­ais, com pelo menos um sintoma físico relaciona­do com o HIV, não se correlacionam com o comprometimento neuropsicológico. Estudos recentes relataram que 77 homens homossexuais nos estágios II e III do CCD tinham mais sintomas subjetivos sobre o funcionamento cognitivo do que 32 sujeitos-controle soronegativos, mas o compro­metimento neuropsicológico não era maior. Verificou-se que 75 pacientes com AIDS percebiam sua deterioração no desempenho cognitivo de modo inacurado, embora os parcei­ros que os cuidavam fornecessem estimativas mais válidas.

Uma explicação para a baixa correspondência entre as queixas subjetivas e o comprometimento mensurável é que os pacientes soropositivos de­senvolvem ansiedade situacional que prejudica sua concentração e memória, que eles atribuem ao HIV. A correlação das medidas de desconforto com as queixas cognitivas percebidas apóia esta hipótese. De modo alternativo, alguns pacientes podem reconhecer corretamente a de­terioração mental. Suas queixas, aparentemente exageradas, podem refletir insensibilidade dos instrumentos com que foram testados ou falta de escore basal pré-mórbido, para demonstrar o de­clínio presente de uma faixa superior para outra inferior.


Exame do estado mental

Estudos atuais sugeriram que o exame do estado mental padrão é pouco sensível ao comprometi­mento neuropsicológico inicial. Administrou-se o Mini-Exame do Estado Mental (MMSE) a 50 pacientes hospi­talizados com AIDS. Embora 78% dos indivíduos tivessem escores anormais, apenas 8% estavam abaixo do ponto de corte padrão. Outro estudo de um grupo menor de pacientes corroborou a falta de sensibilidade do instrumento. De modo semelhante, o Exame Neurocom­portamental do Estado Cognitivo (Neurobehavioral Cognitive Status Examination Northern California Neurobehavioral Group) indicou que 31 paci­entes com AIDS tinham comprometimento neu­ropsicológico maior do que 39 sujeitos-controle, mas os escores não se correlacionaram confiavel­mente com a disfunção.

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