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O ciclo cósmico, as Tradições e o surgimento do budismo. Analogias com o cristianismo

Introdução

As Tradições do Oriente estão chegando ao Ocidente e têm atraído muitas pessoas para suas práticas e entendimento. Mas o fato de a maioria destas pessoas virem de uma descrença no cristianismo merece algumas reflexões.

Desenvolvimento

O cristianismo, que há 2000 anos trouxe para o mundo Ocidental uma via espiritual, está desacreditado por muitos, que o consideram, em muitas de suas várias ramificações religiosas, uma tradição esvaziada, sem muito mais a oferecer. Por isso buscariam socorro nas tradições orientais.

Este é um tema bastante preocupante, e é preciso examinar­ se existem realmente e quais são os aspectos de enfraqueci­mento do cristianismo no Ocidente. E, por outro lado, verificar se muitos não abandonaram sua tradição de berço em decorrência de uma apreciação demasiadamente superficial sobre as virtualidades e dificuldades da via de realização espiritual cristã. Das críticas feitas hoje em dia ao cristianismo, seria preciso exa­minar quais as que procedem e são justas, merecendo ser traba­lhadas, e em que níveis. A escolha de uma nova opção tradicional é algo muito importante, e não se muda de uma tradição a outra como quem troca de toalha de mesa. A passagem de uma forma tradicional a outra envolve muitas questões complexas que de­vem ser refletidas para podermos consultar profundamente nos­so coração e ponderar com cautela sobre isso.

As tradições, de modo geral, têm uma posição unânime em relação à questão do ciclo cósmico no qual estamos inseridos. A tradição hindu, com sua teoria sobre os yugas, as idades de cada era, talvez seja a mais explícita sobre isto. O Cosmos tem um movimen­to que vai de seu nascimento, desenrolamento até seu encerramento. Trata-se de uma concepção cíclica da manifestação, do mundo condi­cionado, de dentro do qual estamos tentando sair. Este ciclo tem um movimento no sentido descendente. Quando um ciclo se inicia, traz dentro de si um conjunto de possibilidades de manifestação, e, na medida em que estas possibilidades vão se realizando, este ciclo vai se aproximando da concretização, vai se tornando cada vez mais próximo do seu pólo substancial, pesado, até se fechar.

As tradições ensinam que o Cosmos, o mundo manifesto, é produto da união entre dois pólos ou princípios, um essencial, também chamado de Purusha na tradição hindu, ou o Céu, Yang, no taoísmo, e outro substancial, Prakriti, a Terra, Ying. O Cosmos, em seu movimento cíclico, tenderia a se afastar de sua origem espiritual, caminhando para sua densificação, materialização.

Se este afastamento progressivo do ciclo de manifestação de sua fonte espiritual original fosse realizado sem que tivéssemos algum tipo de apoio para a compreensão de nossa vida, estaríamos em situação bem pior. Porém, apesar de o mundo tender a descer, a se materializar, a se afastar por isso do entendimento e da prática espiritual, uma ponte é lançada para que os homens não fiquem totalmente entregues a este movimento de afastamento, de obs­curecimento espiritual. Este obscurecimento espiritual é alertado nas palavras de Cristo, quando fala que haverá um endureci­mento dos corações. O endurecimento dos corações simboliza esta dificuldade progressiva que nossa mente enfrenta na pene­tração e compreensão das realidades transcendentes, do significa­do verdadeiro da existência.

A tradição hindu ensina que a primeira fase ou yuga deste ciclo é o da verdade, acessível a todos, por isso é Satya (Verdade, em sânscrito) yuga. E a última fase, aquela em que estamos, é Kali (escura, negra) yuga: temos que trabalhar com mais intensidade para vencermos esta camada de névoas e fuligens que nos impede de ver as coisas claramente, pois estamos bastante mergulhados nesta poluição física e mental.

A poluição física que caracteriza nossos ares urbanos é uma imagem bem visível de outros níveis mais sutis de envenenamen­to. Nossos pulmões sentem cada vez mais dificuldade de captar o ar puro, nossa mente ressente-se das camadas de poluentes psí­quicos que obstaculizam o acesso às verdades superiores. Mas, pela Misericórdia divina, pontes são sempre lançadas do Mundo Celeste, a fim de que os homens possam tentar atravessar a névoa e fazer o caminho de volta. É exatamente esta a função das tradi­ções. De tal modo que sempre que o ciclo do mundo como um todo, ou um ciclo secundário restrito a um povo ou parte da Hu­manidade, chega a um ponto bastante crítico onde tudo parece estar por se perder, uma restauração parcial e providencial ocorre. Uma ponte é lançada, os princípios são recolocados para os ho­mens, em conhecimento e prática, a claridade se repõe. É como a história de "João e Maria": como voltar para casa quando a mata vai se fechando e alguém se perdeu lá dentro? É preciso que exis­tam aquelas pedrinhas indicando o caminho de retorno. Ou de como voltar para a mata, quando a cidade vai sufocando os hori­zontes, pensaria um indígena.

Uma restauração parcial ocorre, embora a qualidade cósmica que se segue seja menor, e com isso uma tradição se re-adapta, como o caso da tradição hindu com a descida de Krishna, ou, quando da extinção por esgotamento, uma nova tradição se inau­gura como novo caminho de volta, com sua estrutura própria de símbolos, expressões das verdades imutáveis, com seus métodos para a realização espiritual.

Analogamente ao contexto de surgimento do cristianismo, também o buda surge em um momento cósmico bastante sig­nificativo e difícil da tradição hindu. O hinduísmo, por volta do séc.VI aC, atravessa um período de certo obscurecimento. Mui­tas práticas já não são compreendidas, certa tendência idolá­trica se faz presente (o que explica, em certo nível, a difusão do Islã nas castas mais baixas da Índia, séculos depois), os símbolos são por vezes confundidos com a própria realidade simbolizada. Parte da casta brahmânica está empobrecida intelectual e moral­mente, e mestres como Shankaracharya (séc.VIII dC) irão sur­gindo para o re-esclarecimento das doutrinas e práticas da tradição hindu.

O séc.VI aC é um perío­do importante no ciclo cósmico, re-adaptações ocorrerão em tra­dições de várias partes do mundo. Na China, temos a separação de taoísmo e Confucionismo, no surgimento de Lao Tsé e Kung Fu Tsé; na Pérsia é codificado o zoroastrismo; na tradição judaica o cativeiro da Babilônia; na Grécia o surgimento da Filosofia (amor à sabedoria) no lugar da Sabedoria (a partir de Pitágoras observa-se um esforço de sistematização do conhecimento que prenuncia o racionalismo, conseqüência da perda do uso de fa­culdades intelectivas intuitivas, sinal do obscurecimento da hu­manidade, embora o conhecimento de natureza esotérica ainda esteja presente em Pitágoras); consolidação da Polis grega, com o predomínio da casta aristocrática, em detrimento da autoridade es­piritual; rebaixamento da compreensão metafísica (em Aristóteles, a Metafísica se limita ao Ser e não alcança o Imanifesto, o Não-Ser); a tradição na Gália se re-adapta, na construção de templos; adapta­ções também ocorrem nas Américas, na península de Yucatan (desaparecem os Olmecas, surge a civilização do Monte Alban).

É dentro deste momento cíclico que Sidarta Gautama, o Buda Shakyamuni, vai nascer e através da sua iluminação vai abrir outra via espiritual para a humanidade. Analogamente ao cristianismo, que abrirá o monoteísmo judaico aos povos não­ judeus, substituindo a via do Rigor e da Lei pela via da Misericór­dia (a via da Graça) e do Amor, o budismo irá abrir o tesouro do Dharma (a Lei, a Verdade) para os não-hindus, dispensando os praticantes das vastas exigências de ritos e obrigações de casta da tradição hindu, para concentrar-se fortemente na contempla­ção e liberação da mente.

Lembremos que a tradição hindu indica quatro estágios (ash­rama) da vida espiritual. A palavra ashrama vem da raiz verbal çram (estar aborrecido, penalizar, cansar-se, esforçar-se, subjugar), sig­nificando estações, estágios, eremitérios. Da mesma raiz provém shramana, peregrino, subentendendo ser esta a condição de todo homem. O primeiro dos quatro ashramas é o estágio do estudo e da disciplina, aquele do brahmacarin; o segundo é do casamento, profissão e obrigações sociais, daquele que sustenta a casa familiar e o sacrifício do fogo doméstico, a do grhastha; o terceiro é o da retração, do retiro (relativo), o eremita, vanaprastha. Esses três pri­meiros "conduziriam aos estados de seres celestes (vale dizer, aos estados superiores do ser); é apenas o quarto estágio, o da renún­cia total, o sannyasa, e que pode ser integrado a todo momento, que conduz à imortalidade absoluta em Deus (a união yóguica definitiva, o estado incondicionado de Buddha)".

A via budista abre mão da necessidade dos três primeiros ashramas para apontar, análogo ao quarto ashrama hindu, a via direta dos monges peregrinos errantes, os bhiksu (em sânscrito; bikkhu em páli), aqueles que, abandonando seus laços sociais, possuindo apenas seu manto e sua tigela de esmolar comida, e, "vendo os perigos do mundo" (segundo um venerável monge budista, este é um dos sentidos do termo bikkhu), dedicam-se ao esforço da travessia do oceano samsárico. Por isso, o budis­mo, assim como o cristianismo, se é verdade que são vias aber­tas para todos, leigos ou monges, não é menos verdade também que são tradições de origem e natureza fortemente monásticas.

Para seguir a via budista não era mais necessário participar do sistema de castas da Índia. Os compromissos com a vida social não serão mais de muita significação. Abre-se uma porta dentro da tradição hindu, em que o caminho interior é a grande questão, independendo do sistema social em que se esteja inserido. Como o cristianismo, o budismo é uma via universal, aberta para todos. Raça, cor, casta, etnia passam a ser irrelevantes. Neste sen­tido podemos dizer que o budismo, como o cristianismo, é uma via estritamente esotérica. Se isto lhe confere por um lado um caráter menos exigente exteriormente, por prescindir das obrigações de casta, por outro lado se mostra mais exigente interiormente, pois não conta com o apoio simbólico e prático que o sistema de castas oferece. Relembremos que o análogo se dará com os cristãos que, se por um lado são liberados das prescrições do mundo judaico, por outro lado não contarão com a estrutura social de apoio que o mundo judaico oferecia para sua etnia, o que significa que os cristãos terão de suportar maiores tribulações advindas do mun­do exterior, e até "oferecer a outra face".

Na via budista, o caminho de realização não passa por algo semelhante à identificação crística. Não existe o suporte do Filho de Deus. A iluminação não é vista como união com o Ser Supre­mo, mas como realização de um Estado Supremo. O conheci­mento deste Estado Supremo nirvânico como sendo nossa verdadeira natureza intrínseca está obscurecido em virtude de nossa ignorância, em todas as suas formas. Por causa desta igno­rância, nos confundimos com os agregados psicocorporais que são impermanentes e vazios de realidade intrínseca. Esta confusão é que gera a dor e o sofrimento, nos mantendo atados por incon­táveis voltas na Roda do samsara. Mesmo o "eu" é um agregado ilusório criado pela consciência, impermanente e sem substância. Se, por um lado, a percepção da impermanência do "eu" traz o sentimen­to de insegurança e sofrimento diante da realidade sempre em mu­dança, por outro abre-nos, como que por pressão, a possibilidade e a necessidade de encontrarmos nossa verdadeira natureza.

No budismo, esta busca exige de nós a atenção permanen­te e penetrante em todos nossos atos, palavras e ações mentais. Por isso o caráter esotérico e gnóstico do budismo, que tem seus pilares na Sabedoria (Prajna) e Compaixão Universal (Karu­na) por todos os seres, pois, compreendendo-se as raízes de nossa ilusão e sofrimento, compreende-se a de todos os seres.

Entendendo isto, Buda ensina a liberação pelo conheci­mento interior do caráter vazio destas formas, transcendendo-as e alcançando o Nirvana. Trata-se de despertar deste sono igno­rante e mortal. E Buda é mais que um personagem histórico a ser reverenciado. Lembremos que a palavra Buddha vem da raiz BUDDH, que significa Despertar, Conhecer, ir às profundezas. Buddha é o Desperto, estado que todos devemos aspirar a reali­zar. Por esta suficiência essencial intrinsecamente esotérica e gnóstica, o budismo pôde se difundir e se adaptar, ao longo dos séculos, se revestindo de várias formas culturais e exotéricas, como no Tibet, China, Japão, Birmânia, Tailândia e toda a Ásia, chegando recentemente até o Ocidente.  .

Quanto à questão colocada no Ocidente, seja por pensadores ou até mesmo religiosos, de que o budismo seria uma "religião ateísta" (como se isto já não fosse uma contradição nos termos), deve-se esclarecer que se trata de uma interpretação equivocada. O budismo é uma via não-teísta, o que não quer dizer o mesmo que ateísta. Simplesmente o budismo evita entrar na questão da existência ou não de Deus, de um Criador e sua natureza. Re­fere-se à Realidade Suprema como o Estado Supremo Incondicionado, Nirvana, e evita discussões filosóficas sobre esta realidade metafísica, escapando dos riscos de se criar novos ídolos ou con­cepções antropomórficas sobre o lncondicionado. Buda se re­cusa a entrar em discussões com os hindus sobre Brahman, sua existência, pois conhecia a armadilha da mente que busca criar apegos em novas imagens humanas desta Realidade Suprema. A designação desta realidade suprema opera muito mais por nega­ção do que por afirmação: Nirvana significa Nis (não) + Va (so­prar): estado em que os fogos que puxam a mente para o exterior – eis um modo de compreensão sobre o desejo e a paixão – reco­lhem-se para dentro, não mais queimam. O frescor da manhã.

O budismo é uma forma de esoterismo que se estrutura em conceitos de elevado caráter metafísico, e mesmo sobre reali­dades como o Nirvana não é dito explicitamente o que realmente ela seja, evitando especulações sobre esta realidade da qual quase nada podemos dizer, importando menos discutir sobre ela; nossa única obrigação e direito é realizá-Ia. Melhor ver a face do que ouvir o nome, diz uma sentença Zen. Por isso, quando um dis­cípulo pergunta ao Patriarca do Zen chinês, Hui Neng, sobre o espírito do budismo, ele responde que não entende nada de budismo: "o Zen nada ensina".

Se a cruz é um símbolo significativo para o cristianismo, podemos tomar no budismo como apoio o símbolo da postura sentada em lótus. O estado de Buda realizado pode ser simbo­lizado pela posição meditativa de lótus, qual pirâmide assentada em sua base triangular, em repouso. A mente, como o lótus, atravessa o lodo e as águas turvas da existência, sem ser manchada por ela, emergindo da superfície das águas samsáricas como a pura flor.

Poderíamos também tomar o símbolo da Montanha, o que está perfeitamente assentado em seu fundamento, o que não se mexe, o impassível, o Imutável. O estado realizado de Buda é o estado de repouso, em sua plenitude, não perturbada pelas agi­tações fenomênicas, descansado em sua base triangular, símbolo que encontra sua expressão mais cristalina no budismo Zen, para quem esta postura de lótus, o Zazen, é por si o próprio estado de Buda vivo: ''A postura de Zazen é por si só o verdadeiro Buda vivo. É a única postura que inspira o verdadeiro respeito a todos. Através dela afrontarei tudo!"

As tradições budista e cristã surgiram como restaurações parciais diante da tendência descendente do ciclo cósmico. Mas este continuará descendo. Cristo freqüentemente alude a isto, que pouco a pouco se esqueceria e não mais se entenderia o que diz a tradição, o coração se endurecerá e muitos perderão a fé. Buda também adverte sobre o aumento progressivo da dificul­dade de compreensão de seus ensinamentos. Esta tendência des­cendente, embora atinja toda a humanidade, será mais acentuada no Ocidente.

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