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A omissão da família diante de abuso sexual contra crianças e adolescentes

Resumo:

A violência sexual atinge todas as faixas etárias, especialmente a crianças e adolescentes, cujo evento vem assumindo proporções, devido ao sofrimento excessivo atribuído ás vítimas, impedindo o desenvolvimento físico e psicológico, causando seqüelas imensuráveis, principalmente quando a agressão se dá pelo próprio responsável. Está pesquisa insere-se no campo da Psicologia Social e busca compreender os motivos que levam a omissão do abuso sexual. Diante disso, foi realizada a análise das discussões a fim de verificar os conceitos acerca do abuso, quem são os abusadores e porque esse ato é tão ocorrente dentro das famílias. Os resultados apontam que a omissão e o medo de enfrentar o problema são os maiores aliados de quem vive o problema do abuso sexual de crianças e adolescentes, seja por parte da vítima ou de quem convive com ela, ou seja, a mãe. Assim, a denúncia do agressor que na maioria das vezes é o pai ou padrasto não acontece pois o medo das conseqüências que essa denuncia pode causar é latente na vítima. 

Palavras-chaves: Abuso sexual, crianças e adolescentes, omissão.

Introdução

Na contemporaneidade, o abuso contra crianças e adolescentes é constatado diariamente nos noticiários e estudos científicos, devido a seu alto índice, estando diretamente relacionada às questões estruturais e interpessoais, em diferentes aspectos: social, econômico, cultural e psicológico.

Segundo Ariés (1981), as crianças somente passaram a ter um papel social de relevância a partir do final do século XVII. Suas alusões ao abuso sexual freqüentemente eram consideradas "fantasiosas" ou mesmo mentirosas pelas cortes judiciais, pressupondo o desejo de prejudicar os acusados a fim de conseguir alguma vantagem.

No que se refere ao abuso contra crianças e adolescentes, muitas vezes é praticado por familiares, onde questões relacionadas à reação da vítima, à situação da família nos casos de denúncia e comprovação dos abusos, bem como o desenrolar dos procedimentos policiais e judiciários, se tornam mais difíceis.
Faz-se necessário também conhecer as repercussões na vida de crianças e adolescentes: rendimento escolar, adaptação social, alterações da saúde física e mental e a possibilidade de desenvolverem distúrbios comportamentais (MORALES, 2002).

Vários transtornos psiquiátricos têm sido relacionados a eventos traumáticos sofridos na infância, com níveis de gravidade que variam com o tipo de abuso, sua duração e o grau de relacionamento da vítima com o agressor. Alguns estudos apontam os traumas de infância como responsáveis por cerca de 50% das psicopatologias encontradas nos adultos.  O abuso sexual, por vezes mal percebido pelas partes envolvidas, pode ser desencadeado por diversos fatores, manifestando-se de formas diferentes; daí seu grande potencial de dano.
Os tipos de abuso contra crianças mais comuns e de mais fácil detecção médico-legal são a agressão física e a sexual. No entanto, com a implantação dos Conselhos Tutelares no Estado, no início dos anos 90, o abuso sexual contra crianças e adolescentes começaram a ter maior visibilidade e passou a ser mais divulgado.

A questão do abuso sexual contra crianças e adolescentes revestem-se de grande complexidade e precisa ser obrigatoriamente situado em seu contexto histórico, cultural, político econômico e jurídico. Trata-se de um problema mundial, que não se restringe a grupos exclusivos, as cidades, a determinadas regiões ou Estados.
Os casos de abuso sexual na infância e na adolescência são de difícil suspeita e de complicada confirmação, pois, na maioria das vezes são praticados, por pessoas ligadas diretamente às vítimas e sobre as quais exercem alguma forma de poder ou de dependência.

Paiva (2000) enfatiza que o abuso sexual contra crianças e adolescentes praticada no lar reflete de um lado a evolução das concepções que as sociedades construíram acerca da sexualidade humana; de outro, a posição da criança e do adolescente nessas mesmas sociedades ao longo do tempo e do espaço.
Nesse contexto, a violência sexual causa seqüelas físicas e psicológicas. As pessoas atingidas ficam mais sujeitas os outros tipos de problemas como: à prostituição, ao uso de drogas, às doenças sexualmente transmissíveis, às doenças ginecológicas, aos distúrbios sexuais, à depressão e ao suicídio. Efeitos psicológicos do abuso sexual podem ser devastadores, e os problemas decorrentes da violência persistem na vida adulta dessas crianças.

Métodos e técnicas

Este estudo que se insere no campo da Psicologia Social busca através de uma discussão teórica, compreender a dimensão do abuso sexual contra crianças e adolescentes procurando entender  as causas da omissão. Para tal, foi utilizada metodologicamente, a pesquisa bibliográfica referenda em autores comprometidos com a temática em questão. Em seguida, buscou-se realizar uma leitura analítica que se caracteriza pelo detalhamento com que se deve ser realizada, considerando que com ela, obteve-se os elementos mais significativos do tema. Nesta leitura, selecionou-se os aspectos mais importantes de cada livro, o que permitiu a apropriação do saber historicamente acumulado, bem como o confronto de idéias entre os autores.

A violência desmedida

A violência contra crianças e adolescentes desperta uma grande necessidade de discussão uma vez que acontece em seus próprios lares, praticada por pessoas ligadas intimamente às vitimas, como seus pais, padrastos e irmãos. Diante dessa necessidade veremos o conceito de criança, adolescente e abuso sexual na visão de alguns teóricos.

Iniciando com o conceito de criança definida por Posteman (1999), onde diz que a infância está ligada à ótica do adulto, e como a sociedade está sempre em movimento, a vivência da infância muda conforme os paradigmas do contexto histórico.  Assim, Ariés (1981, p.78) revela que o sentimento de infância “é uma construção social, invenção de uma nova forma de organização da sociedade e de uma nova mentalidade que passa a ver a criança como alguém que precisa ser cuidada, educada e preparada para a vida futura”.

Com isso, podemos dizer que o sentimento de infância foi se constituindo e se transformando ao longo do tempo e está diretamente relacionado com a ideologia social de determinada época.

Vygotsky (1988, p. 42) salienta que o conceito de infância nessa perspectiva histórica indica que “não se pode compreender a criança fora de suas relações com a sociedade na qual está vivendo e desvinculada de suas interações com os sujeitos e com a cultura do grupo social no qual está inserida”. Essas relações são constituintes de sua subjetividade, isto é, de sua forma de sentir, pensar e agir sobre o mundo

Já Kindersley (1996, p.56) aborda sobre a importância da criança dentro de uma comunidade, enfatizando que esta varia conforme o período em que ela está inserida, seus direitos e interferências têm diferentes momentos.
Os conceitos acima citados convergem entre si, onde os autores colocam que cada período imprime na infância uma significação mais ou menos vinculado às condições sociais e não apenas a sua condição de ser vivente e biológico. Desta forma, tem-se a influência de um artefato social na construção da significação da infância. Sendo que estes conceitos estão colocados de forma somatória, pois cada autor acrescenta um pouco sobre o conceito de criança contribuindo para a psicologia, que utiliza destes conceitos para entender o comportamento e desenvolvimento infantil.

Partindo para a adolescência que é o período intermediário entre a infância e a fase adulta

Segundo Piaget (1977, p. 33) “a adolescência situa-se no quarto estágio do desenvolvimento, o estágio das operações formais que se situa entre os 11 anos até cerca dos 15/16 anos”.

De acordo com Wallon (1995, p.32), “a partir dos onze, doze anos, a criança começa a passar pelas transformações físicas e psicológicas da adolescência”. Este é um estágio caracterizadamente afetivo, onde o indivíduo passa por uma série de conflitos internos e externos. Os grandes marcos desse estágio são a busca de auto-afirmação e o desenvolvimento da sexualidade.

Entretanto, Aguiar, Bock e Ozella (2001, p.81) fazem uma análise das noções sobre a adolescência e sobre os comportamentos, considerados normais do adolescente, existente na Psicologia e destacam alguns pontos presentes nessas noções:

Uma desconexão e dessintonia entre compromissos teóricos e fatos, o que tende a uma ideologização nas conclusões dos estudos.

Uma relativização extremada, no sentido de que os estudos sobre adolescência são fundamentados em um único tipo de jovem: homem-branco-burguês-racional-ocidental, oriundo, em geral, da Europa Centro-Ocidental ou dos Estados Unidos da América, nunca do Terceiro Mundo. Em síntese, o adolescente em pauta nos estudos pertence à classe média/alta urbana e nunca a outra classes sociais, etnias, ou a outros contextos, como rural, por exemplo.

As concepções são marcadas pelo adultocentrismo, isto é, o parâmetro é sempre o adulto. (AGUIAR; BOCK; OZELLA, 2001, p. 166)

Os autores realizam uma análise das principais características fisiológicas pelas quais os adolescentes passam, a partir das significações que elas possuem nas sociedades ocidentais capitalistas. Segundo eles, as próprias marcas do desenvolvimento do corpo do sujeito devem ser compreendidas de maneira associada à naturalização dos eventos que compõem o conceito de “adolescência”.
Assim, os autores são convergentes e apontam para a necessidade de superar a visão naturalizante da adolescência e de compreender a sua constituição social e histórica, partindo de um olhar sobre as necessidades sociais e econômicas que acabam por consolidar as características que se constituem nesse processo. Estes conceitos apontam para a contribuição psicológica, onde estes conceitos ajudam a estudar o ser em desenvolvimento.

Dessa forma, este ser em desenvolvimento precisa ser respeitado, amado, possuir condições É preciso destacar que a família se caracteriza como o primeiro ambiente onde ocorrem as relações sociais, que a criança encontra ao nascer (FALEIROS, 2000). Este  cenário se constitui de um modelo de organização econômica, política e jurídica da sociedade, de uma cultura de instituições, tudo isso, produto da constituição humana, de homens que antecederam esta criança e adolescente que no momento certo se introduz nessas relações sociais. Portanto, é na família que a criança começa sua preparação para participar, posteriormente, das relações sociais mais amplas. É essa mesma família que deveria oferecer segurança, carinho, quem oferece maus-tratos, abusos, negligências.

De acordo com Guerra (1985, p.45) “o abuso refere-se a um estilo, a um padrão, a uma forma de tratamento que uma pessoa exerce sobre outra, sobre si mesma ou sobre objetos, com a característica de que não percebe que produz danos”. Quem exerce abuso não aprende a regular, a medir, a dizer, a escutar e respeitar mensagens de si mesmo e do outro ou encontra-se em contextos nos quais estas aprendizagens foram esquecidas, se diluíram ou perderam força.

Para Furniss (1993, p.31) o que caracteriza o abuso sexual contra crianças e adolescentes é essencialmente “o fato de que essa experiência vai além do que eles estão prontos para consentir e para viver”.

Já Azevedo (2000, p.61) considera que “o abuso sexual consiste numa situação de dominação e que o conceito de abuso sexual contém ainda a noção de poderio”: Neste sentido confunde-se o conceito de abuso com o de violência.

Assim, pode-se dizer que a violência é a categoria explicativa da vitimização sexual; refere-se ao processo, ou seja, à natureza da relação de poder estabelecida quando do abuso sexual.

A prática do abuso sexual dentro de casa deve ser vista como uma expressão do ataque à proteção, enquanto necessidade da própria condição de dependência, principalmente, da criança. Seguindo o desenho da figura humana, a primeira representação gráfica que o ser humano realiza, a casa é o segundo desenho da criança, o círculo do "rosto-corpo" ganha linhas retas que guardam por algum tempo as mesmas características do rosto na "porta-boca" e nas "janelas-olhos". Simboliza, mais do que um rosto, o corpo da mãe, protetor e provedor de tudo para ela (GUERRA, 1985). E é, exatamente, esta casa plena de significado assegurador que abriga a cena do abuso sexual, abortando assim esta expectativa básica de segurança. Este é um dano psicológico de dimensões imensas e duráveis: a perda permanente do sossego que é fruto da proteção. Assim, o par "abusador-omissa", formado pelas duas figuras mais importantes ou substitutos próximos, cometem em cumplicidade o crime do abuso sexual, derrubando juntos os alicerces do caráter da criança ou do adolescente.

Considerações Finais

Crianças e adolescentes que são vítimas de abuso sexual prolongado, usualmente desenvolve uma perda violenta da auto-estima, tem a sensação de que não vale nada e adquire uma representação anormal da sexualidade. Tornam-se muito retraídas, perdem a confiança em todos adultos e pode até chegar a considerar o suicídio, principalmente quando existe a possibilidade da pessoa que abusa ameaçar de violência se a criança ou adolescente negar-se aos seus desejos.
Algumas crianças e adolescentes abusadas sexualmente podem ter dificuldades para estabelecer relações harmônicas com outras pessoas, podem se transformar em adultos que também abusam de outras crianças, podem se inclinar para a prostituição ou podem ter outros problemas sérios quando adultos.

Comumente as vítimas abusadas estão aterrorizadas, confusas e muito temerosas de contar sobre o incidente. Com freqüência elas permanecem silenciosas e a omissão acontece por não desejarem prejudicar o abusador ou provocar uma desagregação familiar ou por receio de serem consideradas culpadas ou castigadas. Crianças maiores podem sentir-se envergonhadas com o incidente, principalmente se o abusador é alguém da família.

Com isso, a omissão e o medo de enfretar o problema são os maiores aliados de quem vive o problema do abuso sexual de crianças e adolescentes, seja por parte da vítima ou de quem convive com ela, ou seja, a mãe. Pois, a denúncia do agressor que na maioria das vezes é o pai ou padrasto não acontece pelo medo das conseqüências que essa denuncia pode causar.

Referências

AGUIAR, Wanda M. Junqueira; BOCK, Ana M. B.; OZELLA, Sergio. A orientação profissional com adolescentes: um exemplo da prática na abordagem  sócio-histórica. In Psicologia sócio-histórica (uma perspectiva crítica em psicologia). São Paulo: Cortez, 2001.

ÀRIES, P. História social da infância e da família. (D. Flaksman, Trad.), Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

 AZEVEDO, M.A. & Guerra, V.N. Pele de asno não é só estória… um estudo sobre a vitimização sexual de crianças e adolescentes em família. São Paulo: Editora Roca, 1988.  

FALEIROS, Eva T. Silveira. Repensando os conceitos de violência, abuso e exploração sexual de crianças e de adolescentes. Brasília: Thesaurus, 2000.

FURNISS, T. Abuso sexual da criança: Uma abordagem multidisciplinar. (M.A.V. Veronese, Trad.) Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.

GONÇALVES, H. S. A Psicologia e os direitos da criança e do adolescente. São Paulo 1999.

GUERRA, Viviane de Azevedo. Violência de pais contra filhos: procuram-se vítimas. São Paulo: Cortez, 1985.

KINDERSLEY, B. Crianças como você: uma emocionante celebração da infância no mundo. São Paulo: Ática /Unicef, 1996.

MORALES, A.E.; Schramm, F.R. – A moralidade do abuso sexual intrafamiliar em menores. Ciência & Saúde Coletiva 7 (2): 265-273, 2002.

PAIVA, R.M. – A dimensão de gênero na violência doméstica contra a infância, 2000. Disponível em <http://www.cfch.ufrj.br/jor_p4/Relacge2/dimegene.htm>.   Acesso 18 de julho de 2007.

PIAGET, J. A Tomada de Consciência. São Paulo: Melhoramentos, 1977.
POSTMAN, Neil. O Desaparecimento da Infância. Rio de Janeiro: Graphia, 1999.

VYGOTSKY, L.S. Formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes,
1988.

WALLON, Henri. A evolução psicológica da criança. Lisboa: Edições 70, 1995.


Autores:

Ione Andrade dos Santos (Graduanda do Curso de Psicologia da FACSUL-BA.
Artigo apresentado ao Prof. Dr.Natanael Reis Bomfim Orientador da disciplina Planejamento e Gerenciamento de Projetos do Curso de Psicologia – FACSUL, Itabuna-Ba. 2007)

Natanael Reis Bonfim (Doutor em Educação pela Universidade do Quebec a Montreal.; Professor Adjunto de Cartografia da Universidade Estadual de Santa Cruz – Ilhéus – Bahia-Brasil. Professor Orientador da disciplina Planejamento e Gerenciamento de Projetos do Curso de Psicologia – FACSUL, Itabuna-Ba. [email protected])

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